ODS 1
Fechado há mais de 10 anos, lixão de Itaoca está esquecido e seus moradores também
Pesquisa mostra que maioria das casas da região é chefiada por mulheres negras que vivem, basicamente, do Bolsa Família
A ilha de Itaoca recebeu um lixão na década de 1970. O local era o principal ponto de descarte do município de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio. Por lá, os caminhões chegavam a qualquer hora do dia e quando viravam suas caçambas as pessoas corriam para catar os materiais recicláveis mais valiosos. Também encontravam alimentos, brinquedos, roupas e outros objetos que eram aproveitados.
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Era comum que as pessoas trabalhassem horas a fio sem arredar pé. Morar perto do lixão era uma vantagem, mas também uma necessidade. Ao redor da montanha de lixo, muitas famílias foram construindo seus barracos com materiais que retiravam do próprio aterro. Para elas, o trabalho no lixão era a única alternativa à falta de emprego e à fome. Por quase 40 anos, as pessoas retiraram dali o seu sustento até que, em 2012, o lixão foi desativado.
“Eu catei [reciclável] até fechar o lixão, quando fechou a gente ficou perdido”, conta Márcia Ribeiro. Marcinha, como é conhecida, chegou em Itaoca na infância. Sua família veio de Itaboraí, cidade vizinha a São Gonçalo, em busca de melhores condições de vida. Ela estudou até a 4ª série e tinha uns 12 anos quando começou a garimpar materiais recicláveis e alimentos no lixão. Com os pais doentes, recaiu sobre ela a urgência de levar comida para casa.
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Veja o que já enviamosForam mais de 20 anos trabalhando dentro do lixão de Itaoca. Foi lá que Marcinha conheceu o atual companheiro, com quem teve três filhos. “Eu criei eles dentro do lixão. Hoje estão crescidos, dois moram comigo”, conta a catadora. Desde que o aterro foi desativado, ela e o esposo garantem o sustento da casa com a venda de recicláveis que recolhem nas ruas.
Sem trabalho, renda ou qualquer perspectiva de ajuda, a família de Marcinha e várias outras não tiveram escolha senão continuar vivendo às margens do aterro, com quase nenhuma infraestrutura urbana. A localidade conhecida como os fundos do antigo lixão de Itaoca abriga famílias em extrema vulnerabilidade. A maioria das casas não tem esgoto encanado e nem acesso à água potável.
“Quando a gente foi coletar os dados eu pensei: como essa pessoa não tem banheiro? Eu não fazia ideia dessa realidade. Eu, como moradora daqui, não imaginava que as pessoas estavam passando por isso”, destaca Maiara Silva da Conceição, de 25 anos. A jovem nasceu em Itaoca e viu várias gerações de sua família trabalhando no antigo lixão: os avós, a mãe e o pai, alguns tios e primos.
Há cerca de um ano, ela passou a atuar como diretora de mobilização do Espaço Gaia, organização social responsável pelo Observatório de Olho em Itaoca, que tem produzido dados sobre as condições de vida dos moradores dessa localidade. Cerca de 40 famílias vivem nos fundos do antigo lixão, na Fazenda dos Mineiros, um dos sete bairros que compõem o Complexo do Salgueiro.
Um relatório preliminar da pesquisa foi lançado no dia 20 de janeiro. Os dados traduzem em números as condições sociais, econômicas e ambientais do local. Demonstram, também, que as pessoas mais afetadas têm gênero e cor. Entre os entrevistados, 75% são mulheres e a maioria (81%) pessoas negras. Das 42 casas visitadas, 32 são chefiadas por mulheres. No local, a renda média, por família, é de apenas R$331 e a principal fonte desta é o Bolsa Família. Como destaca o relatório, o auxílio social é o que possibilita, muitas vezes, o acesso a bens básicos, como água e comida.
No campo da educação, o levantamento transforma em números histórias como a de Marcinha: apenas metade (50%) das pessoas ouvidas disseram saber ler e escrever. Para aqueles que responderam não saber, foi perguntado se conseguiam assinar o próprio nome, 22% disseram que sim, enquanto 28% nem mesmo o próprio nome sabem escrever. De acordo com dados da Pnad do IBGE (2022), o Estado do Rio tem uma das taxas de analfabestimo mais baixas do país, 2.1%. O percentual é quase 24 vezes menor do que o registrado entre os moradores do antigo lixão.
A maior parte das casas não tem esgoto encanado (78%) e esse cenário se torna ainda pior quando considerado apenas pessoas negras (93%). “Além de ser uma questão de saúde, é uma visão concreta do racismo ambiental, onde a cor da pele e a condição socioeconômica se tornam determinantes na qualidade de vida”, destaca um trecho do relatório. Para algumas pessoas a situação é ainda mais grave. Entre as famílias ouvidas, 28% sequer possuem vaso sanitário em casa.
“A gente se pergunta como essas pessoas ainda estão sobrevivendo nesse lugar feito para, literalmente, esquecer elas”, reflete Laura Torres, idealizadora do Espaço Gaia. “Itaoca era uma ilha. Eu sempre falo que, por mais que Itaoca esteja muito perto do centro, as negligências que tem por lá são muito absurdas. O ano é 2024 e ainda tem pessoas lá dentro que vivem sem ter um banheiro. O racismo ambiental vai se manifestando assim, é muito visível, é muito palpável”.
Uma ilha sem água
Entre os sonhos de Ana Carla, está um direito: água. “A borracha que traz água passa por cima do valão, quando ele sobe suja a água e como é borracha às vezes fura, às vezes traz muita sujeira também. A gente fica vigiando e se vem um cheiro forte [de esgoto] a gente corre para desligar”, explica. Mãe de três crianças, Ana tem 31 anos. A água que chega na casa dela vem da casa da mãe, que também não tem acesso à água encanada. As duas residências são atendidas por mangueiras que são emendadas em outras mangueiras e, assim, percorrem grandes áreas aterradas do antigo lixão.
De acordo com o relatório, três a cada quatro casas não possuem acesso à água ou ela não é potável. Nos fundos do antigo lixão de Itaoca, o acesso a esse recurso básico é escasso e, muitas vezes, improvisado. Para várias famílias a única fonte de água é uma bica coletiva na rua. A água é fraquinha e muitas vezes acaba. “É uma borracha de molhar jardim, vem emendando mangueiras lá da Balança, que é outro bairro. Nessa parte do lixão as casas são de madeira, não tem água, não tem saneamento básico, não tem nada”, explica Maiara.
“Eu moro em um morro, então a gente tem que descer para encher os galões. A água da chuva enche mais a caixa do que a água da rua, porque ela não tem força para subir até a minha casa”, conta Marcinha. A catadora viu na TV um sistema de reaproveitamento de água da chuva e adaptou a ideia a sua realidade. Marcinha usa uma calha para direcionar a água da chuva para baldes que, por sua vez, deságuam em um galão de armazenamento. “Com a água da chuva eu lavo roupa, faço comida, lavo a louça, tomo banho, faço um monte de coisas”, diz.
Esse cenário onde falta água potável e sobra esgoto a céu aberto afeta muito a saúde de quem vive no local. Um dos filhos de Marcinha desenvolveu um problema de saúde por conta do consumo de água imprópria. Segundo Laura, é comum ouvirem queixas sobre dores e problemas de pele: “É uma dor de barriga recorrente, é uma coceira recorrente… A água que eles pegam para bem em cima do esgoto”, diz.
Várias casas da localidade ficam próximas a um valão. Esse canal que antigamente era um rio, hoje tem muito lixo, esgoto e até jacaré. As fortes chuvas que atingiram o Estado do Rio na primeira quinzena do ano, somadas à falta de infraestrutura urbana do local, provocaram o transbordamento do valão, que invadiu várias casas e essa não foi a primeira vez. Uma das residências atingidas é a de Maiara. Além de perder móveis e objetos pessoais, ela também ficou exposta ao contato com essa água.
“Até no lixão nasce Flor”
Laura chegou em Itaoca apenas para fazer uma roda de conversa com as mulheres. A jovem, tem 27 anos, é doula e vive no Jardim Catarina, bairro vizinho aos Complexo do Salgueiro, onde fica o antigo lixão de Itaoca. Nessas rodas, Laura falava sobre as várias formas de violência obstétrica e na medida em que aprendiam mais sobre isso, as mulheres que participavam se reconheciam vítimas dessas violações. Com o interesse delas, mais rodas foram organizadas e o que era uma ação pontual virou uma organização com sede no território. Nasceu o Espaço Gaia.
Não demorou muito até que Laura percebesse que as condições do local afetavam a saúde das mulheres e de seus filhos, até mesmo durante a gestação. “Muitas tiveram problemas com as cirurgias [partos], porque lá é muito quente, as casas não possuem ventilação, então isso contribui para que as infecções sejam frequentes”, destaca. “A gestante precisa estar bem hidratada para o seu bebê se desenvolver bem e se ela não tem água dentro de casa, como faz?”, questiona.
Na visão de Laura, a violência também se manifesta pela negligência e como resume, “são muitas as violações que atravessam os corpos das mulheres em Itaoca”. A partir desse entendimento veio a decisão de expandir e iniciar um trabalho de pesquisa no território. O objetivo com os dados é mapear as condições de vida no antigo lixão e chamar a atenção do poder público e da sociedade civil para Itaoca.
Maiara diz ver com esperança a possibilidade desse trabalho gerar mudanças no local onde vive. “Eu acho que através desses dados a gente consegue ajuda, consegue mostrar para quem está fora como é a situação dentro. Tem moradores que precisam ser enxergados. Itaoca é muito esquecido, não tem nada lá dentro”, avalia a diretora de mobilização do Espaço Gaia.
A unidade de saúde mais próxima fica a cerca de 30 minutos a pé. Se optar pelo transporte público, a caminhada até o ponto de ônibus mais próximo fica um pouquinho mais curta, entre 15 e 20 minutos. O serviço de coleta de lixo também não atende o local. Sem coleta, a queima dos resíduos se torna a prática mais comum. Nas ruas sem asfalto ora voa terra nos olhos, ora sobe lama nos pés. Por aqui não são só os serviços públicos que parecem distantes, os sonhos também.
“Lá podia ter mais oportunidade de trabalho para as pessoas que não sabem ler e nem escrever. O pessoal parou os estudos para trabalhar no lixão. Meu marido parou na 2ª série e aí não tem oportunidade, ele só consegue bico”, conta Ana Carla. Ela e Maiara são primas. É a terceira geração da família a viver nos arredores do antigo lixão.
Ana estudou até a 7ª série. Ela e o marido estão desempregados e contam com o auxílio social como única fonte de sustento da família. Parte do valor recebido vai para o aluguel da casa onde mora. Ela conta que a família precisou mudar da casinha onde moravam porque o teto começou a cair. Certo dia, grávida do filho mais novo, um tijolo a atingiu na cabeça. Alugar outro lugar era a única opção.
Quando Ana reflete sobre seus sonhos oportunidade é a palavra que mais repete. Sonha que as crianças de Itaoca possam estudar e sejam assistidas por projetos de cultura e lazer, e que os adultos que vivem por lá, vizinhos e pessoas de sua família, possam ter emprego e melhores condições de vida.
Nessa terra onde falta quase tudo, os sonhos parecem florescer em abundância. “Eu tenho muitos sonhos”, brinca Maiara. “Muitas vezes a mulher preta que mora na favela é muito mal vista. Eu escutei muito que eu não ia me formar, que eu não ia ser ninguém. Quando você começa a ocupar os espaços, vê que é possível. E eu penso que se eu posso, eles podem também”, conta. Mãe de quatro crianças, Maiara parou de estudar no 2º ano do Ensino Médio, quando o primeiro filho nasceu. Esse ano, ela retorna para a escola. Já está matriculada e diz estar ansiosa para começar. Ela conta que quer terminar o Ensino Médio e entrar na faculdade.
Maiara também sonha em provocar mudanças em Itaoca e melhorar as condições de vida para vizinhos e parentes que vivem nos arredores do antigo lixão. “O meu intuito no projeto é mostrar para as pessoas de fora que aquelas famílias estão abandonadas. Incentivar os moradores a retomar os estudos e conseguir melhorias para o lugar. Encorajar as pessoas a ocupar espaços e acreditar em sua própria capacidade”. Pode parecer difícil, mas ela diz acreditar que isso é possível. Maiara menciona um trecho da música do Racionais MC’s que diz: “tenha fé, porque até no lixão nasce flor”
Jaqueline Suarez é carioca, nascida e criada no Fallet, favela na zona central da cidade. É jornalista e comunicadora popular, com mestrado na área de comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Passou pela redação da Record e foi editora do RioOnWatch. Atualmente trabalha na intersecção entre comunicação e educação, integrando a equipe da Fundação Roberto Marinho.