ODS 1
Demora na regulamentação da PEC do Trabalho Escravo favorece o crime em ambientes rurais
Lei de 2014 prevê expropriação de terras onde forem identificadas atividades análogas à escravidão, mas nunca foi acionada por falta de legislação complementar
“A gente dormia separado, em uma casa abandonada, cheia de morcegos, com medo de ser picado por cobra e era ameaçado. Foi a pior situação que eu vivi”. Esse é Marinaldo Soares, homem negro, nordestino, de 51 anos, duas vezes resgatado do trabalho análogo à escravidão. O relato acima refere-se a sua última e considerada pior experiência, vivida em uma fazenda de criação de gado, localizada no estado do Pará.
Ele trabalhava plantando capim para alimentar o gado. Sofria constantes ameaças de morte, tinha que pagar R$ 13 por um pedaço de carne de má qualidade e ouvia o encarregado dizer, com frequência, que “os porcos da fazenda eram mais valiosos do que eles [os trabalhadores]. “Eu não sabia nem se ia sair de lá vivo”, relembra. A situação chegou ao fim quando um dos trabalhadores fingiu estar doente e conseguiu sair da fazenda para ir ao hospital. Na verdade, ele denunciou a situação análoga à escravidão e Marinaldo e os outros trabalhadores foram libertados.
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Se a PEC do Trabalho Escravo, promulgada em junho de 2014 pelo Congresso Nacional, tivesse sido regulamentada, a fazenda onde Marivaldo viveu em condições análogas à escravidão seria expropriada para fins de reforma agrária ou moradia popular. É o que está previsto no Artigo 243 da Constituição Federal, após a alteração feita pela emenda constitucional.
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Veja o que já enviamosDe janeiro a março deste ano, foram resgatados 918 pessoas, mais de um terço das 2.500 vítimas deste tipo de crime em todo o ano de 2022. Ainda assim, a PEC segue sem regulamentação – apesar de, desde 2014, já estar em tramitação projeto de lei complementar com esta finalidade. “Existe uma pressão no Congresso para que esta regulamentação não prospere, devido à base dos parlamentares ruralistas e conservadores”, explica, em nota, o coordenador do Núcleo Agrário do PT no Congresso, o deputado Federal João Daniel (PT/SE).
Em meio ao aumento dos resgates de trabalhadores em condições de escravidão contemporânea, fruto da intensificação no processo de fiscalização nos últimos meses, algumas ações estão sendo adotadas para pressionar pela regulamentação da PEC. “Estamos marcando audiência na esfera do Governo Federal, inclusive na AGU [Advocacia Geral da União] para buscar uma solução mais rápida para a matéria”, afirma o núcleo petista. Antes disso, foi deflagrada uma campanha pela regulamentação da PEC em uma Audiência no Núcleo Agrário do PT, contando com a participação de membros do Sindicato Nacional dos Peritos Federais Agrários.
A mobilização dos ruralistas para suavizar o poder da PEC do Trabalho Escravo vem de longa data. Logo após a aprovação da emenda constitucional na Câmara, ainda em 2012, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) propôs o PL 3842/2012, que trazia restrições às situações que poderiam configurar trabalho escravo. A proposta conceitua a prática “como trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob ameaça, coação ou violência, com restrição de locomoção e para o qual a pessoa não se tenha oferecido espontaneamente”.
Sem direitos
Quando foi oferecida a oportunidade de trabalho à Marinaldo, as condições degradantes não lhe foram apresentadas, por isso, ele aceitou voluntariamente. No entanto, ao chegar no local, sofreu as práticas abusivas. “A gente não podia derrubar as árvores no entorno da casa onde a gente dormia para não sermos vistos. Fomos colocados distantes um do outro para evitar que a gente se unisse, né. Quer dizer, se eles faziam isso, é porque já estavam acostumadas a escravizar gente”, recorda. Ninguém aceitaria, voluntariamente, o trabalho escravo, como a lei previa em sua redação. Esse PL não foi aprovado.
Hoje, Marinaldo dedica-se a auxiliar outras pessoas vitimas da escravidão contemporânea como membro do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Carmem Bascaranhas, em Açailândia, no Maranhão. Ele conta que só após se tornar uma liderança, percebeu que, desde os 16 anos, trabalhava em condições análogas à escravidão. “Antes [de conhecer os direitos] eu achava que era tratado assim porque eu era pobre e preto, não tinha direito de ser tratado como gente”, afirma.
Além do agricultor Marinaldo, certamente Brasil a dentro muitas pessoas ainda vivem sob o jugo da escravidão contemporânea. Isso conflita com o compromisso assumido pelo Estado que, além de tipificar o crime em seu Código Penal, ratificou a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).
Em seu artigo 4º, a Declaração afirma: “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.” Já o artigo 23º afirma: “Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.”
Trabalho escravo e agronegócio
Homem, negro, pobre, analfabeto funcional e nordestino. Esse é o perfil da maioria das pessoas resgatadas do trabalho análogo à escravidão no Brasil, segundo estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Marinaldo é um dos rostos deste perfil. Ele, inclusive, conta que o racismo corria solto na fazenda onde trabalhava. “Eles diziam direto ‘vê o que esse negro pensa’”, recorda a expressão dita em tom de desprezo.
A situação vivida por Marinaldo endossa o que aponta outra estatística da Lista Suja do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho, liderada pelo agronegócio. Dos 289 empregadores que integram a lista, 172 são classificados como atividades de criação de gado bovino, produção de café e carvão vegetal. Essa identificação está nas Classificação Nacional de Atividades Econômicas da Empresa (Cnae).
No artigo “Por que o trabalho análogo à escravidão persiste no agrongócio brasileiro”, a pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Camila Penna, afirma que a relação íntima entre agronegócio e escravidão remonta à história. “Os casos [recém denunciados], no entanto, não chegam a causar surpresa se formos nos debruçar sobre a forma como o agronegócio historicamente se constituiu no nosso país, com concentração fundiária e seletividade racial do Estado nas políticas de ocupação de terra”, afirma um trecho do texto.
Além do ambiente, a escravidão moderna possui práticas semelhantes com a escravidão ocorrida entre aos 1500 e 1800. Em março deste ano, trabalhadores resgatados no interior do Espírito Santo e Minas Gerais eram chicoteados por capatazes e não eram remunerados. Em fevereiro deste ano, trabalhadores resgatados em condição de escravidão contemporânea em uma vinícola no Sul do Brasil sofriam choques elétricos. Essas situações, que ilustram alguns dos quase mil casos flagrados este ano, mostram a semelhança entre a escravidão de 1500 e a contemporânea.
Em entrevista ao #Colabora, a pesquisadora lembra que o texto da PEC, além das propriedade rurais, envolve ainda propriedades urbanas. Segundo Camila, essa diferença entre trabalho análogo à escravidão e a escravidão propriamente dita é meramente jurídica. “Desde a abolição da escravatura, não existe uma legislação que ampare e regulamente a propriedade de pessoas por outras pessoas. Já o Artigo 149, do Código Penal Brasileiro, usa o termo análogo à escravidão, referindo-se à tipificação e à punição das relações de trabalho na qual se reduz pessoas à condição análoga à de escravos”, explica.
No frigir dos ovos, essa diferença de nomenclatura favorece os donos do latifúndio. Em outro trecho do artigo, a pesquisadora diz “ainda que relações de escravidão não estejam amparadas por uma legislação, isso não quer dizer que essas relações não continuam existindo, afinal a legislação brasileira e as políticas sempre favoreceram o lado mais forte da balança, ou seja, o proprietário da terra.”
Projetos de regulamentação
Sob a repercussão dos resgates dos mais de 200 trabalhadores de uma empresa prestadora de serviços para vinícolas no Rio Grande do Sul, novos projetos de lei foram apresentados na Câmara dos Deputados, buscando a regulamentação do Artigo 243. Um deles é de autoria do deputado Felipe Becari, do União Brasil de São Paulo. O PL 777/2023 destina-se a regulamentar a expropriação de terras rurais e urbanas onde forem identificadas situações de trabalho análogo à escravidão. Outro projeto que tramita na casa é o 1738/2023, de autoria do deputado João Daniel, do PT de Sergipe, que também destina-se a regulamentação do Artigo 243.
Eles devem ser todos apensados (incorporados à tramitação por tratarem do mesmo tema) ao PL 5016/2005, do senador Tasso Jereissati – já são 35 projetos de lei apensados. Mas a discussão dos projetos está parada desde 2019, quando a Mesa Diretora da Câmara decidiu pela criação de uma Comissão Especial para analisar o tema, que, quatro anos depois, ainda não foi instalada. O projeto de Felipe Becari, do União Brasil, partido que reúne parte da bancada ruralista no Congresso, já teve a sua tramitação iniciada; a mesa diretora determinou que o PL 777/2023 fosse apensado ao PL 5016/2005. A proposta de Daniel aguarda despacho do presidente da Câmara, Arthur Lira, mas deve ter o mesmo destino.
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Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.