Com as mãos atadas: intérpretes de Libras denunciam assédio moral e atraso de salários

Relatos de profissionais que atuam na UFRJ apontam degradação das condições de trabalho. Intérpretes de diferentes locais descrevem a desvalorização da profissão

Por Micael Olegário | ODS 8 • Publicada em 17 de dezembro de 2024 - 08:41 • Atualizada em 17 de dezembro de 2024 - 12:28

Intérpretes apontam desvalorização e falta de reconhecimento do trabalho (Foto: Canva/Ilustrativa)

Intérpretes e tradutores de Libras (Língua Brasileira de Sinais) convivem com uma rotina de pressão e exaustão emocional e psicológica. Profissionais contratados para atuar na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) relatam atraso frequente no pagamento dos salários e assédio moral. Além disso, o regime de trabalho em diferentes atividades, eventos e cursos inviabiliza o estudo e pesquisa necessários para fazer a tradução entre a Libras e o português.

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“Eu já tenho até pensado em entrar com um processo de demissão indireta, porque aí vou conseguir receber os meus direitos garantidos por CLT e me livrar desse tormento”, afirma Maria*. Ela é uma das profissionais que atuam na UFRJ desde 2021, quando teve início o contrato com a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis) para prestação de serviço nos campi do Rio de Janeiro e Macaé. Ao longo dos doze meses de 2024, em dez deles Maria recebeu seu salário atrasado e, em novembro, o atraso chegou a 20 dias.

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Se eu estou com cara de cansada, não é o esgotamento físico e emocional que a UFRJ está me submetendo? Eu tenho um lugar de privilégio muito grande, porque eu tenho outro trabalho. E quem só depende disso?

Maria*
Intérprete de Libras na UFRJ

Os profissionais também enfrentam dificuldades em conversar com a Feneis, entidade sediada em Minas Gerais. O que não impede a cobrança constante para o cumprimento da carga horária de 30 horas semanais. “Teve um mês em que entreguei minha folha de ponto e o coordenador foi perguntar para o aluno que eu atendo, se eu havia paralisado, para descontar no meu vale alimentação. É para o aluno que ele tem que fazer essa pergunta?”, questiona Maria.

O contrato entre UFRJ e Feneis prevê o repasse mensal de R$ 222.047,55 para pagamento dos 45 intérpretes na unidade do Rio de Janeiro. Um outro contrato estabelece o valor de R$ 24.983,85 mensal para quitar os salários e todas as obrigações trabalhistas para cinco intérpretes em Macaé. Somados, os dois contratos possuem valor total de cerca de R$2,9 milhões, abaixo do valor de referência de R$3,96 milhões do edital lançado à época da contratação. Mesmo com os problemas e atrasos, o contrato da capital foi renovado até 31 de setembro de 2025 e o de Macaé até 31 de outubro do próximo ano.

A maioria dos profissionais contratados pela Feneis para atuar na universidade possuem mais de um emprego, mesmo assim, os atrasos geram incerteza e problemas para a quitar as contas. “Como uma pessoa vai trabalhar se muitas vezes não tem o suficiente para se manter dentro de casa?”, aponta Helena*, uma das intérpretes que atuam em Macaé.

O que dizem a UFRJ e a Feneis?

Os relatos feitos à reportagem do #Colabora revelam um jogo de empurra-empurra entre a UFRJ e a Feneis. A assessoria de imprensa da Universidade não respondeu ao contato feito para se posicionar sobre o assunto. Porém, aos intérpretes, a instituição alega que faz os repasses sempre com antecedência de dois meses. A UFRJ também utiliza como justificativa o artigo 137 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n°14.133/2021) que prevê a extinção do contrato somente com atraso nos pagamentos superiores a dois meses.

Em resposta aos questionamentos da reportagem, a Feneis alega ser uma entidade sem fins lucrativos e que, por isso, não possui caixa reserva e depende dos repasses mensais para pagar os salários dos intérpretes. A entidade afirma que, assim que o dinheiro é enviado pela Universidade, o pagamento é efetuado. “A Feneis tem buscado solucionar os problemas de atrasos com reiteradas notificações à UFRJ, assim como envio de e-mails e ligações, suplicando que honrem o compromisso que assumiram no contrato para que os colaboradores que prestam serviços diretos em benefício da Universidade não sofram com atrasos”, diz a nota.

“A gente não sabe o que está acontecendo, fica esse jogo de empurra: a UFRJ diz que pagou e a Feneis diz que não recebeu”, conta João*, também intérprete no Rio de Janeiro. A falta de informações e organização são outros elementos que geram angústia e desgaste para os profissionais. 

O professor parte do princípio que todos que estão ali, os alunos da sua turma, todos já dominam aquela linguagem, e dominam, só que eu não

João*
Intérprete de Libras na UFRJ

Segundo Maria, os intérpretes são orientados a não fazer reclamações de forma coletiva, todas as dúvidas ou solicitações precisam ser encaminhadas de forma individual, o que dificulta a mobilização por mudanças e respostas. “A Feneis é uma federação de integração de surdos, então deveria ser um lugar que tem total conhecimento sobre a minha área de trabalho, mas são extremamente desrespeitosos, bloqueiam a possibilidade da gente se comunicar com a empresa em grupo”.

Em alguns casos, determinados intérpretes chegaram a fazer paralisações devido ao atraso nos pagamentos pela Feneis e, depois, tiveram seus salários e vale alimentação descontados. “A gente sabe que eles não têm direito de descontar, mas descontam com vontade os dias em que nós não trabalhamos por estarmos paralisados, por conta da falta de dinheiro”, descreve João.

Maria cita também a falta de substituição em caso de falta de um profissional, mesmo com atestado médico. “Na verdade, o meu trabalho na Feneis, virou um trabalho filantrópico, porque é na hora que eles decidem pagar. Eu não tenho nenhuma questão se a UFRJ não fez o repasse, porque meu contrato é assinado com a Feneis”, acrescenta a intérprete.

Em geral, entidades sem fins lucrativos não podem participar de processos de licitação. Porém, uma decisão do Tribunal de Contas da União no julgamento do Acórdão nº 1.406/2017 permite a participação dessas entidades, desde que o objeto da licitação seja ligado com a atividade social fim da organização.

Foto colorida de prédio da UFRJ. Na imagem, aparece o prédio de lado, com diferentes árvores e uma calçada na frente. Ao fundo, céu azul
Mesmo com reclamações dos intérpretes, contratos com a Feneis foram renovados; intérpretes reclamam de falta de diálogo (Foto: Divulgação/UFRJ)

Condições de trabalho

Assim como a tradução entre línguas orais (português e espanhol, por exemplo), a passagem do português para a Libras e vice-versa, envolve diferentes fatores. Um primeiro ponto está na diferença como as duas línguas se constituem: oral-verbal no caso do português e visual-expressiva no caso da Libras, o que implica em diferentes construções de sentido e significado. Além disso, a própria cultura surda também afeta a forma como os profissionais fazem a tradução e interpretação.

João conta que essas questões de tradução e interpretação não são levadas em consideração pelos coordenadores no cotidiano. Atualmente, ele atua em três cursos de graduação de áreas distintas, com termos e conteúdos diferentes. Em outros momentos, ele precisa interpretar em cursos de pós-graduação, o que aumenta a dificuldade. “O professor parte do princípio que todos que estão ali, os alunos da sua turma, todos já dominam aquela linguagem, e dominam, só que eu não”.

As pessoas não pensam como um trabalho. É como se a língua (Libras) fosse menosprezada.

Ludmilla Ximenes
Intérprete de Libras na Unipampa

Mesmo com a diferença no nível dos cursos, a remuneração paga aos profissionais é a mesma para graduação e pós-graduação. João acrescenta o desafio gerado pela falta de conhecimento e consideração dos professores. “Quando a gente levanta a mão e fala: ‘opa, não entendi’, ele simplesmente olha para a minha cara com desdém e continua”. Nesse caso, os mais prejudicados são os estudantes surdos e a própria ideia de acessibilidade.

Sobre isso, Helena conta que, em um evento em Macaé, ela teve de interpretar uma palestra de uma professora que falava em espanhol, o que demandou uma tradução dupla, do espanhol para o português e depois para a Libras. “Como você faz numa situação dessa? Minha colega olhou para mim com cara de desespero. O que eu entendi eu interpretava, e o que não compreendia, eu dava uma pausa até conseguir pegar o contexto”, relata.

“O grande prejudicado por tudo isso, sem sombra de dúvidas, é o aluno surdo”, pontua Maria, sobre a dificuldade de organização das rotinas de trabalho pela Feneis e UFRJ. Ela também revela que já foi cobrada por chegar no trabalho apresentando sinais de cansaço. “Se eu estou com cara de cansada, não é o esgotamento físico e emocional que a UFRJ está me submetendo? Eu tenho um lugar de privilégio muito grande, porque eu tenho outro trabalho. E quem só depende disso?”.

A realidade de intérpretes em outros locais

A falta de remuneração digna e de reconhecimento do trabalho não afeta apenas intérpretes de Libras que atuam na UFRJ. Profissionais de outras localidades relatam problemas semelhantes, principalmente, pela ideia de que a tradução de língua de sinais é simplesmente “balançar as mãos”. Intérprete de Libras em uma faculdade privada no Rio Grande do Sul, Joana* cita a dificuldade com o vocabulário e a ausência de uma colega para dividir o trabalho. Pela Lei 14.704/2023 que regulamenta a profissão no Brasil, quando o trabalho de interpretação excede 1 hora, são necessários no mínimo dois profissionais para fazer o revezamento. 

O contratante não sabe Libras e contrata o que oferecer o preço mais barato, sem se importar se o serviço contempla as necessidades de acessibilidade

Rayane Oliveira
Intérprete de Libras

“Estou desde o começo do ano sozinha, apenas uma disciplina que eu tenho dupla e o certo seria ter dupla em toda a aula. Porque também são vocabulários e conteúdos que eu não domino”, conta Joana. Hoje sua principal forma de remuneração é através do serviço prestado como microempreendedora individual (MEI), contudo, em alguns casos, o valor oferecido é totalmente incompatível com o serviço. “Acham que por R$200 ou R$300 tu tem que interpretar um show de duas horas, sendo que são músicas que tu tem muito trabalho antes. Tem que sentar junto com um surdo e fazer essa troca”.

Ludmilla Ximenes atua como intérprete terceirizada na Universidade Federal do Pampa (Unipampa) em São Borja (RS). Para ela, existe confusão sobre o que é um intérprete de Libras, o que afeta até a abertura de editais de concurso. “Existe o desconhecimento do que é o intérprete de Libras e o que é o professor de Libras. Esses cargos se confundem. Então, eles acabam contratando professor de Libras, mas para serem intérpretes”.

A extinção da realização de concursos para esses cargos na administração federal também trouxe impactos negativos para os profissionais, aponta Ludmilla. Outro ponto citado por ela está ligado à própria desvalorização do trabalho em si. “As pessoas não pensam como um trabalho. É como se a língua (Libras) fosse menosprezada. Quando a gente está traduzindo algo para alguém fora da universidade, as pessoas veem como se fossem voluntários, querem que nós sejamos voluntários sempre”, complementa ela.

Piso mínimo salarial

O Projeto de Lei (PL) 3348/2024 prevê o estabelecimento de um piso salarial nacional e critérios de reajuste anual para tradutores, intérpretes e guia-intérpretes de Língua Brasileira de Sinais. Porém, o valor ainda não foi definido e o PL aguarda parecer da Comissão do Trabalho da Câmara dos Deputados. Atualmente, a Febrapils (Federação Brasileira das Associações dos Profissionais Tradutores e Intérpretes e Guia-Intérpretes de Língua de Sinais) possui uma tabela de referência de honorários para o pagamento de serviços relacionados à interpretação e tradução de Libras.

Iniciativas culturais como a Lei Paulo Gustavo e a Lei Aldir Blanc já preveem a necessidade de acessibilidade nos seus editais, o que nem sempre garante a efetividade da comunicação com os surdos. Para Rayane Oliveira, intérprete de Libras em São Paulo, o que falta é fiscalização e maior critério para seleção. “O contratante não sabe Libras e contrata o que oferecer o preço mais barato, sem se importar se o serviço contempla as necessidades de acessibilidade”, aponta ela.

Uma das alternativas apontadas por ela como forma de qualificar o serviço de interpretação e tradução é a contratação de consultores surdos, a exemplo do que já é feito pelo Ministério da Educação (MEC), por exemplo. “O ideal seria pensar em acessibilidade desde o início do projeto. É igual construir uma casa, se você quer uma casa acessível, na planta você já vai ter que desenhar um projeto acessível”, acrescenta Rayane.

A intérprete paulista também atua como MEI e menciona a dificuldade de participar de licitações e editais, principalmente, pela concorrência com empresas maiores e outras que colocam preços abaixo do que seria aceitável para a função. “Chega ser triste e muitos profissionais têm dificuldade de competir com essas empresas que sempre pegam esse tipo de trabalho”. 

Outro desafio é a própria necessidade de sempre educar os clientes sobre a acessibilidade como um direito. “Falta o intérprete de Libras ser colocado em um patamar de tradutores de línguas orais”, enfatiza Rayane. Na visão dela, a exigência de um piso mínimo seria um dos caminhos para melhorar as condições de trabalho dos intérpretes de Libras no país, junto com a fiscalização e a consultoria de pessoas surdas.

*Maria, Helena, Joana e João são pseudônimos utilizados para proteger e preservar as identidades dos/as intérpretes e tradutores de Libras.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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