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As feridas abertas de Pedrinhas, 10 anos dos massacres na pior penitenciária do Brasil
Série Especial 'Complexo de Pedrinhas: marcas de uma barbárie' mostra que, entre 2013 e 2014, complexo penal do Maranhão viveu rotina de fugas, motins, capturas de reféns e assassinatos, com cadáveres barbaramente decapitados, e revisita traumas e dramas de famílias de vítimas e testemunhas
“Quando a gente entrou, jogaram uma cabeça de uma pessoa na gente”. O relato de um policial penal sobre a pior noite do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, das mais de 300 noites de tensão entre o primeiro semestre de 2013 e o os primeiros meses de 2014, revela o cenário de terror na maior cadeia do Maranhão, onde estavam encarceradas quase três mil pessoas em sete unidades. Foram meses de fugas e tentativas de fuga, de motins e capturas de reféns, de assassinatos e tentativas de homicídios – e de cadáveres decapitados, o que deu fama internacional ao Complexo, que passou a ser chamada de pior penitenciária do país.
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Entre 2013 e 2014, pelo menos 64 pessoas foram mortas dentro do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em uma das piores rebeliões com massacres do sistema prisional do Brasil. Dez anos depois, conversar com quem viveu aquelas noites de terror é fazer um inventário de cicatrizes e feridas abertas. Familiares contam como perderam pessoas queridas – alguns sem qualquer passagem anterior pela polícia. E, também, a espera, ainda em vão, por algum tipo de reparação por parte do Estado; além do medo por quem sobreviveu, pois não existem garantias de vida após a passagem por aqueles portões. Integrantes de organizações de Direitos Humanos recordam o caos permanente em Pedrinhas e a impotência do Estado que, por meses, não tinha qualquer controle do complexo penitenciário.
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Veja o que já enviamosNos seguidos motins da rebelião continuada no complexo penitenciário em São Luís, as notas explicativas da Secretaria Estadual de Justiça e Administração Penitenciária eram semelhantes e a motivação apontada sempre a mesma: briga entre grupos rivais. Já a situação em Pedrinhas era muito pior: os internos denunciavam as péssimas condições das unidades; da alimentação à saúde, tudo era precário.
Contudo, além dos pedidos referentes às violações de direitos humanos, também reivindicavam a separação das facções por unidades com dois objetivos: para que o crime organizado pudesse se estruturar mesmo que dentro dos presídios e para pedir por mais segurança, haja vista o crescente número de mortos em confrontos nos últimos anos. O Governo do Estado, entretanto, sequer reconhecia ainda a presença de facções em Pedrinhas, minimizando o problema a conflitos de “grupos rivais”, um dos muitos erros na contenção inicial do problema, que acabou agravando a crise.
A expansão de grupos criminosos organizados do Sudeste – o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, e Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro – para o Nordeste e outras regiões começou majoritariamente pelas unidades prisionais do país, onde essas organizações criminosas nasceram originalmente. Essas facções tinham o perfil muito diferente das gangues de bairros da capital do Maranhão ou de municípios do interior: eram organizadas, tinham lideranças centralizadas, normas, estatutos, hierarquia e estratégia no crime. Essa expansão foi motivada para aumentar o território de comércio do narcotráfico, além de traçar novas rotas de importação e exportação de drogas e armas.
Ouvidora Nacional de Serviços Penais na época dos massacres no Complexo de Pedrinhas, Valdirene Daufemback, psicóloga com doutorado em Direito, lembra que foi um período crítico no sistema prisional de todo o país com a chegada das facções do Sudeste. “O que ocorreu (em Pedrinhas) foi o resultado de vários anos de uma fragilidade institucional muito alta”, afirma. “Nesse conjunto de coisas que iam acontecendo, as providências iam sendo tomadas, mas muitas vezes eram insuficientes porque eram muitos fatores a serem enfrentados”, acrescenta.
A rebelião continuada explodiu durante o início dessa expansão no Maranhão. O Primeiro Comando do Maranhão foi criado com inspiração no PCC, inclusive o estatuto por pessoas do interior do estado que estavam em cumprimento de pena em Pedrinhas. Já o Bonde dos 40 foi uma união de gangues da capital do estado em uma só facção para se rebelar contra as facções do Sudeste que começavam a chegar para disputar territórios. Em 2013, essas duas facções estavam em guerra – dentro e fora do complexo.
Condições desumanas
A série de ataques violentos provocados pelos faccionados dentro das penitenciárias tinha ainda como pano de fundo as condições desumanas do Complexo de Pedrinhas, denunciadas por organizações de Direitos Humanos: a comida chegava estragada e era impossível de ser ingerida; não tinha água potável para beber; o esgoto escorria pelas unidades proliferando doenças; o atendimento de saúde era praticamente inexistente; os medicamentos estavam vencidos; faltavam objetos de uso pessoal, como material de higiene; foram registrados surtos de tuberculose, hanseníase, úlceras e relatos de pessoas convivendo com o vírus HIV sem o tratamento adequado. Ratos enormes e baratas conviviam com as pessoas; chinelos e garrafas pet eram utilizados como barreiras entre as grades para evitar que os insetos entrassem nas celas; mas esses recursos eram inúteis.
As queixas incluíam a estrutura física das unidades: o calor era insuportável; a maioria das celas estava com paredes literalmente caindo aos pedaços; a superlotação fazia com que dormissem amontoados no chão, já que não havia camas para todos; havia frequentes denúncias de tortura e violência policial. Com a falta de assistência jurídica, pessoas que já haviam cumprido a pena ainda estavam encarceradas. Condenados com direito à progressão de regime não conseguiam o benefício.
Era neste cenário que as facções se enfrentavam e os ataques começaram a ficar mais articulados, cada vez mais sangrentos para chamar a atenção da população para a situação no complexo. Muitas pessoas sem qualquer envolvimento com as facções eram assassinadas dentro das unidades por não ter quem as protegessem. Em abril de 2013, a chacina de cinco pessoas no Centro de Custódia de Presos de Justiça (CCPJ), uma das unidades de Pedrinhas, ganhou manchetes no Maranhão. A dor da família saiu no jornal. Três irmãos estavam entre as vítimas do massacre; os pais contaram que dois filhos haviam sido presos dentro de casa, com base em uma denúncia anônima, sem mandado de prisão. O mais velho, funcionário de um hospital público, foi preso por reclamar da prisão ilegal dos irmãos. Eram cinco homens que foram chamados por amigos para outra cela da mesma unidade durante a madrugada: foram massacrados sem chance de defesa.
Na família de Marinaldo*, assassinado durante um motim meses depois, a tragédia foi em dose dupla. A família protestou contra sua prisão, apontando um flagrante forjado de um crime ocorrido dois dias antes. Ele foi condenado apesar de a descrição do autor do crime ser de um jovem de cor clara e Marinaldo ter 34 anos e pele escura, negro retinto, e de ter um álibi consistente, com duas testemunhas, para o dia do crime. A prisão e morte de Marinaldo foi seguida pelo suicídio de seu irmão; a família mudou-se para o interior.
Decapitados na cadeia, queimados em São Luís
A noite em que a cabeça de uma vítima foi atirada contra os agentes e policiais que entraram em Pedrinhas após horas de motim fez com que a crise no sistema penal do Maranhão virasse notícia no país inteiro. Foi a rebelião mais sangrenta no complexo desde 2010, quando 18 pessoas foram mortas – algumas também decapitadas – após um motim de 27 horas. Naquela noite de outubro, 10 pessoas morreram e dezenas ficaram feridas no massacre, assumido pelo Bonde dos 40. Com a repercussão, o governo do estado decretou estado de emergência no sistema prisional e o governo enviou a São Luís 150 integrantes da Força Nacional para reforçar a segurança no complexo penitenciário.
Naquela noite também sete ônibus foram incendiados na capital do Maranhão onde a população vivia em pânico: cada explosão de violência no complexo intensificava as chacinas, os tiroteios, os ataques a ônibus pela cidade. Bastava a ordem vir dos chefes encarcerados em Pedrinhas. Entre 2013 e 2014, os números de crimes violentos dispararam em São Luís e em todo o estado. Uma dolorosa lembrança desses ataques foi a morte da menina Ana Clara, de 6 anos, após ter mais de 90% de seu corpo queimado após um ataque a ônibus, nos primeiros dias de janeiro de 2014.
Os ataques foram determinados de dentro da cadeia, onde os conflitos entre as facções e os motins prosseguiram apesar do reforço na segurança. A tragédia de Ana Clara, novamente manchete no país inteiro, aumentou a pressão por providências para tentar conter a rebelião permanente no Complexo de Pedrinhas, pressão que iria ficar ainda maior. Em dezembro, em um dos motins, foi gravado o vídeo que faria Pedrinhas consagrar a fama de “cadeia mais violenta do Brasil”. No dia 17, três pessoas foram assassinadas, com diversas perfurações, e decapitadas. As cabeças exibidas como troféus estavam no vídeo feito pelos próprios autores do crime.
O jornal Folha de S. Paulo publicou em seu site, ainda na madrugada de 7 de janeiro, horas depois da morte de Ana Clara, o vídeo da chacina filmado por um aparelho de celular: são dois minutos e 32 segundos de puro horror. A Folha publicou o vídeo sem cortes, apenas borrando os rostos das vítimas. Cortes do mesmo vídeo e frames utilizados como fotos foram divulgados em jornais e sites do Brasil e do exterior. O material publicado havia sido enviado pelo Sindicato de Servidores do Sistema Penitenciário do Estado do Maranhão, uma vez que o próprio governo estadual vinha negando a crise. Embora borrado, o vídeo mostra claramente os corpos e as cabeças separadas, usadas como troféu. As vítimas que aparecem com seu corpo vilipendiado são Diego Michael Mendes Coelho, 21, Manoel Laércio Santos Ribeiro, 46, e Irismar Pereira, 34.
Transferências, novas cadeias e reformas
Com todos os olhos atentos ao desenrolar dos acontecimentos no complexo, denúncias de torturas e maus tratos por meio dos policiais da PM e da Força Nacional também vieram à tona. Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, foram relatadas denúncias do uso indiscriminado de bombas de gás lacrimogêneo e de que os policiais, para evitar que fossem identificados, utilizavam máscaras ou capuzes. Também houve denúncias de uso de projéteis de arma de fogo com impacto letal. A militarização do Complexo de Pedrinhas, com a segurança sob responsabilidade da Força Nacional e da PM do Maranhão desde outubro de 2013, não havia conseguido conter os motins e as mortes.
Os pedidos de intervenção federal, feitos pela sociedade civil durante o ano de 2013, foram ignorados. Só em janeiro de 2014, após a morte de Ana Clara e a divulgação do vídeo com vítimas decapitadas em Pedrinhas, foi montado um Comitê de Gestão Integrada, com a participação de integrantes do Ministério da Justiça e de autoridades estaduais para enfrentar a crise no sistema penitenciário. Ainda assim, durante todo o primeiro semestre, a rotina de motins e fugas prosseguiu. Só com a separação das facções por unidades e a transferências de chefes para presídios federais, a situação começou a melhorar num processo de reformas, que somente foi acelerado após a posse do ex-juiz Flávio Dino como governador.
Dez anos depois, entretanto, as cicatrizes estão ainda visíveis e muitas feridas abertas. Apesar de o governo do Maranhão ter sido condenado por dano coletivo e sentenciado a pagar R$ 100 mil de indenização para as famílias das 64 pessoas assassinadas na rebelião continuada em Pedrinhas, nenhum pagamento foi feito: as autoridades estaduais seguem recorrendo. Familiares das vítimas também convivem com traumas e medo. Com a construção de novas unidades e instalação de oficinas de trabalho, o estado ganhou, em 2023, um prêmio pela gestão do sistema penitenciário. Mas ainda há denúncias de maus tratos e queixas contra a qualidade da comida e a falta de atendimento médico adequado no Complexo Penitenciário de Pedrinhas (hoje chamado de Complexo São Luís), onde estão encarceradas hoje 3.886 pessoas, que vivem ainda sob a sombra dos massacres de dez anos atrás
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Jornalista e mestra em Comunicação pela UFMA (Universidade Federal do Maranhão. É cofundadora da agência Sebá Comunica e assessora de comunicação na pauta dos Direitos Humanos. Metade maranhense e metade carioca, é apaixonada por leitura e escrita criativa.