Gêneros fluidos, identidades flutuantes

Como a luta contra a repressão sexual nos trouxe à era da indefinição

Por Malvine Zalcberg | Artigo
Publicada em 28 de fevereiro de 2016 - 09:05  -  Atualizada em 29 de fevereiro de 2016 - 11:24
Tempo de leitura: 6 min

O ex-atleta e campeão olímpico Bruce Jenner, que assumiu sua identidade sexual: “Chame-me Caitlyn”
O ex-atleta e campeão olímpico Bruce Jenner, que assumiu sua identidade sexual: “Chame-me Caitlyn”
O ex-atleta e campeão olímpico Bruce Jenner, que assumiu sua identidade sexual: “Chame-me Caitlyn”

Não há dúvida que o gênero tem sua história e cada época o interpreta diferentemente.  Quando a filósofa Judith Butler iniciou seus gender studies nos Estados Unidos, o foco era obter mais igualdade e justiça entre homens e mulheres, entre homo e heterossexuais, em perspectiva de cunho político; estes estudos acabaram levando a um questionamento das “normas” do gênero sustentadas pela sociedade tradicional, a qual submeteria os sujeitos – através de tradições e comportamentos – às suas exigências, controlando sua vida sexual e seu desejo.

[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]

Entra assim em cena, mais amplamente no século XXI, uma nova dificuldade de se dizer o que é ser homem ou mulher. Há sempre algo de muito íntimo – e nem sempre claro – na relação de cada sujeito com o seu gênero, e as categorias de homem e mulher não são exclusivamente produto de “normas” e sim efeito de um percurso subjetivo próprio. Ser homem ou mulher é, antes de mais nada, ser este homem ou esta mulher.

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos
[/g1_quote]

Se o fim da repressão sexual, a liberação das mulheres e a maior aceitação da homossexualidade contribuíram para produzir um aumento na tolerância em matéria de gênero, conduziram também a uma noção de divisão dos sexos cada vez mais volátil, visando ao próprio apagamento das diferenças. Chegando ao ponto em que a escritora e feminista francesa Monique Wittig pregou o desaparecimento das categorias “totalitárias” de homens e mulheres para permitir, segundo ela, o aparecimento do sujeito verdadeiro, liberto das normas sociais.

Entra assim em cena, mais amplamente no século XXI, uma nova dificuldade de se dizer o que é ser homem ou mulher. Há sempre algo de muito íntimo – e nem sempre claro – na relação de cada sujeito com o seu gênero, e as categorias de homem e mulher não são exclusivamente produto de “normas” e sim efeito de um percurso subjetivo próprio. Ser homem ou mulher é, antes de mais nada, ser este homem ou esta mulher.

A revelação de Bruce Jenner da adoção de sua verdadeira identidade sexual – “Chame-me Caitlyn” – é, provavelmente, só o mais espetacular entre tantos casos de transformação de gênero vistos ultimamente. Se causou tanto impacto, é porque Bruce, além de ex-atleta e campeão olímpico, despontava na série televisiva Keeping Up with the Kardashian como o único homem de uma família de mulherões, ícones de feminilidade. É misterioso e íntimo, mas é assim: este homem se vê como esta mulher, a partir da maneira pela qual a virilidade e a feminilidade se apresentaram em sua existência.

A construção do gênero depende dos encontros significativos do sujeito com outros homens e mulheres que vão dando forma à sua história singular. O primeiro capítulo desta história tem suas raízes nas relações que presidiram sua vinda ao mundo: a adoção do gênero lhe é apontada inicialmente por um Outro cujo olhar imprime sobre a criança um primeiro – mas não necessariamente definitivo – ponto de identificação sexual a marcar seu ser.

Eu, mamãe e os meninos (2004), filme de Guillaume Gallienne, é exemplo de um percurso singular de descoberta de seu verdadeiro gênero. O autor retrata em relato autobiográfico sua vida de menino que se identificava com a menina que a mãe desejava que fosse – chamando-o “minha querida”, reservando a ele um gênero diferente do de seus irmãos na hora de convida-los para almoçar:  “Guillaume e os meninos à mesa”.

Foi por um encontro contingente, em sua vida adulta, que numa festa apaixona-se por uma mulher; justamente no momento em que é convocado pela dona de casa à assumir seu lugar… como homem: “Guillaume e as moças à mesa”.

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos
Saskia de Brauw na capa da Vogue
Saskia de Brauw na capa da Vogue
E no desfile da coleção masculina de Saint Laurent
E no desfile da coleção masculina de Saint Laurent

É misterioso e íntimo, mas é assim: este homem – que por longos anos tentou vestir a pele de uma mulher – não transformou verdadeiramente seu gênero. O amor o extirpou da norma pré-estabelecida para ele, dando-lhe a possibilidade de “assumir-se” heterossexual.

O fato de o gênero não ter um caráter adquirido uma vez por todas, não quer dizer que inexista como tal. Mesmo em nossa época hedonista – de sexualidade fluida – que incita a gozar sem trégua de seu corpo e do de outros, o gênero estará sempre acoplado ao que há de mais singular no sujeito, como também o desejo.

Para a psicanálise, se o gênero pode ser considerado para além das normas, excedendo as normas e mesmo fora das normas é porque ser um homem e ser uma mulher não provém de nenhum programa biológico ou cultural que faça da anatomia um destino. O sexo não é um fenômeno natural e sim resultado de um processo de subjetivação (chamado de sexuação) o qual não se realiza sem percalços. Se algum “pré-programa” definindo a identificação existe, é mais porque o corpo é também um organismo e o sujeito é igualmente um animal cultural. “Quem sou como ser sexuado?” –  questão que Lacan considera fundamental na existência de todo sujeito –  mostra-se mais atual do que nunca.

Cada sujeito é naturalmente atravessado por dúvidas íntimas sobre sua feminilidade ou masculinidade, em menor ou maior grau (como a estranheza que ressente um transexual entre sua anatomia e seu sentimento de pertencer a outro gênero). Mas uma sociedade que indica aos jovens que tentar definir seu gênero é estar por fora (os manequins-estrela não têm hoje um look voluntariamente andrógino, como Saskia de Brauw, que passa da capa da Vogue feminina ao desfile da coleção masculina de Saint Laurent?), não estaria intensificando a dificuldade que eles têm de definir sua identidade sexual?

Malvine Zalcberg

É psicanalista e autora. Foi professora assistente do Instituto de Psicologia e do Serviço de Psiquiatria da UERJ. Colabora regularmente com diversas publicações, pousando um olhar psicanalítico sobre o que alimenta nossos pensamentos e sonhos: filmes, textos literários, obras de arte e fatos da sociedade...

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *