Receba as colunas de Oscar Valporto no seu e-mail

Veja o que já enviamos

Vale o escrito: o jogo do bicho entre a decadência e a vitalidade

Instituição carioca, popular desde a criação e na ilegalidade há quase 130 anos, promove cinco sorteios por dia e ainda atrai apostadores

ODS 11 • Publicada em 2 de janeiro de 2024 - 09:11 • Atualizada em 22 de fevereiro de 2024 - 13:31

Vale o escrito. Último dia útil do ano e um grupo rodeia a cadeira do escrevente do jogo do bicho numa esquina aqui do bairro. Na quadra seguinte, outros apostadores fazem fila para tentar a sorte na Mega da Virada. O jogo legal e o ilegal convivem e compartilham as calçadas e a clientela neste Rio de Janeiro do século 21 como vêm fazendo desde o fim do século 19.

Vale o escrito. Este código de conduta do jogo do bicho – passado de geração em geração – é um dos motivos da sobrevivência da atividade quase 130 depois de ser colocada na ilegalidade. Criado em 1892, como uma fórmula para angariar fundos para o Zoológico mantido pelo Barão de Drummond, o jogo do bicho já tinha caído no gosto popular ao ser proibido em abril de 1895. E, mesmo sem a chancela nobre do barão, as apostas seguiram crescendo e tomando conta das ruas do Rio, com o jogo bancado por diferentes empreendedores – de pequenos comerciantes a empresários do ramo do entretenimento.

Leu essa: Bicho, samba e futebol muito além de Castor

O apelo dos animais e seus simbolismos, diferentes da frieza dos números das outras loterias legais, e a extensa rede de vendas de ambulantes e quiosques ajudaram a popularizar o jogo do bicho. Com a ilegalidade, o ‘vale o escrito’ – disseminado pelos bicheiros – passou a ser a segurança do apostador: quem tinha a pule (comprovante da aposta) com os números vencedores registrados pelos apontadores nunca deixava de receber o valor devido. E os banqueiros do jogo eram conhecidos das comunidades – a maioria agora, de origem mais humilde, muitos imigrantes (de origem portuguesa, italiana, síria ou libanesa) ou seus descendentes porque donos de lojas, bares e casas de espetáculos abandonaram a atividade com a repressão policial após a proibição.

Jogo do bicho: quase 130 anos de ilegalidade (Imagem; Reprodução)
Jogo do bicho: quase 130 anos de ilegalidade (Imagem; Reprodução)

Na década de 1940, os principais banqueiros da cidade organizaram a Paratodos: um único sorteio passou a valer para todos em quase toda a capital da República, em quase todo o Grande Rio – antes cada banca organizava o seu. Desde então, passou a existir uma cúpula da contravenção, os responsáveis pela organização do sorteio da Paratodos. O resultado, inicialmente fixado nos postes, passou a ser divulgado em jornais e rádios. O movimento aumentou, os apostadores passaram a ganhar mais, o lucro dos banqueiros se multiplicou – e a atividade ilegal passou a empregar cada vez mais trabalhadores sem qualificação.

Receba as colunas de Oscar Valporto no seu e-mail

Veja o que já enviamos

Muitos banqueiros do bicho já eram, então, reconhecidos como benfeitores de suas comunidades. Inaugurado em 1941, o Estádio do Madureira foi batizado como Aniceto Moscoso, dono das bancas do bairro, que, apaixonado por futebol, financiou sua construção. Na vizinha Oswaldo Cruz, só se falava em Natalino José de Oliveira, o Natal da Portela, patrono da escola multicampeã do Carnaval, que foi fundada no quintal da casa de seus pais. Aniceto, de origem espanhola, era dono de uma drogaria; Natal foi funcionário da Rede Ferroviária (como seu pai), mas, depois de perder o braço num acidente, virou apontador, depois gerente de pontos e, finalmente, banqueiro do jogo do bicho.

Vale o escrito: o código de conduta com os apostadores nem sempre era respeitado pelos banqueiros no mundo dos negócios. Acordos sobre a divisão de territórios nem sempre eram respeitados. Com mais dinheiro entrando, também foram aumentando os conflitos. Nas décadas de 60 e 70, tempos de ditadura, violência e grupos de extermínio, tornaram-se cada vez mais comuns as disputas resolvidas a bala. Os bicheiros empregavam policiais como seguranças e usavam grupos paramilitares para eliminar rivais. Foi, a partir de 1981, quando o ex-policial Mariel Mariscott – estrela do Esquadrão da Morte do Rio – tentou forçar sua entrada no negócio (e acabou assassinado), que a cúpula do bicho reforçou sua organização, determinando o respeito às divisões de áreas, e reduziu significativamente os conflitos territoriais.

(Como mostra a policialesca série de sucesso da Globoplay, as matanças mais recentes são fruto de disputas por heranças. ‘Vale o Escrito, a Guerra do Jogo do Bicho’, com sua estética Linha Direta, trata, principalmente, de batalhas por espólios familiares: o da família Garcia, história ilustrada com ricos e inéditos depoimentos, e o da família Andrade, história mal contada, desamarrada e esburacada, uma característica da série como um todo)

Naquele começo dos anos 1980, quando a cúpula da contravenção ficou mais organizada, os lucros com o jogo do bicho já começavam a decair. a Loteria Esportiva, criada com muito sucesso na década anterior, roubou parte da clientela. Os banqueiros investiam, cada vez mais, em outras atividades: algumas legais e, a grande maioria, ilícitas, aproveitando a rede já estabelecida de corrupção, violência e lavagem de dinheiro. No ramo original, a jogatina, passaram a priorizar as máquinas caça-níqueis e, por um tempo, os bingos. Com a chegada do século 21, cresceu a concorrência oficial – com dezenas de jogos bancados pela Caixa, federal, e pelas loterias estaduais – e da jogatina online. O jogo do bicho – era uma previsão até dos próprios contraventores – ia acabar.

Mas vale o escrito, ainda. Essa instituição carioca, que os banqueiros do bicho multiplicaram por todo o país, dá sinais de vitalidade, embora decadente. Os resultados da Paratodos são usados em bancas de muitos outros estados. E, embora o jogo do bicho signifique hoje uma parte mínima dos negócios da cúpula da contravenção, ainda há, em 2024, cinco sorteios diários da Paratodos – com resultados agora divulgados pela internet e pelas redes sociais. Os comprovantes das apostas não são nem mais escritos: são impressos em maquininhas semelhantes a de outros empreendimentos. Mas seguem valendo como garantia: quem ganha, vai receber. E o bicho continua ilegal no país onde o último Diário Oficial de 2023 trouxe a sanção da lei que regulamenta as apostas esportivas online.

Apoie o #Colabora

Queremos seguir apostando em grandes reportagens, mostrando o Brasil invisível, que se esconde atrás de suas mazelas. Contamos com você para seguir investindo em um jornalismo independente e de qualidade.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *