Receba as colunas de Júlia Pessôa no seu e-mail

Veja o que já enviamos

Vai sobrar algum homem pra gente admirar sem medo?

Como pode a mesma pessoa ser capaz de criar coisas tão admiráveis e de violências tão vis?

ODS 5 • Publicada em 9 de julho de 2024 - 08:11 • Atualizada em 12 de julho de 2024 - 09:10

Quando tinha uns vinte e poucos, embora eu tenha contrariado os versos de um outrora jovem Fábio Júnior e me desfeito de alguns planos pelos outros, comecei minha pequena coleção de tatuagens. Ainda que não ache todas belíssimas, não me arrependo da trilha de estampas que fui fazendo pelo corpo. É como se fosse um mapa de tempos e coisas que vivi, e por isso fazem sentido para mim. Je ne regrette rien. A não ser por uma, que demorei a fazer e quando finalmente cravei na pele, tive pouco tempo de paz.

Leu essa? Um dia de revelação em Nova York

É a cena-cartaz de Manhattan, de Woody Allen, com ele e Diane Keaton sentados em um banquinho destes de praça, vendo a ponte do Brooklyn. Tenho uma réplica do banco com os protagonistas, muito bem-feita, nas costas, bem no ombro direito. Devo tê-la feito lá por 2013 ou 2014, quando sabia bem pouco sobre feminismo, sobre a vida do diretor e sobre a vida, de forma geral. Sabia do que senti vendo a filmografia de Allen, o conforto de encontrar meu clube ao ver personagens ansiosos, medrosos, hipocondríacos, pessimistas, sarcásticos e com toda sorte de bagagem emocional. Seguindo à risca a profecia do diretor, quis entrar pro clube que jamais me aceitaria como membro – afinal sou mulher. E desenhei a carteirinha na pele. Clássico erro juvenil, excesso de entusiasmo.

Cena do filme Manhattan de Woody Allen, que inspira a reflexão: 'Vai sobrar algum homem pra gente admirar sem medo?' (Foto: Divulgação)
Cena do filme Manhattan de Woody Allen, que inspira a reflexão: ‘Vai sobrar algum homem pra gente admirar sem medo?’ (Foto: Divulgação)

Ao passo que fui amadurecendo, o mundo também foi, de certa forma. Enquanto me tornava cada vez mais feminista convicta, vieram os anos de #MeToo e as denúncias contra Woody Allen vieram à tona novamente. Embora eu acredite na presunção de inocência de (quase) qualquer pessoa, meu benefício da dúvida está inexoravelmente com a vítima. E foi assim que me tornei a piada pronta de ser a feminista com o Woody Allen literalmente tatuado nas costas. Costumava brincar que a tatuagem era, na realidade, uma homenagem ao “A Praça é Nossa”, mas parei quando descobri que o Carlos Alberto é bolsonarista. (Já me perguntaram se era de “500 dias com ela”, mas odeio o filme, então não resolve meu problema).

Receba as colunas de Júlia Pessôa no seu e-mail

Veja o que já enviamos
Clique aqui e siga o canal do Whatsapp do #Colabora

É um tema recorrente nas minhas conversas o fato de que me sinto traída pelos homens também neste sentido. Como ousam tocar as nossas vidas com obras que nos impactam tão profundamente e, ao mesmo tempo, ser tão desprezíveis com mulheres? Como pode a mesma pessoa ser capaz de criar coisas tão admiráveis e de violências tão vis? Macaca velha que sou, sei que pessoas são complexas e ninguém é uma coisa só. Também sei que somos seres incoerentes e contraditórios, mas é no mínimo chocante que se possa transitar entre extremos tão distantes entre si. Falo sempre sobre essa angústia com Matheus aqui em casa, e essa semana mesmo comentamos algo disso. No dia seguinte, no Instagram, uma amiga compartilhava seu coração partido por um cineasta (e ex-professor dela) que havia abusado da enteada. É uma dor de cotovelo muito mais comum do que a gente espera, esse luto por um ídolo.

Não quero cair em maniqueísmo. Fiz as pazes com a obra de muitos dos artistas homens envolvidos em casos de violência doméstica, sexual, ou qualquer tipo de atitude depreciativa contra mulheres. Não tenho mais idade nem imaturidade para acreditar que o mundo não decepciona. Assim, faz parte da vida o fato de que as coisas de que gostamos possam ser criadas por gente absolutamente abjeta. Sem falar que, sem cumprir o clichê de “separar a obra do artista”, mulher nenhuma consome cultura.

Mas vira e mexe me vem essa pergunta, já sempre carregada com um tanto de melancolia e desalento: “vai sobrar algum homem pra gente admirar sem medo?” Sem medo de estar, por ignorância, “passando pano” pra um cara e descobrir que ele estuprou uma mulher? Sem medo de ficar sabendo que um amigo bateu na companheira porque “perdeu a cabeça”? (infelizmente, é mais comum do que parece) Sem medo de que um crush tenha sido abusivo em um relacionamento anterior? Sem medo de gostar de um homem, na arte ou na vida, e se ter o coração partido pelo inegável fato de que ele não vê mulheres como seres humanos?

Perto do que as vítimas desses homens passam, é óbvio que nossa decepção é absolutamente nada. A questão é que, com a desilusão de se sentir traída, vem também a inconsolável certeza de que o que nos separa das vítimas de nossos ídolos, amigos, parentes e qualquer homem da Terra é somente – e tão somente – a sorte. É uma verdade que não dá para apagar. Para tatuagens que envelheceram mal, há o laser.

Apoie o #Colabora

Queremos seguir apostando em grandes reportagens, mostrando o Brasil invisível, que se esconde atrás de suas mazelas. Contamos com você para seguir investindo em um jornalismo independente e de qualidade.

Receba nossas notícias e colunas por e-mail. É de graça.

Veja o que já enviamos

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *