Brasil discute o futuro do ensino médio entre novos e velhos dilemas

Estudantes em protesto pela revogação do Novo Ensino Médio: mudança principal está na carga horária obrigatória (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil – 15-03-2023)

Especialistas avaliam pontos positivos e negativos de nova reforma do currículo e seus impactos na educação

Por Micael Olegário | ODS 4 • Publicada em 2 de agosto de 2024 - 08:42 • Atualizada em 9 de agosto de 2024 - 09:54

Estudantes em protesto pela revogação do Novo Ensino Médio: mudança principal está na carga horária obrigatória (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil – 15-03-2023)

O ensino médio brasileiro vai passar por uma nova fase de mudanças a partir de 2025. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou nesta quinta-feira (01/08) a lei 14.945/2024 com alterações no Novo Ensino Médio (NEM). Na medida, o governo vetou alguns pontos do texto aprovado pelo Congresso Nacional, entre eles o que previa a adaptação de vestibulares e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) com base nos itinerários formativos. Professores e estudantes apontam pontos positivos e negativos do texto.

Leia mais: Incertezas e desafios de quem estuda para ensinar

Entre as mudanças, estão a carga horária e a definição das disciplinas obrigatórias do currículo. Além de aumentar o número de matérias consideradas na Formação Geral Básica (FGB), a nova legislação estabelece um mínimo de 2.400 horas para disciplinas como matemática, português, inglês, biologia, física, geografia, história, sociologia, entre outras, sendo parte antes consideradas optativas (isso no ensino médio considerado regular). No texto do Senado Federal, o espanhol também tinha sido incluído nessa lista, mas foi excluído da versão final.

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“A única mudança relevante é a questão da carga horária”, afirma Fernando Cássio, professor da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do ensino médio. Na avaliação dele, o texto aprovado na Câmara retirou muitos dos avanços garantidos no Senado, o que, na visão do docente, pode ser atribuído ao papel tímido do governo federal. “O Ministério da Educação é uma ala à direita do governo e não tinha interesse nenhum em defender a reforma do ensino médio”.

Eles usam o discurso de modernização escolar e das profissões do século XXI, mas é uma bobagem, porque se a escola não tiver uma formação básica sólida, ela não serve para nada, nem para interpretar o século XXI, nem o XIX

Fernando Cássio
Professor e pesquisador da USP

Por outro lado, a presidente executiva do Todos pela Educação, Priscila Cruz, pondera que as mudanças na carga horária são bastante significativas para garantir a qualidade da formação básica. “A aprovação da lei do novo ensino médio traz elementos muito importantes para melhorar a qualidade do ensino”, destaca Priscila, em vídeo gravado após a aprovação da reforma. “As mudanças aprovadas trazem perspectivas promissoras para o Ensino Médio brasileiro”, afirma nota da entidade.

Presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes), Hugo Silva, também celebra o aumento da carga horária, mas menciona as diferentes mobilizações realizadas por jovens alunos em busca de mudanças e da revogação do NEM. “É um modelo que não nos representa e não cabe aos nossos sonhos, por isso que travamos uma gigante luta para construir um ensino médio mais adequado para os estudantes brasileiros”, afirma o jovem, estudante do Instituto Federal de São Paulo.

A luta por alterações no Novo Ensino Médio também integra, desde a reforma de 2017, a pauta dos professores. “Nós vimos que era uma decadência em termos de formação geral, de conhecimento, e, inclusive, que não preparava o aluno para disputar uma vaga no vestibular”, explica Rosane Zan, professora há 31 anos e tesoureira do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS), sindicato que representa a categoria no estado. Por isso, a docente acredita que as mudanças recentes representam um primeiro passo e uma vitória parcial.

As principais mudanças no ensino médio

De acordo com Fernando Cássio, a ideia de modernizar o currículo diminuindo o número de disciplinas obrigatórias, uma das essências da reforma de 2017, desconsidera a realidade da educação brasileira. “Eles usam o discurso de modernização escolar e das profissões do século XXI, mas é uma bobagem, porque se a escola não tiver uma formação básica sólida, ela não serve para nada, nem para interpretar o século XXI, nem o XIX”. Por isso, o retorno de disciplinas obrigatórias foi o principal ponto de discussão. Confira algumas das principais alterações da Lei 14.945/2024 sancionada pelo governo:

  • No ensino médio regular: a carga horária obrigatória vai passar de 1.800 horas 2.400. Já os itinerários formativos terão 600 horas; nos técnicos serão 2.100 horas obrigatórias e 900 dos itinerários;
  • Além de português e matemática: inglês, artes, educação física, ciências da natureza (biologia, física, química) e ciências humanas (filosofia, geografia, história, sociologia vão fazer parte da Formação Geral Básica (FGB); o espanhol foi retirado da proposta ao final e continua como oferta opcional;
  • Ao menos uma escola em cada município brasileiro precisa ofertar o ensino médio regular noturno, desde que com comprovação da demanda manifestada nas secretarias;
  • O Conselho Nacional de Educação vai criar diretrizes para a definição dos itinerários formativos pelos estados; eles deverão pertencer a uma das quatro áreas do conhecimento, linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias ou ciências humanas e sociais aplicadas.

Professora da Rede Estadual do Rio Grande do Norte, Paula Fernanda Paiva Fernandes pesquisou sobre a reforma do ensino durante seu mestrado em Educação. Ao lado da orientadora, a professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Marcia Betania de Oliveira, ambas analisaram diferentes elementos das mudanças feitas a partir do NEM. 

De acordo com Paula Fernanda e Marcia Betania, a criação dos itinerários formativos levou muitos professores a terem que ministrar aulas sobre conteúdos que não tinham quase nenhum suporte, apenas guias e materiais genéricos. Sem critérios, cada estado desenvolveu a quantidade desejada de itinerários, com conteúdos que, frequentemente, incluíam empreendedorismo e liderança juvenil, mas chegavam até aulas de como fazer brigadeiro. 

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Sobre as alterações na definição dos itinerários, a avaliação do Todos pela Educação é de que as mudanças recentes devem melhorar sua definição. “O Todos Pela Educação entende como muito positiva a definição clara de que os itinerários formativos são compostos por aprofundamentos das áreas do conhecimento ou de formação técnica e profissional”, diz trecho do posicionamento da entidade.

De acordo com Priscila Cruz, o diálogo com o MEC será essencial para a construção dos itinerários. Ela também vê como positiva a manutenção da possibilidade de escolha de uma área pelos estudantes. “Isso vai dar para o aluno, a possibilidade de experimentar muito sobre determinada área”. A especialista, contudo, ressalta que é necessário atenção com a implementação para que esses indicativos promissores sejam efetivados.

Foto colorida de Hugo Silva. Ele é um jovem preto com cabelo preto. Ele usa uma camisa branca com a logo da ubes e segura um microfone perto da boca
Hugo Silva em discurso pela UBES: estudantes insatisfeitos com alterações feitas na Câmara (Foto: Divulgação/UBES)

Evasão e educação em tempo integral

Fernando Cássio explica que o argumento de que estudantes largam a escola por ela ser chata não se sustenta. De acordo com o pesquisador da USP, a evasão escolar tem a ver com elementos multifatoriais: principalmente pobreza, necessidade de trabalhar, falta de infraestrutura e professores desvalorizados.

“Dizer que 13 disciplinas é muito e criar 276 é uma coisa ridícula e fora da realidade. Não é possível dizer que precisa flexibilizar para dar liberdade, se o sistema não for funcional”, aponta o docente. Outra novidade que tende a esvaziar o potencial de emancipação e mobilidade social da educação é um dispositivo que permite que estudantes que trabalham validem sua carga horária de trabalho, como carga horária letiva nas escolas de tempo integral.

Conforme explica Fernando Cássio, o instrumento permite que jovens de baixa renda tenham matrícula em escolas de tempo integral, o que ajuda a atingir metas do governo. O problema é que, na realidade, estes alunos não terão mais aulas. “É um dispositivo que, na prática, estimula o trabalho juvenil e a desescolarização no ensino médio. E tem mais um elemento de perversidade, porque o estudante que trabalha é geralmente o mais pobre”, complementa.

Professores e estudantes mantêm luta

Para Rosane Zan, do CPERS, outro ponto de preocupação está relacionado à oferta de ensino médio noturno, que em determinados casos só vai existir a partir de demanda reconhecida pelos municípios. A professora gaúcha também critica a retirada do espanhol da lista de conteúdos obrigatórios, o que diminui o potencial da educação para atender uma necessidade de regiões de fronteira, como é o caso do Rio Grande do Sul e outros estados.

“Nós vamos continuar na ideia da revogação do novo ensino médio, para que realmente seja respeitado a consulta pública que foi para o MEC e depois para o Senado com as modificações”, afirma Rosane, que também citou a preocupação com a oferta de ensino à distância e com a manutenção dos recursos para o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação)., outros dois temas em debate.

De acordo com Hugo Silva, da Ubes, a intenção é continuar pressionando o governo para que pontos como apenas 2.100 horas de formação geral para o ensino técnico, entre outros, sejam revistos. “Talvez, o principal problema da escola pública possa ser o novo ensino médio, mas não é o único. Então a gente vai continuar indo para a rua, vai continuar passando de escola em escola, lutando para garantir uma educação de qualidade”, destaca o presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas.

Foto colorida de portão de escola em dia de aplicação do Enem. Na imagem, diversas pessoas aparecem em frente ao portão, que possui um cartaz com informações sobre o Enem
Principal porta de entrada no ensino superior, Enem terá de ser adaptado até 2027 (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

Impactos no Enem e no Sisu

Desde a aprovação da reforma do ensino médio em 2017, tiveram início as discussões sobre os impactos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) – a principal porta de entrada no ensino superior no Brasil. Como mostrou reportagem do #Colabora, estudantes de escolas-piloto do novo modelo tiveram desafios extras para se preparar para a prova, devido às mudanças que retiraram disciplinas como biologia, física, geografia e química da grade curricular obrigatória.

Durante audiências no Senado, o diretor de Avaliação da Educação Básica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Rubens Lacerda, defendeu que o exame não tivesse seu conteúdo ligado aos itinerários formativos. Porém, o posicionamento da entidade responsável pelo Enem não foi atendido pelos deputados. Ao sancionar a nova reforma, o presidente Lula atendeu aos pedidos do Inep e vetou a adaptação de Enem e vestibulares aos itinerários.

“Como você pega um exame nacional de larga escala que dá acesso ao ensino superior e vai pulverizar ele em vários exames?”, questiona Fernando Cássio. Na prática, como o projeto concedia certa liberdade para criar itinerários formativos, a definição das áreas e questões do Enem teria que assumir diferentes modelos, explica o professor da USP. Segundo ele, caso esse ponto não tivesse sido vetado, poderia gerar o colapso do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e limitar as opções de acesso ao ensino superior pelos estudantes.

Investimento em educação

Ao ser questionado sobre os caminhos e possibilidades para o futuro do ensino médio, Fernando Cássio é convicto na defesa de maiores gastos com educação. Ele recorda que o Brasil está entre os países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico OCDE) que menos destinam recursos para o setor. 

O especialista também destaca que o debate do financiamento da educação é objetivo. “Educação é gasto. A questão é que não precisamos transformar o gasto em algo imoral, se considerarmos que gastar com a população é importante. O Estado tem que gastar com a população, se não vai gastar com quem? Banqueiros?”, pontua o professor. 

Para o pesquisador da USP, a mentalidade empresarial tem servido pouco para o contexto de gestão da miséria dos recursos para educação vivido no país. “Criou-se uma reforma do ensino médio, mudou-se o currículo e foi um fiasco, por que? Porque não tem professor, não tem sala, infraestrutura, porque 60% dos municípios só tem uma escola de ensino médio pública”, enfatiza Fernando Cássio.

Questionadas sobre as alternativas para o futuro da educação brasileira, Paula Fernanda e Marcia Betania ponderam que a educação é uma área cercada por diferentes interesses, contextos e contingências. Como exemplo, elas recordam que o ensino médio brasileiro passou por mais de 20 reformulações no período entre os séculos XVIII e XX.  Ainda assim, as professoras indicam que o primeiro passo para melhorar o ensino médio, e para o sucesso de qualquer reforma, deve ser  ouvir quem atua diretamente nas escolas.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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