ODS 1
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Veja o que já enviamos‘Seu guarda, eu só vou na Livraria Cultura’
Se não fosse ali, não seria outro lugar, não haveria saída. Não tinha condições possíveis, mesmo que fosse para pedir dinheiro em pouca quantia à mãe e realizar o simples desejo de ir, pessoalmente, à livraria. A feita desde sempre me apresentava a imposição aos quereres: ou a reunião de palavras no papel ou a carne na mesa que preencheria o vazio da fome. Não restavam dúvidas.
Burlando o impeditivo financeiro, como poderia eu então ter acesso aquilo que mudaria não só o meu ser, mas também a formação profissional?
Então, criar uma maneira de estar mais próximo, mesmo sem ter de fato. Na volta da escola, no fim da tarde, sustentar a camisa não de time, mas tão forte quanto sendo a da escola pública, caminhando pela orla de São Conrado e assim chegar ao Fashion Mall, representação individual e coletiva que até hoje explica pra mim o que é o Brasil e seus encontros. O ambiente suntuoso, com determinação de classe e raça, na mais perfeita desordem e organização que só o racismo pode dar base.
Viu essa? Imagens de uma enchente na Rocinha
E com isso, marcar, mais uma vez, o que dividiria o bairro da favela, que só é lembrada pelos meus atuais vizinhos em dois momentos: ou de tiro ou das chuvas. Que nem a desta semana, que causou estragos na comunidade e em outras regiões da cidade, num contexto que, infelizmente, reitera o racismo ambiental produzido pela falta de ação pública capaz de mitigar os impactos daquilo que é óbvio. Mas bem, isso eu posso deixar para outro momento.
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Veja o que já enviamosPara chegar à Livraria da Cultura, três lances de escada, um batalhão de guardas. No ambiente que já explicita que quem tem baixo poder aquisitivo nem sequer chega ao piso que sediava a loja. Vou ilustrar melhor: só ali o fast-food mais conhecido do mundo fica justamente à três passos da escada que dá para a rua. Entendeu ou preciso desenhar?
O universo lúdico e corajoso me empoderou, e lá fui eu rompendo as barreiras físicas e ideais. Subi o primeiro lance. Tudo ok. Temi não atravessar o segundo. Venci. Até estar mais perto do terceiro, apertando o passo para chegar a livraria, na concepção, nos meus planos, de só ver e tocar os livros, sentar ali e me perder nas horas.
“Ei. Você tá indo para onde?”, ouvi no cangote. Ao virar do olhar, um homem de quase dois metros, mas que naquele momento, ganhava proporção do Cristo Redentor. “Seu guarda, eu só vou na Livraria da Cultura. Eu só vou ler”, respondi.
“Sabe que não pode circular por aqui, né?”, me disse tentando aliviar um pouco a tensão. Talvez por ter em sua casa alguém que também só queria ler. “E eu estou seguindo ordens. Você não pode chegar ali”.
Nunca estive tão perto e ao mesmo tempo tão longe. Dava pra tentar tocar o vidro que dividia os livros logo na frente da loja, numa armação que reunia os melhores autores brasileiros e estrangeiros.
A mim, só restava seguir a viagem, retomando na curva o caminho de casa, distante dali, só para anos depois, enfiar, realizar o sonho e entrar na dita livraria – só que em São Paulo – e que agora deixa de existir. “Toda vez que uma livraria é tocada pela falência, o Brasil empurra seu futuro para mais 50 anos de distância”, sentenciou o amigo Thiago Anastácio em seu Twitter.
Pessoalmente, pra mim se enterra a lembrança eterna das mil possibilidades, mas reafirma também as impossibilidades de um país colapsado pela desigualdade. Livraria fechar tem nome: desastre. Chuva que acomete uma cidade e a deixa paralisada pela falta de estratégia – sobretudo nas favelas e periferias – é irresponsabilidade política.
E fim de papo.
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