Suzi acordou com o barulho da água e perdeu quase todos os móveis de casa (Foto: Micael Olegário)

Crônica de um pesadelo: “não durmo quando chove à noite”

Crônica de um pesadelo: “não durmo quando chove à noite”

Por Micael Olegário ODS 10

Família foi acordada pela água invadindo a casa. Objetivo é tentar vender ou trocar de imóvel para conseguir descansar em noites de chuva

Publicada em 29 de abril de 2025 - 00:11 • Atualizada em 29 de abril de 2025 - 09:40

Santa Maria (RS) – Era madrugada quando a família de Suzi Bolzan Zanon, 51 anos, entrou em um pesadelo incessante. Já faziam quase 7 anos que a família morava em uma casa do bairro Campestre do Menino Deus, local cercado por morros e próximo ao Rio Vacacaí-Mirim. Em outras chuvas fortes, a água tinha invadido a garagem de madeira que fica em um nível menor do que o restante da casa, mas dessa vez foi totalmente diferente e pior. “Quando eu botei os pés no chão, a água estava no meio da minha canela”, relembra Suzi.

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Logo após acordar com o forte barulho da água, Suzi e o marido, Felipe Post, 55 anos, começaram a tentar salvar o que podiam. Eram por volta de 1h30 de 30 de abril de 2024, nesse dia Santa Maria registrou 134,6 milímetros de chuva, segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). No intervalo de três dias, entre 30 de abril e 2 de maio, foram 470,7 mm de precipitação no município da região central do Rio Grande do Sul.

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“Não durmo quando chove à noite”, afirma Suzi. Passados quase 365 dias do desastre, a família ainda carrega as lembranças e o medo que sentiram naquela madrugada. “Não gosto nem de lembrar daquela noite, chega me dar um tremor e um estado de nervos”, conta a vigilante, atualmente desempregada.

Levou quase um mês para conseguirmos tirar todo o barro

Suzi Bolzan Zanon

O terreno da casa onde Suzi e Felipe moram com a filha, Alana Zanon Post, 20 anos, sempre ficou alguns metros abaixo do nível da rua. Nos fundos da casa, um dos córregos do Vacacaí-Mirim está a cerca de 15 metros. O Rio serpenteia o bairro e faz uma volta na rua, assim durante a enchente, a residência da família ficou cercada por água em todas as direções.

Felipe e Alana passaram praticamente 2 horas tentando barrar a entrada de mais água pela porta da frente da casa, que cedeu com a força da correnteza que se formou. Enquanto isso, Suzi tentava salvar o que podia dos móveis e pertences da família. “A água cobriu o carro que nós tínhamos. Deu perda total. A geladeira tombou dentro da cozinha, as coisas começaram a boiar”, descreve ela.

Na garagem e do lado de fora da casa, a água subiu cerca de 1 metro e 50 cm. Dentro do imóvel, a água chegou a 80 cm, destruindo sofás, estantes, balcões, camas, eletrodomésticos e memórias. Álbuns foram perdidos na inundação, muitos com fotos antigas da infância de Alana. “Lembranças que vão ficar só na nossa memória”, lamenta Suzi. Alguns documentos como certidões de nascimento e casamento também tiveram que ser refeitos pela família.

Duas fotos coloridas das enchentes na casa de Suzi Zanon, em Santa Maria. Na imagem da esquerda, aparece a inundação vista do lado de fora da casa (totalmente ilhada). Na imagem da direita, aparece a lama dentro da casa
Família ficou ilhada; limpeza da casa demorou cerca de um mês (Foto: Arquivo Pessoal)

Uma tragédia presente

Eram 5 horas quando a água baixou e permitiu que Suzi, Felipe e Alana saíssem. Depois da enchente, a família passou 40 dias na casa do pai de Suzi, grande parte desses dias foram utilizados para limpar a residência que foi tomada pela lama. “Levou quase um mês para conseguirmos tirar todo o barro”, complementa Suzi.

Mesmo com seguro contratado para o carro, a família ainda teve de desembolsar cerca de R$5 mil para quitar o restante das parcelas do financiamento e receber o valor estipulado no contrato. Por conta do medo de novas chuvas e enchentes, Suzi e Felipe preferiram alugar uma casa em outra parte da cidade. 

Apenas em dezembro de 2024, a família retornou para a residência no Campestre do Menino Deus. “Por mim não teria voltado”, pontua Suzi. Quando a reportagem do #Colabora visitou o local, o dia estava nublado, Suzi estava junto de suas duas companheiras felinas, as gatas Micuim, 8 anos, e Preta, 9 anos. Algumas marcas da enchente ainda eram visíveis: as ferrugens no batente da porta da frente da residência e os bancos de areia que ficaram depositados nos fundos do terreno.

Ao relembrar do desastre, a vigilante ressalta como o episódio deixou a vida da família em suspenso. Na época, Alana trancou o semestre dos cursos de Tecnologia de Alimentos, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), e de Biomedicina, no polo da Unopar (Universidade do Norte do Paraná) do município.

Os impactos psicológicos e emocionais se intensificaram no dia 1° de maio de 2024, quando um deslizamento de terra matou Liane Ulguin da Rocha, 45 anos, e Emily Ulguin da Rocha, 17 anos, no bairro Itararé, também em Santa Maria. “Nós perdemos uma amiga e a filha dela naquele deslizamento. A menina por 5 dias não fez 18 anos. Eu conheci a Emily quando ela tinha 4 anos de idade”, conta Suzi.

Foto colorida de quadros com fotos pendurado em parede da casa de Suzi
Quadros foram salvos, mas família perdeu álbuns de fotos e memórias (Foto: Micael Olegário)

Casa está a venda

Muitos dos moradores do bairro se mudaram ou colocaram suas casas à venda após as enchentes de abril e maio de 2024. Esse também é o caso da família de Suzi. Apesar de ter voltado a morar no local, a insegurança e os traumas fazem com que a família não consiga descansar ou recuperar uma “normalidade”.

“Essa casa está à venda, estamos tentando vender ela ou trocar”. Ainda assim, Suzi não esconde dos possíveis interessados o que aconteceu e que a casa foi inundada. Segundo ela, a enchente a fez compreender a situação de outras pessoas que vivem em locais que sofrem constantemente com alagamentos e enchentes.

“Se tiver que vir outra enchente, espero que não seja tão forte, não para fazer a gente perder quase tudo”. Com a chegada do outono e o início do mês de abril, choveu novamente em Santa Maria. Mesmo não sendo nada comparadas ao último ano, as precipitações deixaram a família de Suzi em alerta. “Já estava até com uma mala de roupa pronta. Porque se começasse a subir o nível da rua, a gente entrava no carro e picava o mundo”.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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