ODS 1
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Veja o que já enviamosQuanto mais feminista me torno, menos eu romantizo a amizade entre mulheres
Restringir o poder da nossa união a um laço de afinidades e emoções é uma forma de nos menosprezar politicamente
Entre a longa, detalhada e nem sempre justificável lista de coisas que me causam irritação, a romantização da amizade feminina faz meus olhos reviraram feito uma roleta. Posts de design duvidoso dizendo que “sempre que você cai, é outra mulher que te levanta” e bobeiras do tipo acabam colocando sempre na posição de cuidadoras, fortalezas, instituições para a manutenção do bem-estar alheio. Ainda que de outra mulher.
Não estou aqui para defender homem – inclusive, cruz credo! -, não se trata disso. O que ando pensando é que essa ideia de que naturalmente vamos carregar umas as outras na direção da cura ou qualquer coisa que o valha é uma falácia. Primeiro, porque pode pode causar frustrações, afinal ninguém tem obrigação, responsabilidade, ou predestinação mística em relação à felicidade de outra mulher.
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Veja o que já enviamosDepois, porque é um pensamento muito do patriarcal esse de que somos apenas corações abertos, doação e acolhimento. Sem contradições. Sem espaço para o dúbio, o imoral, o impróprio, o equívoco. Sem margem para estar de saco cheio que seja. É mais uma forma de nos aprisionar em um espaço em que ninguém cabe, esse estereótipo da amiga proverbial “que te levanta quando você cai”.
Particularmente, as piores quedas da minha vida foram justamente quando alguma amiga “me derrubou”, e não no sentido besta e vulgar da rivalidade feminina que tentam nos enfiar goela abaixo. Mas por sofrer alguma decepção justamente de onde acreditei que ela jamais viria, uma amizade – e aí não importa qual seja o gênero. Coração partido por amizade dói. Mas faz parte do jogo.

O que quero dizer é que acredito inegociavelmente que mulheres devem ser livres para serem o que quiserem, inclusive pessoas detestáveis. O fato de sermos mulheres não nos torna instantaneamente ou naturalmente dóceis, acolhedoras ou amigas. E esperar que isso aconteça é querer jogar nossas potencialidades políticas no campo da emoção e dos afetos, da irracionalidade, do subjetivo – o que nem é um problema em si, mas sim quando esses valores são colocados como polo oposto da racionalidade, essa sempre atribuída aos homens.
Dividir as agruras e as delícias de habitar o mundo enquanto mulher faz sim, com que – pelo menos em tese – compreendamos melhor o que a outra passa, e tenhamos uma base sólida e comum para enfrentar o que nos subjuga, diminui, oprime e, em casos extremos, nos extermina. É sabermos que nenhuma de nós está, de fato, livre, enquanto uma única de nós que seja não estiver. E isso é uma força política imensurável, imparável.
Ser mulher é uma revolução, com os ônus e bônus inerentes às empreitadas revolucionárias. Que nunca consigam nos congelar nessa imagem idealizada em que estamos trançando os cabelos umas das outras como se não soubéssemos ou fôssemos capazes de nos unir para empunhar palavras como lanças, silêncios como escudos e o afeto como estratégia de insubmissão.
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