Na fraude do cartão de vacina de Bolsonaro, a importância da ciência dos arquivos

Mauro Cid e Bolsonaro: ajudante de ordens fraudou carteira de vacinação por ordem do então presidente. Reprodução Facebook

Arquivologia é peça-chave para o rastreamento e a comprovação de crimes. Transparência na veia em nome da autenticidade

Por Marcelo Siqueira e Walmor Pamplona | ArtigoODS 16 • Publicada em 26 de outubro de 2023 - 09:55 • Atualizada em 21 de novembro de 2023 - 08:51

Mauro Cid e Bolsonaro: ajudante de ordens fraudou carteira de vacinação por ordem do então presidente. Reprodução Facebook

Na torrente de delações do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro na Presidência, está a falsificação – determinada pelo chefe – dos certificados de vacina contra a covid-19 do próprio capitão e da filha dele, Laura (menor de idade). Diante de tantas barbaridades cometidas nos quatro anos de governo encerrados no fim de 2022, bobagem, certo? Errado, do necessário ponto de vista da Arquivologia.

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Arquivos não evitam a corrupção e outros delitos, mas são peças-chave para o rastreamento e a comprovação de atos criminosos. Abrigam documentos gerados ou acumulados por pessoas físicas ou jurídicas, no desempenho de suas atividades, dando-lhes poderoso poder de prova contra seus próprios autores e mandantes. Ou seja, documentos confiáveis não evitam falsificações, mas podem comprová-las. Garantem uma eficaz fiscalização social e oficial do interesse público. Transparência na veia.

Por que se falsificam documentos? Grosso modo, porque alguém, autor ou mandante, se aproveita da ilegalidade. Como se falsificam documentos? Inquéritos e processos revelam uma profusão de métodos e práticas de cometer aquilo que tipificamos como falsificar, não faltam exemplos. Documentos autênticos são poderosas ferramentas de comprovação de um crime, falam mais alto do que confissões ou delações obtidas por meio de procedimentos obscuros. Como se verifica a autenticidade de um documento, analógico ou digital, essencial para o combate a fraudes?

No mundo analógico, desde que se escreve, falsifica-se. A escrita deu fixidez a direitos, bens, benefícios, privilégios. Arquivos nasceram para consolidar o poder em que se garantem autoridades e propriedades. Não à toa, sempre atraíram a atenção dos amigos do patrimônio alheio, concreto ou abstrato, divino ou mundano, histórico ou artístico. A coisa ficou tão feia, ali em meados da Idade Moderna, que se sistematizou um jeito de presumir a autenticidade documental por meio da análise formal do documento, acompanhada de uma técnica capaz de ler escritas que já haviam caído em desuso. Surgia a Diplomática, para investigar a autenticidade dos documentos e a Paleografia, ferramenta de leitura de manuscritos antigos.

Em ambiente digital, a demanda exigiu freio de arrumação que compatibilizasse os antigos preceitos e procedimentos com uma revolução cognitiva que não para de gerar novas maneiras de aprender e apreender o mundo à nossa volta. Modelos de repositórios digitais confiáveis, cadeias de custódia digital de documentos e a rastreabilidade de acessos logados e verificados permitem, se não evitar, identificar o login e a senha de quem adulterou ou falsificou documentos, se for o caso.

A autenticidade de um documento acontece em camadas. Tomemos como exemplo o comprovante de vacinação contra a covid-19 de uma menina. Analógica ou digital, a caderneta de vacinação é seguramente autêntica, desde que preencha os requisitos normativos. A comprovação de vacinação se dá por meio da identificação correta do fármaco, somada a uma rubrica ou assinatura que localize quem vacinou e quando aconteceu a imunização.

A autenticidade deste comprovante de vacinação deve ser avaliada em três camadas: a legal, a diplomática e a contextual. A caderneta de vacinação é provavelmente autêntica, do ponto de vista legal, tendo sido criada e distribuída por autoridade pública reconhecida. Se estiver preenchida corretamente, e sem adulteração posterior, será autêntica diplomaticamente também. Entretanto, se o registro for anterior, no tempo, à liberação das vacinas infantis contra a covid-19, a falsificação estará comprovada.

O ramo da falsificação sempre atraiu gente poderosa. No Império Bizantino, sucessor da parte oriental do Império Romano, houve a percepção de que uma expressiva quantidade de documentos falsos estava sendo arquivada com o intuito de validá-la. Em relação a essa e outras situações de caráter administrativo, o imperador Justiniano I editou código jurídico contendo inúmeros dispositivos legais, dentre eles o Redactio in Mundum, diretriz que estabelecia a forma com a qual o documento jurídico deveria ser redigido para garantir seu valor legal e probatório.

Nessa mesma época, no século 6, um bispo católico francês chamado Gregório de Tours (que se tornaria santo) promoveu ampla investigação sobre as assinaturas, caligrafia e outros aspectos gráficos e materiais de documentos referentes ao rei merovíngio Chilberto II, concluindo por sua falsidade. Esse trabalho é tido como a primeira análise sistematizada de perícia documental e inauguração do que os historiadores chamam de crítica documental – a averiguação consistente de que um determinado documento possui as qualidades que atestam sua veracidade.

Na Idade Média, tempo de pulverização política e administrativa na Europa, a autenticidade do documento passou a ser atribuída pela autoridade local e não mais pelo local onde ele era depositado. Para tanto, uma série de elementos de validação começou a ser exigida – o aporte de selos, assinaturas desenvolvidas e rebuscadas e a presença de funcionários públicos ou religiosos na conclusão ou confirmação do documento.

Entretanto, as falsificações continuaram frequentes, cada vez mais elaboradas e praticadas entre os poderosos, como ordens religiosas, membros da Igreja, senhores feudais e até mesmo reis e imperadores que objetivavam prestígios diversos, como o aumento do poder através da aquisição fraudulenta de terras e títulos de nobreza.

Na passagem do século XII para o XIII, o Papa Inocêncio III editou duas bulas (documento emitido pelo Papa) que visavam ao combate ao crescimento da adulteração de documentos da Igreja. O pontífice é tido como precursor das ciências documentais e suas bulas como precursoras da sistematização de técnicas periciais.

A disputa se deu em torno da história dos santos católicos – quanto mais relevante era o santo e os registros atribuídos a ele, maior o prestígio da ordem na qual ele era vinculado. O status se materializava em maiores doações e devoções.

Em 1643, o jesuíta belga Jean Bolland publicou os Acta Sanctorum, vasto conjunto de livros sobre os santos católicos, tentando separar fatos reais das lendas. Seu sucessor foi o padre belga, e também jesuíta, Daniel van Papenbroeck, que publicou, em 1675, o segundo volume dos Acta Sanctorum, com oito princípios básicos sobre a autenticidade de documentos antigos em pergaminho. Tais princípios levaram Papenbroeck a declarar como falso importante documento atribuído ao rei francês Dagoberto I, gerando desconfiança sobre a autenticidade de inúmeros documentos merovíngios e da Ordem Beneditina na França.

Crise. O estudo de Papenbroeck foi considerado afronta pelos beneditinos e acirrou os ânimos entre as ordens religiosas, iniciando a Guerra da Ciência dos Diplomas, ou “guerra documental”. Como resposta ao que estava escrito na introdução dos Acta Sanctorum, o monge francês beneditino Jean Mabillon, empreendeu o maior estudo realizado até então sobre os documentos, resultando em seis volumes, nominados de De Re Diplomatica, algo parecido com “sobre os documentos”.

A publicação é considerada ainda hoje o evento que demarcou as origens da Diplomática e da Paleografia, que passaram a nortear o estudo documental.

Em 1708, outro intelectual religioso francês, Bernard de Montfaucon, publicou livro intitulado Paleographia Graeca, em que sistematizava técnicas conhecidas de análise de textos, tipos de escritas e caligrafias, para identificar, ler, transcrever e interpretar documentos gregos ou escritos naquela língua. Ali se estabeleceram as primeiras normas de leitura e transcrição.

Existe, porém, um equívoco em afirmar que a Diplomática e a Paleografia foram criadas do zero a partir das obras de Mabillon e Montfaucon; o que houve, na verdade, foi a sistematização do conhecimento técnico já existente através de legislações canônicas, procedimentos legais tratados de sigilografia (estudo dos selos e sinetes usados para identificação e validação de documentos) e pesquisas diversas.

Já nesta época, a utilização de outras disciplinas e técnicas correlatas na análise pericial ampliou e aprofundou os estudos, tornando-os mais precisos: a Cronologia (formas de medição do tempo e suas divisões), a Numismática (ciência das moedas, cédulas e medalhas), a Antroponímia (etimologia dos nomes próprios), Epigrafia (inscrições lapidares), Heráldica (emblemas e brasões), Sigilografia (selos e sinetes), Caligrafia (exame da forma como cada indivíduo escreve).

Enquanto houver quem tente levar vantagem por meio de falsificações, haverá sempre, no encalço, o esforço inter e transdisciplinar de um trabalho em equipe que junta ciências documentais com as maiores novidades no campo da preservação da autenticidade de documentos digitais. Ser autêntico é o que interessa.

Marcelo Siqueira e Walmor Pamplona

Marcelo Nogueira de Siqueira é doutor em Ciência da Informação, professor do Departamento de Arquivologia da Uni-Rio e arquivista do Arquivo Nacional.
Walmor Martins Pamplona é jornalista e doutorando em Ciência da Informação, com ampla experiência em Comunicação e Arquivologia, e mais de 25 anos dedicados a atividades audiovisuais.

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