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Natasha Lafayette: a história da travesti que viveu 10 anos nas ruas e sonha com faculdade
Especial ‘Com Nome, Mas Sem Endereço” | Aos 40 anos, Natasha já passou por encarceramento, vício em drogas e transição vivendo nas ruas: ‘uma década embaixo do mesmo viaduto’.
Meu nome é Natasha Lafayette, sou travesti e tenho 40 anos. Sou multiplicadora no Elas Existem, uma organização que trabalha com mulheres e adolescentes dentro e fora do cárcere. Também estudo à noite, estou agora fazendo o primeiro ano do ensino médio. É assim a minha semana. Moro no Centro do Rio de Janeiro há bastante tempo, também fiquei muito tempo em situação de rua, desde quando comecei a minha transição de gênero. Na época, mais ou menos em 1994, conheci umas meninas em situação de rua e costumava ir visitá-las para a gente conversar e dar uma passeada, isso no Aterro do Flamengo. *Depoimento dado por Natasha e transcrito pela repórter Francielly Barbosa.
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Nunca tive problemas com a população em situação de rua, desde quando criança. Também passei muita dificuldade, sempre morei em quartinho, com banheiro coletivo. Já empacotei compras na porta do mercado, vendi picolé, sacolé, bala, desmontei barraca para camelô. Sempre estava ativa com muita gente, então quando conheci as meninas em situação de rua, o que eu queria era amizade com aquelas pessoas que passavam pelas mesmas coisas que eu.
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Veja o que já enviamosTambém passei por muitas situações complicadas em casa com o meu padrasto. Minha família pegava muito no meu pé, passava muita coisa na escola, muita transfobia. Numa dessas brigas, pensei em ir até o Flamengo dar uma andada pela beira da praia para distrair a cabeça. Foi então que conheci as meninas, e que comecei a ter acesso a um lugar só para pessoas trans.
Ali, me senti acolhida, percebi que não precisava ficar em casa se não quisesse ter que escutar e passar por tudo aquilo. Desde aquele momento, comecei a ir muito para a rua, até um certo ponto em que não voltei mais para casa. Eu me lembro muito bem, comecei a viver em situação de rua ainda de menor, com uns 15 para 16 anos.
Na rua, fiquei vulnerável. Passei a praticar qualquer coisa para me alimentar, para ter qualquer tipo de conforto e também comecei a usar drogas pesadas. Nesse período, ainda estava passando pela transição, então saímos para fazer programa e muitas vezes roubávamos para nos hormonizar e conseguir comprar roupas, creme e alisar o cabelo, ir para bailes — essas coisas de adolescente para sair.
Sempre tem briga na rua, seja por causa de bebida, de ciúmes ou de roubo. Ao longo dos anos que passei em situação de rua, enfrentei muitos acontecimentos complicados. Já sofri transfobia, já apanhei de polícia, de bandido e até de jogador de futebol, porque a lei saiu para transfobia, mas a transfobia continua, as pessoas só têm mais medo de serem transfóbicas, mas não deixam de ser. Vemos no olhar, notamos quando a pessoa é transfóbica.
Ao longo desse período, sem um teto para chamar de meu, tive três passagens pelo centro socioeducativo. Na última, faltava uma semana para eu completar 18 anos e fui presa outra vez. Na época, uma moça, acho que da Assistência Social, conversou comigo e comentou que havia um hotel da Prefeitura para pessoas maiores de idade e, como já ia fazer 18 anos, ela me mandaria para lá. Ela explicou que era um hotel grande, com várias pessoas e onde eu poderia ficar por cerca de um ano. Eu teria suporte para tirar meus documentos, entrar na escola e arrumar um trabalho, então aceitei a vaga e fiquei um tempo nesse lugar para tentar me restabelecer.
O hotel era na Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio, perto da Delegacia da Infância e da Adolescência. Vivendo lá, conheci algumas meninas da Central que moravam em Queimados e começamos a fazer amizade. Eu estava no hotel e comecei a juntar dinheiro porque praticamente não tinha gastos lá. Nos davam comida e havia um lugar para dormir — era um quarto só para mim, porque como eu era uma mulher trans não dividiria o quarto com os homens —, então tive oportunidade para poder colocar um pouco a cabeça no lugar.
Depois do hotel, fui morar com essas meninas em Queimados. Fiquei um tempo lá, mas fui logo presa de novo. Quando saí, voltei à situação de rua — tive três passagens pelas ruas, a maior delas foi depois que completei 18 anos. Em uma dessas passagens, passei quase 10 anos embaixo do mesmo viaduto, com um colchão velho. Nunca me esqueço dessa fase, passava muita fome, só ia para ali mesmo para dormir, ficava mais na rua me drogando e passava dias sem dormir. Era uma vida muito difícil, eu ia para a casa da minha mãe e não conseguia passar lá dois ou três dias antes de voltar para a rua mais uma vez.
Nesse ir e voltar, foram mais de 10 anos vivendo em situação de rua no Rio de Janeiro. No começo, cheguei a passar pela Casa Nem, ficava lá durante o final de semana, porque passava mais tempo no abrigo em Santa Cruz. Espaços como esses foram e são importantes porque são lugares que acolhem, que nos permitem tomar um banho, se alimentar e dormir. São fundamentais para toda a população trans.
Agora, tem uma década que tenho o meu espaço, comprado em um casarão invadido na Lapa, mas ainda tenho contato e costumo ir onde morei para passar o domingo todo lá. Acredito que manter esses vínculos com as pessoas que ainda estão em situação de rua é importante para elas verem que existe saída. Também tenho ainda muitas amigas que continuam em situação de rua e que às vezes fazem os mesmos cursos que eu. Duas amigas minhas que estudam comigo no primeiro ano estão em situação de rua, e tem mais duas na mesma condição que vão para o mesmo curso de empreendedorismo que faço.
Quando vejo eventos em que posso colocar nome delas ou fico sabendo de alguma ação que tenha ajuda de custo, sempre falo com elas. Chamo, ligo e vou lá dar o recado. Quando tem algum lugar para almoçar e tomar banho, vou lá avisar também. Não deixei de ter essa relação com a população em situação de rua porque ali é a minha família, vejo elas com muito carinho e queria que todas conseguissem sair da rua, mas sei que cada uma tem sua fase, seu momento, de sair dali. Para sair, primeiro também temos que ter o querer: não adianta que eu queira que elas saiam da rua, eu quero que todas saiam da rua, mas elas têm que dar o primeiro passo. E o primeiro passo não é fácil.
Recentemente, consegui me libertar do crack e da cachaça pura, mas ainda vivo em uma situação de usar outras drogas, de beber e ficar na rua. Ainda tenho que me libertar de muitas coisas, de muitos traumas, ainda preciso de ajuda, de ser entendida, de desabafar e de sonhar que um dia vou conseguir largar essas outras drogas que também me fazem mal. Acho que para as pessoas transexuais e travestis em situação de rua tem que ter tratamento psicológico, porque mesmo quem passa pela rua sem problema nenhum acaba ficando com alguma questão. Mas, geralmente, as meninas já vêm para a rua com alguma mágoa, com algum sofrimento.
Mesmo com todas as dificuldades, graças a Deus passei da expectativa de vida. Eu me sinto vitoriosa, não imaginava que ia chegar aos 40. Eu me senti muito feliz e orgulhosa porque apesar de todos os problemas que passei, sempre quis mudar, sempre quis parar com aquilo, achava a situação que eu estava passando muito precária e sentia que estava precisando de ajuda. Não tive, precisei me levantar sozinha e correr atrás, mas se eu puder ajudar, eu ajudo.
Quero viver mais, quero agora partir para os 60, se Deus quiser, e aproveitar tudo o que não pude ter. Vou terminar meus estudos — ano passado fiz o ensino fundamental e esse ano comecei o ensino médio —, para depois tentar uma faculdade de Assistência Social e poder começar a montar um projeto para trabalhar em mudanças, vivências e experiências.
Esta reportagem faz parte da série especial “Com Nome, Mas Sem Endereço”. Clique na foto abaixo para conferir mais histórias.
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Estudante de Jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF), é fascinada por contar histórias com foco em desigualdades sociais, direitos humanos e questões de gênero. Na universidade, integrou o jornal O Casarão, a web rádio Nas Ondas do IACS e o projeto de pesquisa "Mídia, juventude e suicídio: um estudo sobre os padrões de cobertura da morte auto-provocada". Atuou como estagiária de redação na Agência Nossa e de assessoria de imprensa, com foco em divulgação científica, na UFF.