ODS 1
Renda emergencial pelo desastre em Brumadinho ainda não chega a todos os atingidos
Mais de quatro anos e meio após rompimento de barragem da Vale, ribeirinhos reclamam que documentos exigidos não condizem com a realidade das comunidades afetadas
Em poucos dias, a agricultora Angélica Cordeiro, de 38 anos, da Comunidade do Laranjo, em Pompéu, Minas Gerais, viu os fregueses sumirem e as dívidas crescerem. Até 25 de janeiro de 2019, quando ocorreu o rompimento da barragem de Brumadinho, o maior desastre ambiental da história do Brasil, ela vivia do cultivo e da venda de verduras, frutas, doces, leite e queijo na própria comunidade.
Quando os 12 milhões de m³ de rejeitos avançaram sobre o rio, os rancheiros, donos de chácaras nos arredores da comunidade, clientes de Angélica, deixaram de frequentar o local: o acesso ao rio foi proibido por causa da contaminação por rejeitos de minério. “Não tinha mais pra quem vender, eu fui ficando sem dinheiro, as dívidas foram aumentando, aí eu peguei uma depressão,” recorda.
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A renda que era de R$ 3 mil despencou e ela, junto com o filho e o marido, passaram a viver da ajuda de parentes. Em 2021, relembra Angélica, o marido foi embora e para piorar, outros problemas de saúde se somaram ao quadro depressivo e a agricultora ficou impossibilitada de arriscar outra fonte de renda. Ela realizou uma cirurgia de um tumor cancerígeno no colo do útero e trata uma doença inflamatória no intestino.
Angélica solicitou, em maio de 2019, solicitou a renda emergencial prometida pela Vale do Rio Doce, que, hoje, é o Programa de Transferência de Renda (PTR), mas nunca recebeu uma parcela sequer. Não é a única: pelo menos outras 30 mil pessoas, de acordo com as assessorias técnicas independentes, ainda demandam ser incluídas no PTR, parte do acordo de reparação assumido pela Vale após a tragédia. Os documentos exigidos para ter direito à reparação dificultam a concessão do benefício.
O rompimento da barragem de rejeitos da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, atingiu 26 municípios, destruiu 297 hectares de Mata Atlântica e deixou 272 mortos, dos quais quatro ainda seguem desaparecidos. Para além da tragédia e do desastre ambiental, foi iniciada a longa batalha judicial para exigir da mineradora reparação aos atingidos na área do rompimento da barragem. Logo após o rompimento, o critério adotado para a concessão da renda emergencial era de que a pessoa atingida comprovasse que morava, em 25 de janeiro de 2019, em até 1 km da margem do rio Paraoapebas. Neste critério inicial, muitas pessoas que viviam a uma distância superior a 1 km da margem do rio não foram reconhecidas, apesar de também afetadas pelo rompimento da barragem.
Após decisões da Justiça, houve mudanças nos critérios de reparação pelo desastre em Brumadinho. A partir de fevereiro de 2021, quando a renda emergencial, que era gerida pela Vale, foi substituída pelo Programa de Transferência de Renda (PTR), passou-se a adotar o conceito de poligonais. Esse conceito identifica as delimitações das comunidades. Assim, passaram a ser consideradas elegíveis todas pessoas que moram em comunidades que ficam a um quilômetro da margem do rio, mesmo que sua casa não estivesse nesse perímetro: em vez da referência ser a residência, agora é a comunidade.
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Veja o que já enviamosA divisão da território atingido pelo rompimento envolve cinco regiões: a área 1 é formada pelo município de Brumadinho, onde a barragem estava situada, a 2, pelos municípios de Betim, Mário Campos, São Joaquim de Bicas, Igarapé, Juatuba e Mateus Leme, além de Povos e Comunidades Tradicionais; a 3, inclui Esmeraldas, Florestal, Pará de Minas, Fortuna de Minas, São José da Varginha, Pequi, Maravilhas, Papagaios, Caetanópolis e Paraopeba; as comunidades da área 4 estão nos municípios de Curvelo e Pompéu; a área 5 abrange o Lago Três Marias.
As duas últimas áreas incluem atingidos que moram em áreas rurais, sem regularização fundiária, como é o caso da agricultora Angélica que vive a 500 metros da margem do rio. Ele afirma ter apresentado todos os documentos em seu nome desde 2019 e, mesmo assim, teve as solicitações pela renda recusada. Há cinco meses, a agricultora recebeu uma mensagem com a informação de que a sua renda havia sido aprovada, mas até o momento, não recebeu um centavo na sua conta. “Minha casa tinha fartura, tinha alimento, eu pagava o aluguel da fazenda, fiquei depressiva porque perdi tudo depois do desastre”, lamenta.
Áreas rurais sem regularização fundiária
Dificuldades como a de Angélica se multiplicam, principalmente nas áreas 4 e 5, e levaram um grupo de atingidos a promover uma manifestação no sábado (19/08) em Pompeu, em frente à sede local da Fundação Getúlio Vargas (FGV), órgão escolhido, por meio de edital para gerir o PTR. “Em sua maioria, essas pessoas vivem em regiões rurais, sem regularização fundiária, sem fornecimento de energia elétrica, onde os Correios não chegam. Portanto, têm dificuldades de apresentar a documentação exigida”, explica Caroline Almeida, especialista no PTR, do Instituto Guaicuy, organização que assessora tecnicamente os atingidos das áreas 4 e 5.
O PTR garante de meio salário a um salário mínimo às pessoas atingidas pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, dependendo da faixa etária e do grau de impacto do desastre. Por exemplo, parentes de vítimas fatais recebem um valor maior. Para ter acesso ao PTR, a pessoa deve comprovar que vivia, em 25 de janeiro de 2019, em uma comunidade que está parte ou integralmente a 1 km da margem do rio Paraoapebas.
Um dos documentos que devem ser apresentados para comprovação de residência é o contrato de compra e venda da propriedade. Alguns ribeirinhos até possuem esse documento. No entanto, Caroline explica que a FGV tem se recusado a aceitar o contrato sozinho e exige uma documentação complementar, como por exemplo uma fatura de energia elétrica. “Muitas pessoas não têm esse documento complementar, pois não têm acesso ao fornecimento de energia elétrica ou água, não possuem uma unidade de saúde na comunidade”, explica.
Quésia dos Santos, de 47 anos, mora na comunidade Santa Cecília, área rural de Pompéu. Ela tinha a pesca como única fonte de renda. Após o desastre em Brumadinho, essa atividade foi inviabilizada pela contaminação do rio. A pescadora, que mora a 150 metros da margem do rio Paraoapebas, é mãe de quatro filhos: os dois mais velhos, de 22 e 24 anos, saíram de casa em busca de trabalho, e os outros dois, de 16 e 18 anos, vivem com ela.
A pescadora conta que, logo após o rompimento da barragem de Brumadinho, solicitou a renda emergencial, mas teve o pedido negado pela Vale. “A Vale não me reconheceu como atingida por considerar que eu estava fora da área territorial [delimitada]”, explica. Ao refazer o pedido, desta vez, junto à FGV, Quésia conta que não conseguiu comprovar a residência por não possuir o documento complementar exigido pelo órgão gestor. “Eu apresentei o contrato de compra e venda da casa, mas a FGV não aceitou esse documento sozinho, pediu uma conta de água ou de luz. Eu uso água de um poço artesiano cedido por outra pessoa, pago uma taxinha, não tem conta. Já a conta de luz está registrada no nome da minha irmã e eles não comprovaram o nosso parentesco. Aí fica difícil”, indigna-se.
Hoje, Quesia trabalha como diarista em colheitas particulares, trabalho pelo qual recebe R$ 60 por dia. Como nem todos os dias têm serviço, garantir dinheiro no bolso depende da sorte. Em função da falta de renda, ela segue pescando e consumindo os peixes do rio, mesmo estando contaminados. “Eles não nos reconhecem como atingidos, mas fincaram placas na nossa comunidade, proibindo a pesca, proibindo o nado; é difícil”, critica a pescadora.
Tratamentos diferentes na mesma família
O agricultor e líder comunitário Kleber Castelar, que mora na comunidade Novilha Brava, área rural de Pompeu, afirma que de 148 pessoas que moram na comunidade, apenas quatro estão recebendo a renda do PTR. Ele conta que o reconhecimento da comunidade como atingida pelo rompimento da barragem de Brumadinho só aconteceu com a chegada do PTR, que adotou o conceito de poligonal.
Ainda assim, “a validação dos documentos e a morosidade no georreferenciamento retardam o acesso à renda”, pondera ele. O georreferenciamento é a etapa que comprova, por meio de coordenadas geográficas, que o atingido vive nos limites territoriais exigidos pelos critérios do programa.
Kleber tinha um pequeno bar no sítio de onde tirava o sustento para a sobrevivência dele e da esposa. Com o desastre, os clientes e a renda sumiram. Ele conta que desde o pleito até a concessão do seu benefício se passaram 1 ano e cinco meses. Há dois meses, o comerciante está recebendo a renda, porém, a sua esposa, Maria Esmênia Castellar, de 53 anos, que apresentou os mesmos documentos que ele, não teve o PTR concedido.
“É uma negligência muito grande. Eles reconhecem uma pessoa da família, mas não reconhecem a outra. Vêm, fazem o georreferenciamento para uma pessoa da família e demoram para fazer o georreferenciamento de outra. Ainda pedem que agregue um documento ao contrato de compra e venda. A nossa comunidade não tem energia elétrica, a água é de poço, isso não existe”, reclama Kleber.
Caroline avalia que cada comunidade tem uma realidade única e, por isso, têm que ser criadas estratégias que levem em consideração a realidade de cada uma. Ela exemplifica que muitos casais vivem juntos, há anos, e não têm declaração de união estável. Alguns podem emitir a declaração após o rompimento, mas esta não é aceita pela FGV.
“Se eu digo que estou em uma união estável, quer dizer que estou vivendo há muito tempo com a pessoa, a FGV não reconhece isso, só aceita declarações com data anterior ao rompimento. É necessário que haja uma flexibilização das exigências documentais de acordo com a realidade de cada comunidade”, propõe Caroline Almeida, do Guaicuy.
O #Colabora fez contato com a assessoria de imprensa da Fundação Getúlio Vargas, mas até o fechamento desta reportagem, não recebeu retorno.
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Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.