Não há dúvida que o gênero tem sua história e cada época o interpreta diferentemente. Quando a filósofa Judith Butler iniciou seus gender studies nos Estados Unidos, o foco era obter mais igualdade e justiça entre homens e mulheres, entre homo e heterossexuais, em perspectiva de cunho político; estes estudos acabaram levando a um questionamento das “normas” do gênero sustentadas pela sociedade tradicional, a qual submeteria os sujeitos – através de tradições e comportamentos – às suas exigências, controlando sua vida sexual e seu desejo.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]Entra assim em cena, mais amplamente no século XXI, uma nova dificuldade de se dizer o que é ser homem ou mulher. Há sempre algo de muito íntimo – e nem sempre claro – na relação de cada sujeito com o seu gênero, e as categorias de homem e mulher não são exclusivamente produto de “normas” e sim efeito de um percurso subjetivo próprio. Ser homem ou mulher é, antes de mais nada, ser este homem ou esta mulher.
[/g1_quote]Se o fim da repressão sexual, a liberação das mulheres e a maior aceitação da homossexualidade contribuíram para produzir um aumento na tolerância em matéria de gênero, conduziram também a uma noção de divisão dos sexos cada vez mais volátil, visando ao próprio apagamento das diferenças. Chegando ao ponto em que a escritora e feminista francesa Monique Wittig pregou o desaparecimento das categorias “totalitárias” de homens e mulheres para permitir, segundo ela, o aparecimento do sujeito verdadeiro, liberto das normas sociais.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosEntra assim em cena, mais amplamente no século XXI, uma nova dificuldade de se dizer o que é ser homem ou mulher. Há sempre algo de muito íntimo – e nem sempre claro – na relação de cada sujeito com o seu gênero, e as categorias de homem e mulher não são exclusivamente produto de “normas” e sim efeito de um percurso subjetivo próprio. Ser homem ou mulher é, antes de mais nada, ser este homem ou esta mulher.
A revelação de Bruce Jenner da adoção de sua verdadeira identidade sexual – “Chame-me Caitlyn” – é, provavelmente, só o mais espetacular entre tantos casos de transformação de gênero vistos ultimamente. Se causou tanto impacto, é porque Bruce, além de ex-atleta e campeão olímpico, despontava na série televisiva Keeping Up with the Kardashian como o único homem de uma família de mulherões, ícones de feminilidade. É misterioso e íntimo, mas é assim: este homem se vê como esta mulher, a partir da maneira pela qual a virilidade e a feminilidade se apresentaram em sua existência.
A construção do gênero depende dos encontros significativos do sujeito com outros homens e mulheres que vão dando forma à sua história singular. O primeiro capítulo desta história tem suas raízes nas relações que presidiram sua vinda ao mundo: a adoção do gênero lhe é apontada inicialmente por um Outro cujo olhar imprime sobre a criança um primeiro – mas não necessariamente definitivo – ponto de identificação sexual a marcar seu ser.
Eu, mamãe e os meninos (2004), filme de Guillaume Gallienne, é exemplo de um percurso singular de descoberta de seu verdadeiro gênero. O autor retrata em relato autobiográfico sua vida de menino que se identificava com a menina que a mãe desejava que fosse – chamando-o “minha querida”, reservando a ele um gênero diferente do de seus irmãos na hora de convida-los para almoçar: “Guillaume e os meninos à mesa”.
Foi por um encontro contingente, em sua vida adulta, que numa festa apaixona-se por uma mulher; justamente no momento em que é convocado pela dona de casa à assumir seu lugar… como homem: “Guillaume e as moças à mesa”.
É misterioso e íntimo, mas é assim: este homem – que por longos anos tentou vestir a pele de uma mulher – não transformou verdadeiramente seu gênero. O amor o extirpou da norma pré-estabelecida para ele, dando-lhe a possibilidade de “assumir-se” heterossexual.
O fato de o gênero não ter um caráter adquirido uma vez por todas, não quer dizer que inexista como tal. Mesmo em nossa época hedonista – de sexualidade fluida – que incita a gozar sem trégua de seu corpo e do de outros, o gênero estará sempre acoplado ao que há de mais singular no sujeito, como também o desejo.
Para a psicanálise, se o gênero pode ser considerado para além das normas, excedendo as normas e mesmo fora das normas é porque ser um homem e ser uma mulher não provém de nenhum programa biológico ou cultural que faça da anatomia um destino. O sexo não é um fenômeno natural e sim resultado de um processo de subjetivação (chamado de sexuação) o qual não se realiza sem percalços. Se algum “pré-programa” definindo a identificação existe, é mais porque o corpo é também um organismo e o sujeito é igualmente um animal cultural. “Quem sou como ser sexuado?” – questão que Lacan considera fundamental na existência de todo sujeito – mostra-se mais atual do que nunca.
Cada sujeito é naturalmente atravessado por dúvidas íntimas sobre sua feminilidade ou masculinidade, em menor ou maior grau (como a estranheza que ressente um transexual entre sua anatomia e seu sentimento de pertencer a outro gênero). Mas uma sociedade que indica aos jovens que tentar definir seu gênero é estar por fora (os manequins-estrela não têm hoje um look voluntariamente andrógino, como Saskia de Brauw, que passa da capa da Vogue feminina ao desfile da coleção masculina de Saint Laurent?), não estaria intensificando a dificuldade que eles têm de definir sua identidade sexual?