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Primeira DJ Surda: Lenny agita e revoluciona o universo da música

“Meu sonho é ser professora de música para surdos”, afirma Helenne Sanderson. Vibrações permitem produção de músicas por pessoas surdas

A música sempre despertou a curiosidade de Lenny Vibe. Ainda na adolescência e incentivada pela mãe, ela começou a ter aulas de diferentes instrumentos. “Eu queria saber que eu posso, enquanto surda, também ter acesso à música”, conta Helenne Schroeder Sanderson, mais conhecida como Lenny Vibe. Com o tempo, a jovem aprendeu a sentir as vibrações das músicas e se tornou a primeira DJ surda do Brasil.
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Natural de Barreiras, no oeste da Bahia, Lenny perdeu a audição quando tinha dois anos e meio devido a um quadro de meningite. Aos 15 anos, ela se mudou para Brasília, onde aprendeu a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e começou a interagir com a comunidade surda. Foi assim que percebeu a falta de incentivo e a exclusão, duas barreiras que afastam surdos da música e, consequentemente, de diferentes espaços sociais.
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Veja o que já enviamosInicialmente, Lenny tentou aprender a tocar piano, porém sentia dificuldade em sentir as teclas e a vibração do instrumento. “Eu gostei mais do violão, porque como ele fica colado ao corpo, sentia ele vibrar”, descreve. Pouco depois, ela também experimentou tocar contrabaixo e, por um tempo, sonhou em fazer parte de uma banda de rock.
O meu objetivo não é ser profissional, mas sim diversão e quebrar essa estrutura, esses tabus que existem e mostrar que é possível que um surdo trabalhe com música
Anos mais tarde, uma amiga convidou Lenny para ir em uma rave. Nesse dia, ela ficou fascinada com os graves da música eletrônica. “O meu corpo vibrou muito e comecei a sentir tudo. Eu percebi a diferença de cada música e fui acompanhando”. Através de cursos no YouTube e com o auxílio de um grupo de cultura surda da Universidade de Brasília (UnB), ela conheceu recursos de acessibilidade e tecnologias assistivas que amplificam a vibração das músicas.
Já depois de se mudar para a cidade de Santa Maria (RS), Lenny viajou para São Paulo para fazer cursos com diferentes DJs. A primeira experiência no controle de um mixer foi em outubro de 2022, em uma festa com a presença de surdos e ouvintes. “Começou a minha música e os surdos pararam e começaram a olhar pra mim. Eles me deram atenção, porque eu escolhi uma música que ia ter uma vibração alta”.
Na época, ela teve o auxílio do também DJ, influenciador e multiartista surdo Gabriel Isaac. Desde então, Lenny já participou de diversos eventos e chegou a fazer uma viagem para França para aprimorar seus conhecimentos e habilidades na área.
Vibração e ondas sonoras
A música é percebida pelo nosso corpo através de diferentes ondas sonoras. Quando uma corda ou outro objeto entra em movimento, isso gera um efeito de pressão sobre o ar em diferentes frequências. Esses padrões de vibração são percebidos pelos nossos ouvidos e pelo nosso corpo de forma variada. Sons com frequência mais alta são chamados de agudos e em menor frequência de graves.
No caso das pessoas surdas, são as vibrações que permitem a identificação das melodias e dos ritmos musicais. Existem também tecnologias assistivas que auxiliam essa percepção, como coletes e faixas táteis que podem ser colocadas nos pulsos ou tornozelos para transformar músicas em vibrações. O Timbrasom é um exemplo de aplicativo que também produz essa conversão, o que permite o consumo e a produção de música por pessoas surdas.
Para Lenny, a produção musical é como escrever uma redação com diferentes notas. “Foi essa palavra, redação, que quebrou para mim todos esses paradigmas e me fez compreender que é possível um/a surdo/a fazer música”. Segundo ela, a música é um elemento chave da cultura e precisa estar acessível para a comunidade surda. “O meu sonho é ser professora de música para surdos”, afirma.

Pesquisadora e atleta
“Baiucha”, como define a si mesma na mistura de baiana com gaúcha, Lenny trabalha atualmente como professora de Libras. Ela tem mestrado em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e, em 2022, começou o doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com o objetivo de pesquisar sobre música para surdos. A intenção é concluir a tese para depois dedicar mais tempo para produzir seu próprio som.
Segundo a DJ surda, existem diferentes estratégias e recursos que podem auxiliar com que surdos e ouvintes possam participar de festas e shows juntos. “O chão seria importante que vibrasse. Uma mochila que tivesse vibração e um telão para ter a visualidade das cores”, exemplifica. Além disso, ela pontua a importância de levar esse conhecimento para as escolas e para o cotidiano da comunidade surda.
“O meu objetivo não é ser profissional, mas sim diversão e quebrar essa estrutura, esses tabus que existem e mostrar que é possível que um surdo trabalhe com música”, destaca a professora de Libras. Segundo ela, essa também é uma forma de enfrentar o capacitismo e ser exemplo de independência para a filha Sofia, junto com a companheira Carilissa Dall’Alba, também professora de Libras.
A história da relação entre Helenne e Carilissa foi contada pelo #Colabora em 2020. “Nós duas queremos mostrar para nossa filha que é ouvinte, que também somos modelos para ela”, pontua Lenny. Em conjunto com a música, ela também nutre outras paixões, como viajar, praticar karatê e jogar basquete. Em 2022, Hellene participou das Surdolimpíadas de Caxias do Sul. “Falta verba e incentivo, principalmente para as mulheres é mais fraco”, lamenta ela, sobre os desafios de praticar o esporte.
Surdos e a música
Assim como Lenny, existem diversas pessoas surdas que trabalham e compõe música. O exemplo mais ilustre talvez seja o de Ludwig van Beethoven (1770-1827). O célebre pianista e compositor alemão perdeu progressivamente a audição e, quando compôs a “Nona Sinfonia” em 1824, já estava completamente surdo.
Outro exemplo internacional é o da percussionista Evelyn Glennie. Surda desde a infância, a escocesa se tornou uma música e compositora profissional e, ao longo de sua carreira, venceu três vezes o Grammy Awards. Também no Reino Unido, o coletivo Deaf Rave foi criado, pelo DJ surdo Troi Lee para divulgar música para surdos e incentivar pessoas com deficiência – auditivas, principalmente, mas não apenas – a desfrutar do universo musical. O Deaf Rave já ajudou a formar outros DJs surdos.
No Brasil, o gaúcho Afonso da Luz Loss se tornou um das principais referências de DJs surdos, após iniciar sua carreira em meio à pandemia de Covid-19. Outro exemplo é o de Bruno Camurati, cantor e compositor surdo que já lançou quatro álbuns. O multiartista e influenciador Gabriel Isaac também entra nessa lista. Ele ganhou repercussão por meio do canal Studio Isflocos, com conteúdos voltados para a comunidade surda.
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.