Despoluição em excesso leva à morte

A indústria turística comemora a cristalinidade que atrai hordas de visitantes. Foto Felix Kaestle/DPA

Recuperado, Lago de Constança, na Alemanha, ficou tão limpo que faltam nutrientes para os peixes

Por Renata Malkes | ODS 6 • Publicada em 23 de novembro de 2016 - 09:00 • Atualizada em 5 de junho de 2019 - 03:27

A indústria turística comemora a cristalinidade que atrai hordas de visitantes. Foto Felix Kaestle/DPA
A indústria turística comemora a cristalinidade que atrai hordas de visitantes. Foto Felix Kaestle/DPA
A indústria turística comemora a cristalinidade que atrai hordas de visitantes. Foto Felix Kaestle/DPA

Era uma vez um lago cristalino. A paisagem ao redor é exuberante. No verão, as águas calmas, de tonalidade azul turquesa, disputam a atenção dos visitantes com o verde reluzente das montanhas vizinhas. Durante o inverno, o contraste de cores se faz ainda mais esplendoroso diante do cume dos alpes, coberto pela neve. Mas, por trás da beleza desse palco idílico, esconde-se um elemento inesperado – a morte. E o cenário é real. Trata-se do Lago de Constança, no Sul da Alemanha, onde após pesados investimentos em despoluição, a água, de tão limpa, tem feito com que os peixes morram devido à falta de nutrientes. Pescadores, de redes vazias, vêm perdendo sua fonte de renda nos últimos anos e levantando a um debate impensável para o imaginário brasileiro: será que existe água limpa demais?

A água é cristalina como no século passado, mas isso não é natural. Em 2014, registramos o pior ano desde 1954, com a captura de 441 toneladas. Tememos pelo nosso futuro, mas também pela mudança no ecossistema do lago.

“Desde 2012 estamos assistindo a um colapso dramático, mas nunca foi tão ruim como este ano. Antes, nossas redes capturavam entre 15 e 25 quilos de peixe branco por dia. Hoje, com sorte, pescamos meio quilo”, contou o pescador Roland Stohr, de 51 anos, ao diário “Süddeutsche Zeitung”.

Presidente da cooperativa de pesca da Baviera, Stohr herdou do pai o barco de pesca e há 34 anos navega pelo Lago de Constança (Bodensee, em alemão) em busca do seu sustento. Mas, hoje, há dias em que ele e os outros cerca de 100 pescadores profissionais que restam na região voltam para casa completamente de mãos abanando. E o motivo é o nível de pureza do lago, monitorado pelas mais rígidas normais ambientais da Europa: falta fosfato na água. O fosfato é um nutriente importante, que faz com que as algas cresçam. Essas servem de alimento para os plânctons que, por sua vez, são comida para os peixes.  Eles estão morrendo desnutridos, à míngua. Se sobrevivem e se reproduzem, são tão miúdos que se tornam irrelevantes para a pesca e, consequentemente, para o consumo.

Os pescadores defendem medidas "poluentes" para devolver ao lago "a naturalidade perdida". Foto Felix Kaestle/DPA
Os pescadores defendem medidas “poluentes” para devolver ao lago “a naturalidade perdida”. Foto Felix Kaestle/DPA

“Há três décadas, um peixe branco do lago pesava cerca de meio quilo aos três anos de idade. Hoje, esse peixe demora quatro anos para alcançar cerca de 300 gramas”, lamentou Stohr.

O teor de fosfato na água está, hoje, entre seis e sete miligramas por metro cúbico – em contraste aos cerca de 80 miligramas registrados na década de 1980, quando, em vias de recuperação, o lago ainda tinha peixes em abundância. Situado ao pé dos alpes em uma área de 572 quilômetros quadrados, o Lago de Constança banha não só a Alemanha, como a Áustria e a Suíça. É o terceiro maior lago da Europa Central e seu ponto mais profundo alcança 252 metros. Dele dependem cerca de cinco milhões de pessoas para obter água potável. Naturalmente, devido à procedência alpina, a água já tem baixas quantidades de minerais e metais pesados.

Um ministério do Meio Ambiente existe para melhorar a qualidade da água, não para piorá-la. Não vou jogar nada lá para fazer com que os peixes fiquem mais gordos.

Mas essas águas cristalinas e hoje potáveis já foram, inclusive, impróprias para banho. Logo após a Segunda Guerra Mundial e a recuperação econômica alemã na década de 1950, o chamado Wirtschaftswunder, o Lago de Constança se viu ameaçado. A industrialização nos arredores levou ao aumento da população e, ainda, da atividade agrícola. O lago entrou em processo de eutrofização –  fenômeno que ocorre quando a quantidade de nutrientes, principalmente nitratos e fosfatos, é elevada demais. Isso acontece, sobretudo, graças à contaminação da água por meio da ejeção de adubos, fertilizantes, detergentes e esgoto doméstico sem tratamento prévio.

Águas claras, futuro negro?

Somente em 1963 a Comissão de Proteção das Águas do Lago de Constança percebeu que os altos níveis de fosfato eram a causa da eutrofização. A solução para o problema passou pela construção de estações de tratamento e esgoto e pelo desenvolvimento de um rígido sistema de filtragem de resíduos, de acordo com os parâmetros da União Europeia. Foram investidos, ao todo, 5 bilhões de euros na iniciativa. Do ponto de vista ambiental, a iniciativa é considerada um sucesso. A indústria turística também comemora a cristalinidade que atrai hordas de visitantes, banhistas e praticantes de esporte no verão. Mas, para os pescadores, o impacto na economia regional foi devastador. Muitos criticam o excesso de limpeza. E já defendem medidas “poluentes” para devolver ao lago o que veem como “uma naturalidade perdida”.

“A água é cristalina como no século passado, mas isso não é natural. Em 2014, registramos o pior ano desde 1954, com a captura de 441 toneladas. Tememos pelo nosso futuro, mas também pela mudança no ecossistema do lago”, afirmou Anita Koops, da Associação Internacional de Pesca do Lago de Constança, ao diário “Die Welt”.

Surgiu, então, um conflito entre interesses ecológicos e econômicos. Os pescadores discutem três maneiras de aumentar sua captura: pressionar por uma autorização para que cada barco use mais do que as seis redes permitidas por lei, adotar redes com malhas menores a fim de pegar mais peixes e, por fim, a mais polêmica delas – reintroduzir fosfato à água. A briga tornou-se política. E, por ora, não parece ter fim. Desde 2000, uma normativa obriga os países-membros da União Europeia a cumprir metas relacionadas à qualidade da água. E desde 2015, outra regra do bloco determina que não podem haver retrocessos nos avanços já alcançados.

Tanto Áustria quanto Suíça e Alemanha se recusam a poluir o lago. No lado alemão, a negativa é contundente. Segundo Franz Untersteller, ministro de Meio Ambiente do estado de Baden-Württemberg, do Partido Verde, deixou claro recentemente que “um ministério do Meio Ambiente existe para melhorar a qualidade da água, não para piorá-la”.

“Não vou jogar nada lá para fazer com que os peixes fiquem mais gordos”, sentenciou.

Um jovem merculha no belo e limpíssimo Lago Constança, no Sul da Alemanha. Foto Felix Kaestle/DPA
Um jovem merculha no belo e limpíssimo Lago Constança, no Sul da Alemanha. Foto Felix Kaestle/DPA

Renata Malkes

Carioca nada da gema, na Alemanha desde 2016. Mestre em Estudos de Paz e Guerra pela Universidade de Magdeburg. Jornalista, inconformista e flamenguista. Mochileira e cervejeira. Ex-correspondente do jornal O Globo no Oriente Médio e da alemã Deutsche Welle no Brasil. Contadora de 'causos', mantém as antenas ligadas em ciência, direitos humanos e política internacional.

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