O ‘gap’ salarial e a cruzada contra a desigualdade

Discrepância de renda é considerada um risco sistêmico, capaz de gerar impactos em todo o sistema socioeconômico

Por Marina Grossi | ArtigoODS 10 • Publicada em 13 de julho de 2023 - 09:05 • Atualizada em 22 de novembro de 2023 - 18:42

A favela da Rocinha e os prédios de luxo de São Conrado, no Rio: retrato da desigualdade aprofundada pelo gap salarial ((Vladimir Platonow / Agência Brasil)

O ‘gap’, ou abismo salarial – a diferença entre a remuneração da alta liderança nas empresas e a média dos demais trabalhadores -, entrou em pauta e tem sido apontado como um dos principais mecanismos que perpetuam as desigualdades sociais não só no meio corporativo, mas na sociedade como um todo. Dados do think tank americano Economic Policy Institute apontam que, desde 1978, a remuneração dos CEOs nos Estados Unidos cresceu 1.460%, superando com folga o aumento salarial de um trabalhador médio americano, que teve alta de 18% no mesmo período.

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Esse salto nos ganhos dos níveis executivos, o chamado C-Level, alimentou o crescimento da renda dos grupos que estão entre os 1% e 0,1% mais ricos, o que aumenta a distância entre os que ganham muito bem e os 90% mais pobres. É concentração de renda em estado bruto, de modo que os frutos do crescimento econômico e da geração de riquezas ficam limitados a um grupo restrito da sociedade.

Os dados fazem parte do recente relatório da Comissão Empresarial para Combater a Desigualdade (BCTI, na sigla em inglês), lançado em maio, durante encontro do Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável (WBCSD, na sigla em inglês), rede da qual o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) faz parte. A BCTI é uma coalizão multissetorial, criada em 2021 e formada por mais de 60 lideranças empresariais e da sociedade civil, que se uniram para colocar o enfrentamento da desigualdade no centro da agenda empresarial – e que já tem uma empresa brasileira entre seus membros: a Vale. A iniciativa é apoiada no Brasil pelo CEBDS, que vai traduzir o documento e incluí-lo entre os temas de ação da Câmara Temática de Impacto Social.

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Essa discrepância de renda é considerada um risco sistêmico, ou seja, capaz de gerar impactos em todo o sistema socioeconômico, de modo que os negócios estão sendo instados a assumir seu papel na cruzada contra as desigualdades. Peter Bakker, presidente do WBCSD, destaca no relatório que, embora a sustentabilidade tenha se tornado um tema mainstream entre os negócios, “coletivamente estamos falhando em lidar com o risco sistêmico colocado por níveis crescentes de desigualdade”. Além de ser uma questão humanitária – expressa no Artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que assume que todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar -, reduzir o abismo de renda significa ainda acrescentar US$ 4,6 trilhões ao PIB global todos os anos. Hoje, mais de 1 bilhão de trabalhadores não recebem o mínimo para ter acesso a um padrão de vida decente, com alimentação, água, moradia, educação, saúde, transporte e vestuário.

As empresas brasileiras também têm um grande desafio pela frente. Pela primeira vez, as companhias de capital aberto estão sendo obrigadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a informar, em seus formulários de referência, a diferença entre a maior remuneração paga aos executivos e a média de todos os trabalhadores. Houve casos em que a disparidade salarial passou de 5.000 vezes, como revelou o site Capital Reset, em uma análise sobre o gap salarial das 25 empresas com maior peso no índice Bovespa. Via de regra, empresas estatais tendem a ter menor disparidade salarial.

Globalmente, ganha relevância a discussão sobre a diferença entre o salário mínimo – que é o mínimo que um trabalhador precisa receber, por lei – e o chamado “salário de subsistência” (living wage), que é a remuneração necessária para fazer frente ao custo de vida. Às empresas com grandes disparidades salariais, cabe o questionamento não do porquê seus altos executivos ganham tão bem, mas os motivos que levam a base da sua pirâmide de colaboradores ser mal remunerada. Essa é uma das discussões que a BCTI visa fomentar, por meio de 10 linhas de ação que as empresas podem tomar para combater as desigualdades estruturais – uma delas é pagar e promover salários e rendimentos dignos de subsistência, além de reduzir as disparidades entre o salários de mulheres, pessoas negras e com deficiência. O ponto de partida do movimento é o cumprimento dos Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos.

Por ser uma questão sistêmica e estrutural, o combate às desigualdades requer igualmente ferramentas sistêmicas e multistakeholder. Por meio de políticas públicas, os governos têm um papel central a desempenhar na condução desta agenda; no entanto, as demais partes interessadas, incluindo empresas, investidores e a sociedade civil organizada, também têm contribuições vitais a fazer. Não é mais possível atuar no “S” do ESG sem considerar o papel dos negócios nessa cruzada contra as disparidades sociais.

Marina Grossi

Marina Grossi, economista, é presidente do CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável), entidade com mais de 100 empresas associadas cujo faturamento somado equivale a quase 50% do PIB brasileiro. Foi negociadora do Brasil na Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima entre 1997 a 2001 e coordenadora do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas entre 2001 e 2003.

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