ODS 1
Convívio escolar ajuda crianças com síndrome congênita do zika vírus
Pesquisa na Baixada Fluminense constata melhoria na comunicação, na alimentação e na interação social
Em 2015, o Brasil começou a conviver com o zika vírus que se tornaria rapidamente uma emergência de saúde pública. Em setembro daquele ano, Pernambuco registrou um aumento de 20 vezes na notificação de casos de microcefalia, condição rara em que a cabeça da criança é menor que o normal; em novembro, o governo declarou “emergência em saúde pública nacional”, com cerca de quatro mil crianças em investigação no país, No começo de 2016, foi comprovado que o zika vírus pode causar microcefalia nos fetos e a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou “emergência de saúde pública de interesse mundial”, pois o vírus estava se espalhando rapidamente, principalmente nas Américas. No Brasil, centenas de crianças, desde então, nasceram com a síndrome congênita do zika vírus (SCZ), conjunto de anomalias congênitas que incluem alterações visuais, auditivas e neuropsicomotoras. Essas crianças estão hoje, na grande maioria, em idade de convívio escolar – educação infantil ou mesmo ensino fundamental – mas ainda são poucas as que frequentam creches ou escolas.
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No Rio de Janeira, estudo envolvendo 50 pesquisadores de instituições públicas e particulares investiga a escolarização de crianças com a síndrome congênita do zika vírus. ” A estimulação educacional precoce é fundamental para o desenvolvimento dessas crianças com múltiplas deficiências em decorrência da síndrome do zika vírus”, afirma a pesquisadora Márcia Denise Pletsch, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que coordena o estudo. “Nosso acompanhamento comprova os bons resultados, mas ainda são poucas as crianças com a síndrome que frequentam a escola por uma série de fatores”, acrescenta a professora, doutora em Educação, e coordenadora do Observatório de Educação Especial e Inclusão Educacional.
A cozinheira Aline Barbosa é testemunha dos benefícios que a escolarização trouxe para sua filha, Yasmin, que vai completar cinco anos em março. “Ela passou a se alimentar melhor, a se comunicar melhor e a interagir melhor com os outros. Dá para sentir como ela fica feliz quando vê a mochilinha escolar e sabe que é hora de ir para creche”, conta Aline, moradora no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Mãe de Arthur, de seis anos, Juliana Marques relata avanços semelhantes do filho. “Conviver com outras crianças fez toda a diferença para ele. São nítidos os avanços na comunicação alternativa, nas respostas e na interação conosco”, afirma a mãe que vive com a família na Pavuna, bairro na periferia do município do Rio.
Os pesquisadores começaram a desenvolver o estudo em 2018 a partir da demanda de gestores do sistema público de saúde reunidos no Fórum Permanente de Educação Especial – criado pelo ObEE em com a participação de representantes de 11 municípios, nove da Baixada e dois do Sul Fluminense. Eles identificaram a procura de pais de criança com a síndrome congênita do zika vírus pelo sistema de ensino. “Nós sabemos que a Baixada foi um local bastante atingido pelo vírus da zika e também sabem que há uma grande subnotificação”, aponta a professora Márcia Pletsch. Nos primeiros anos da epidemia, a microcefalia dos bebês foi logo identificada como uma sequela direta da ação do vírus durante a gestação. Entretanto, pesquisas subsequentes apontaram outras deficiências provocadas pelo vírus, mesmo em crianças sem microcefalia – passaram a ser identificadas com a SCZ todos as crianças com deficiência após a ação do vírus na gestação das mães.
Os levantamentos iniciais da pesquisa identificaram a dificuldade de estimar o número exato de crianças com a síndrome. Até 2019, os registros da saúde da Baixada registravam 300 nascimentos de bebês com microcefalia, provocada pelo zika vírus. A partir de então, foram registrados outros 345 casos de crianças com deficiências intelectuais na região mas não necessariamente causadas pelo vírus. “De qualquer forma, o que nós constatamos é que poucas crianças em idade para estar na escola eram efetivamente matriculadas pelos pais. Em Duque de Caxias, por exemplo, foram identificadas 61 crianças com a síndrome congênita mas apenas 20 estão matriculadas na rede de ensino”, afirma a pesquisadora.
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Veja o que já enviamosEste um terço de crianças com SCZ matriculadas pode parecer pouco, mas Caxias é o município com o maior percentual de matrículas na educação infantil – São João de Meriti, Mesquita e Queimados têm percentuais um pouco menores mas há um município da Baixada que, das 54 identificadas com microcefalia, apenas duas estão no sistema escolar. “As famílias têm medo. Ficam inseguras: a criança não anda, não fala, será que vai aprender? Há muita falta de informação”, argumenta Márcia Pletsch.
Os temores das mães
Quando Yasmin era bem pequena, não passava pela cabeça de sua mãe, Aline, levá-la para a creche. “Minha grande preocupação era garantir os melhores cuidados médicos, a fisioterapia adequada. Eu achava que só eu podia cuidar bem da Yasmin. Não acreditava que ela pudesse ficar bem na escola”, conta Aline, que foi convencida pelos profissionais do CRAS (Centro de Referência em Assistência Social). “No começo, eu deixava Yasmin na creche e ficava muito temerosa. Pedia para a mediadora, que acompanha as crianças com deficiências, me mandar fotos e mensagens pelo whatsapp. Fui me acalmando porque Yasmin se adaptou super rápido. E os outros alunos também a receberam muito bem. Logo, deu para ver como ela estava evoluindo”, relata.
A experiência de Juliana, mãe de Arthur, foi um pouco diferente, mas teve resultado semelhante. “Foram os próprios profissionais do Instituto Fernandes Filgueiras, onde ele teve acompanhamento médico, e do CRPD (Centro de Referência da Pessoa com Deficiência), onde havia fisioterapia e terapia ocupacional, que aconselharam que o Arthur fosse para escola. Mas eu e o pai dele tínhamos muito medo: medo de zoação das outras crianças, medo de falta de tratamento adequado”, explica Juliana. “Ele começou a ir à escola, mas eu ia junto e ficava lá para ajudar. Porque as escolas, muitas escolas, não têm pessoal preparado para fazer a mediação da criança com deficiência, para auxiliar a professora”, acentua. A pandemia interrompeu o contato com outros alunos, mas a volta à escola em 2022 deixou Arthur feliz. “Criança não tem preconceito. Os colegas levam o Arthur para brincar no parquinho, ajudam nas atividades. Tudo isso vem ajudando muito no desenvolvimento do meu filho”.
A professora Márcia Pletsch enfatiza a necessidade de que essas experiências cheguem a outras mães. “Precisamos sensibilizar as famílias a procurar a escola porque o resultado positivo da escola na vida dessas crianças é visível”, destaca. As famílias têm medo porque elas se sentem inseguras de levar uma criança com deficiência para a escola. No Brasil, historicamente, não se acredita no poder da escola pública. Mas as escolas públicas são inclusivas – e a lei brasileira garante que elas sejam assim”, acrescenta a pesquisadora, que planeja ainda para este semestre o encontro de mães com filhos na escola que já são acompanhadas pelo estudo com outras famílias com crianças com a síndrome congênita do zika. “É fundamental chegar nas pessoas que não procuram o sistema de ensino. Queremos promover um encontro com as famílias com crianças com SCZ para mostrar às famílias, de maneira bastante compreensível, a importância da escola para o desenvolvimento dos seus filhos. A gente tem verificado que a presença da escola melhora, inclusive, a saúde dessas crianças”, explica a professora.
O acompanhamento da escolarização das crianças com a síndrome congênita do zika vírus é apenas uma parte do estudo coordenado pela UFRRJ, que envolve também pesquisadores da a Fiocruz, da Uerj e da PUC-Rio, além de profissionais de órgãos estaduais e dos 11 municípios, e tem financiamento da Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Visitas domiciliares para observar vivências e expectativas dos pais e investigação sobre a acessibilidade e desenvolvimento das crianças nas escolas compõem uma frente de pesquisa, a primeira a ser posta em andamento e que sofreu adequações mas não foi interrompida pela pandemia.
Os desafios para profissionais da educação
Outra frente da pesquisa é na formação de professores e outros profissionais de educação. “As escolas são receptivas a receber as crianças com SCZ e com outras deficiências, mas nem sempre professores e outros profissionais se sentem preparados”, afirma Márcia Pletsch. Após um programa piloto com a Secretaria de Educação de Duque de Caxias, os pesquisadores lançaram um curso de curso de especialização sobre a escolarização de crianças não apenas com a SZD mas com outras deficiências que teve 1484 matrículas de professores e profissionais de educação. “É muito positivo esse interesse pelo curso, mostra a disposição de cuidar da inclusão dessas crianças no ambiente escolar”, argumenta a professora da UFRRJ, destacando que este programa teve índice de evasão de apenas 23% enquanto a média em cursos EAD (educação à distância) fica entre 40% e 60%.
Os pesquisadores também trabalham no do desenvolvimento de tecnologias para uma comunicação alternativa e pretendem lançar, em breve, o aplicativo ComuniZIKA, direcionado a essas crianças com deficiências múltiplas não oralizadas. O aplicativo, desenvolvido por meio da parceria entre profissionais da PUC-RJ e da UFRRJ, tem 100 atividades para trabalhar a comunicação e ampliar a interação entre pais e filhos e foi elaborado a partir da observação junto a moradoras da Baixada Fluminense e validado pelas famílias que foram afetadas pela síndrome congênita da zika. Numa segunda etapa, adianta a professora Márcia, o objetivo é desenvolver um aplicativo com foco nos professores e outros profissionais da educação.
A pesquisa também trabalha em um terceiro eixo que é a análise das políticas intersetoriais – basicamente de educação, saúde e assistência social. “O primeiro resultado visível é a fragilidade das políticas intersetoriais. Faltam ações que englobem a saúde, assistência e incentivem a educação para o desenvolvimento dessas crianças. Isto também afasta as famílias da escola”, aponta a pesquisadora da UFRRJ. “Não há propostas concretas de política pública que promovam ações conjuntas. Um exemplo é que, no mesmo horário da aula, há agenda com fisioterapia ou fonoaudióloga. E aí a mãe acaba levando para a terapia”, acrescenta.
A professora Márcia Pletsch destaca ainda que a escolarização das crianças com síndrome congênita do zika vírus. “A escola ajuda a tirar uma carga pesada dos ombros da família, basicamente das mães que costumam se dedicar integralmente aos cuidados da criança com a síndrome”, frisa. Aline, mãe de Yasmin, largou o emprego de cozinheira em Caxias para cuidar da filha. “A vida virou de cabeça para baixo e nós enfrentamos várias dificuldades. Agora, com Yasmin bem adaptada na escola, tenho mais tempo para mim”, conta. Juliana, mãe de Arthur, deixou o emprego numa empresa de RH e agora, enquanto cuida do filho, faz sobrancelhas em casa para ajudar no orçamento doméstico. “Arthur agora vai para o ensino fundamental, numa escola próxima, com mais assistência. Deve ser uma nova etapa para todos nós”, afirma.
As experiências das mães são fundamentais para que mais crianças com a síndrome congênita do zika vírus e outras deficiências severas encontrem o caminho da escola. “A pandemia serviu para comprovar que a a escola no Brasil é um lugar seguro – não apenas um lugar de aprendizado, mas de segurança alimentar, de segurança física, de preservação da saúde. No caso da síndrome congênita do zika, estão provadas a melhoria na interação social, na expressão facial, na comunicação. Até a própria saúde geral da criança melhora com a experiência escolar”, afirma a pesquisadora Márcia Denise Pletsch.
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Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade