Enquanto a ONU acaba de divulgar que o número de mortes causadas pela Aids caiu 26% em todo o mundo nos últimos cinco anos; o Brasil, que sempre foi referência internacional no tema, deu um passo atrás esta semana. Pela primeira vez em 31 anos de combate à doença, o país não mandará seus principais técnicos e gestores no controle da epidemia para o Encontro de Alto Nível das Nações Unidas em HIV/Aids, marcado para junho. A proibição, segundo Fábio Mesquita, um dos especialistas mais renomados na luta contra a Aids no Brasil e, até a última segunda-feira, diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, foi feita em memorando assinado pelo novo secretário-executivo do ministério, Antônio Nardi. A medida foi um dos motivos pelos quais Mesquita pediu demissão, e publicou uma carta aberta para denunciar o que qualifica como retrocesso em curso no programa brasileiro de combate ao vírus HIV e ao tratamento da Aids. Vários outros especialistas do Ministério ameaçam fazer o mesmo, o que pode resultar em uma perigosa evasão de cérebros dedicados às estratégias contra da doença.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]Duas semanas após a posse do interino Michel Temer, à exceção da Secretária-Executiva, nenhum outro secretário considerado chave para o bom funcionamento do Ministério da Saúde foi nomeado pelo ministro Ricardo Barros. Até a Secretaria de Vigilância em Saúde, responsável pelas epidemias de Dengue, Zika, e H1N1 continua sem chefia.
[/g1_quote]O evento das Nações Unidas é um dos mais importantes para a troca de experiências e para a definição de metas para se conter o avanço do vírus. Nele, este ano serão definidos os trabalhos para se garantir o controle da epidemia até 2030, meta dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), do qual o país é signatário. O Brasil sempre foi exemplo neste fórum, e referência mundial em políticas públicas de enfrentamento da epidemia. Especialistas são unânimes ao afirmar que, mesmo sendo um país em desenvolvimento, o Brasil conseguiu até o momento resultados epidemiológicos compatíveis com os melhores sistemas de saúde do mundo, e superiores a muitas nações desenvolvidas. Alguns motivos são apontados como os principais responsáveis: a universalização do tratamento, com distribuição gratuita pelo SUS dos medicamentos antirretrovirais, a formação de especialistas de alto nível e o aproveitamento deles no setor público, o treinamento de médicos e agentes de saúde em todo o país, e as campanhas de prevenção e orientação.
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Em 2005, em uma das medidas mais corajosas já tomadas em todo o mundo desde a eclosão da doença, nos anos 80, o governo brasileiro quebrou a patente do medicamento Kaletra, importante no tratamento, e que passou a ser produzido no laboratório Farmanguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. A decisão resultou na economia anual de R$ 130 milhões, permitindo uma maior oferta de medicamentos gratuitos e um alívio importante no já robusto e ao mesmo tempo insuficiente e comprometido orçamento da Saúde. A quebra da patente provocou fúria na indústria farmacêutica internacional e o início do que parecia ser uma crise comercial e diplomática importante e de efeitos imprevisíveis. No entanto, após um enorme esforço da diplomacia brasileira, que contou com apoios e elogios de instituições importantes, como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e ministérios da Saúde de vários países, o caso não apenas foi resolvido, como virou exemplo para programas de várias nações pobres e em desenvolvimento. Desde então, quebras de patentes de medicamentos para a Aids passaram a ser adotadas em países africanos e asiáticos.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”none” size=”s” style=”solid” template=”01″]Os desafios para se conter o HIV no país ainda são muitos e um retrocesso nas políticas públicas deste setor podem jogar no lixo rapidamente um trabalho de décadas
[/g1_quote]Em um outro sinal de que as coisas não vão nada bem no Ministério da Saúde, o que pode ameaçar seriamente programas como o de combate à Aids e também de várias outras doenças, é que, duas semanas após a posse do presidente interino Michel Temer, à exceção de Nardi na Secretária-Executiva, nenhum outro secretário considerado chave para o bom funcionamento do ministério foi nomeado pelo ministro da pasta, Ricardo Barros. Até mesmo a importantíssima Secretaria de Vigilância em Saúde, responsável pelas epidemias de Dengue, Zika, e H1N1 ficou todos esses dias acéfala, e ainda está sem chefia. As consequências deste vazio institucional para a evolução dessas epidemias são imprevisíveis.
Os desafios para se conter o HIV no país ainda são muitos e um retrocesso nas políticas públicas deste setor podem jogar no lixo rapidamente um trabalho de décadas. O Brasil registra em média cerca de 38 mil novos casos de Aids por ano. Estima-se que, atualmente, cerca de 800 mil pessoas vivam com HIV no país. Dessas, em torno de 150 mil não sabem de sua condição sorológica. Para identificar e tratar essas pessoas, o Ministério da Saúde tem investido mais de dez anos milhões de reais na ampliação do acesso à testagem, e em um sofisticado modelo de notificação de casos registrados. Os 345 Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA) disponibilizam o teste rápido anti-HIV, além de oferecerem aconselhamento sobre prevenção, diagnóstico e tratamento. Mais da metade de todas as Unidades Básicas de Saúde do SUS também oferecem o teste rápido. Programas como esses exigem recursos e pessoal especializado. Qualquer tipo de economia malfeita que se faça neles pode resultar em gastos muitos maiores um pouco mais à frente, e em prejuízos sociais e econômicos incalculáveis. Ainda há tempo de se evitar tamanho retrocesso.
Parabéns pelo texto e pelo alerta, Leonardo Valente. Parabéns ao Colabora pela publicação desse quadro alarmante.
O Brasil é referência internacional no cuidado da AIDS pelos resultados expressivos que alcançou, razão de conceber a saúde como direito e dever do estado, responsabilizando-se pela implementação de uma política pública que garante educação para prevenção, tratamento e acesso aos remédios.
Sem dúvida um programa de altíssimo custo, mas de inegável benefício para a população de risco, bem como de estrito compromisso com os valores humanos da saúde. Este desafio impôs ao país liderar a luta pela quebra de patentes e acordos para produção dos medicamentos que vieram a beneficiar todos os países do mundo.
Na saúde nada é barato e o investimento não tem retorno imediato, muito menos contabilização fácil, dado ao número de variáveis. No entanto quem duvida que a saúde é o bem mais valioso da vida e que deve estar acessível a todos?
O momento é crítico em todos os setores, mas será que podemos optar por deixar morrer a população de risco e os que já estão afetados? Decisões desta ordem, que comprometem os programas de garantias à direitos sociais não podem ser exclusivamente técnicas, exigem debates e precisam envolver a sociedade.