Sem atendimento, crianças com microcefalia apresentam regressões no Nordeste

Em virtude da pandemia do coronavírus, as crianças, como Rita (na imagem ao lado da mãe), começam a apresentar regressões em habilidades que demoraram anos para adquirir, como sustentar a cabeça, o corpo e deglutir alimentos. (Foto: Mariana Ceci)

“Ela já estava ficando em pé, mas agora as perninhas já estão moles de novo”, lamenta Valdenice, mãe de Rita. Por conta da pandemia, consultas presenciais na rede pública estão suspensas e situação afeta saúde mental das mães, alertam especialistas.

Por Mariana Ceci | ODS 3 • Publicada em 1 de julho de 2020 - 08:53 • Atualizada em 7 de julho de 2020 - 15:22

Em virtude da pandemia do coronavírus, as crianças, como Rita (na imagem ao lado da mãe), começam a apresentar regressões em habilidades que demoraram anos para adquirir, como sustentar a cabeça, o corpo e deglutir alimentos. (Foto: Mariana Ceci)

Quando Rita Vitória, de 4 anos, começou a sustentar o peso do próprio corpo e ensaiar os primeiros passos, sua mãe, Valdenice Almeida, de 37, se emocionou. “As previsões que os médicos davam eram muito ruins, então foi uma conquista imensa”, conta. Rita é uma das 3.523 crianças que nasceram com a Síndrome Congênita do Zika Vírus no Brasil desde o ano de 2015, quando teve início o surto do vírus zika que atingiu 144 mil pessoas no país, dentre elas, cerca de 12 mil grávidas. Para que Rita Vitória conseguisse sustentar o próprio corpo, foram 3 anos e meio de terapia multidisciplinar intensa, combinando fisioterapia, fonoaudiologia, neurologia e outras especialidades. Foi por isso que, quando a pandemia chegou ao Brasil e todas as atividades foram interrompidas, Valdenice, como centenas de outras mães, começaram a se preocupar. A família já está há três meses sem atendimento presencial.

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“Ela já estava ficando em pé, conseguindo andar, mas agora as perninhas já estão moles de novo. Foram quatro anos de tratamento e terapia, e agora é como se tivesse sido tudo em vão”, diz Valdenice. A maior parte (88,4%) dos casos da Síndrome Congênita do Zika Vírus está concentrada na região Nordeste. A síndrome ficou conhecida pela microcefalia, uma malformação nos cérebros dos bebês, mas possui diversas outras comorbidades associadas. Valdenice vive com Rita Vitória e outros dois filhos no município de São Gonçalo do Amarante, na Região Metropolitana de Natal, capital do Rio Grande do Norte. O vírus atingiu principalmente a população mais pobre, sem acesso à serviços como saneamento básico e coleta de lixo regular, o que facilita a proliferação do Aedes aegypti – mosquito transmissor.

Ela já estava ficando em pé, conseguindo andar, mas agora as perninhas já estão moles de novo. Foram quatro anos de tratamento e terapia, e agora é como se tivesse sido tudo em vão

Como muitas das mães de crianças com microcefalia, Valdenice cria a filha sozinha. Um trabalho que demanda atenção integral. Nos estados do Nordeste, as terapias e consultas presenciais para as crianças na rede pública estão suspensas em virtude da pandemia provocada pelo coronavírus, e as crianças, como Rita, começam a apresentar regressões em habilidades que demoraram anos para adquirir, como sustentar a cabeça, o corpo e deglutir alimentos.

Os principais centros de referência habilitados nos últimos anos para atender as crianças, assim como os projetos criados em instituições de ensino privadas para oferecer serviços como fisioterapia e fonoaudiologia, não têm data para retomar os atendimentos presenciais. Alguns tentam se adaptar ao contexto atual, utilizando o teleatendimento por vídeo para ensinar às mães a reproduzir, em casa, alguns dos exercícios com as crianças, e evitar a perda total do progresso acumulado ao longo dos anos.

Sem atendimento, crianças com microcefalia apresentam regressões no Nordeste
Os principais centros de referência habilitados nos últimos anos para atender as crianças não têm data para retomar os atendimentos presenciais no Nordeste. (Foto: Mariana Ceci)

Muitas, no entanto, como é o caso de Valdenice, estão completamente desassistidas. Ela vem se sentido deprimida diante do medo de contágio da doença pela filha, o isolamento total, a dificuldade em manter os três filhos e a regressão de Rita. “Quem cuida dela somos eu e minha filha, de 14 anos. A gente fica apreensiva, depressiva. Não estamos conseguindo ter nenhum acompanhamento. Eu tenho três filhos e sou só, então é difícil”, conta. Rita possui, além da microcefalia, outras patologias, como é o caso da bexiga neurogênica, que faz com que ela não consiga eliminar a urina de uma vez. A condição é comum em crianças que apresentam um grau mais avançado da Síndrome. Para evitar infecções na filha, que resultaria em uma ida ao hospital e a possibilidade de contágio pelo coronavírus, as trocas de fraldas são incessantes, e consomem boa parte do orçamento doméstico.

Saúde mental das mães preocupa profissionais

 Para os profissionais da saúde que acompanham as crianças com microcefalia, a saúde mental das mães durante a pandemia é uma das principais preocupações. Muitas já viviam, na prática, em isolamento social, saindo apenas para acompanhar os filhos nas consultas e terapias. Os cuidados demandam dedicação integral e, agora, somam-se às preocupações financeiras e ao medo de ver os ganhos dos últimos anos nos tratamentos dos filhos desaparecer.

A equipe multiprofissional do Instituto Santos Dumont, no município de Macaíba, também na Região Metropolitana de Natal, atende 30 crianças com microcefalia de cinco cidades diferentes do Rio Grande do Norte. O Instituto é um dos Centros Especializados em Reabilitação Auditiva, Física e Intelectual (CER III) habilitados pelo Ministério da Saúde para atender essa e outras demandas, como Epilepsia e Parkinson. A psicóloga Samantha Maranhão, que atua no Instituto, explica que o impacto emocional provocado nas mães durante a pandemia é grande em decorrência da perda de sua principal rede de apoio, que está nos serviços de saúde.

Sem atendimento, crianças com microcefalia apresentam regressões no Nordeste
Após três meses sem atendimento presencial, Rita está perdendo a habilidade de ficar em pé. “Agora é como se tivesse sido tudo em vão’, diz a mãe. (Foto: Mariana Ceci)

“Muitas delas não têm uma rede de apoio na própria família. O ato de sair de casa para levar a criança na terapia é, muitas vezes, a única forma de contato com outras pessoas, a única possibilidade de sair de casa que essas mães têm”, diz Samantha. A partir do momento que a possibilidade deixa de existir, a solidão e a ausência de pessoas com quem dividir os medos e as preocupações passam a ser mais presentes. “Elas se sentem muitos sozinhas, e vêm apresentando crises de ansiedade. Algumas chegam a ter pensamentos suicidas, porque o próprio momento que estamos vivendo já gera um sofrimento, agora imagine isso em um contexto no qual eu tenho um filho com necessidades especiais em casa, e tenho observado a regressão dele”, afirma a psicóloga.

A sobrecarga e o medo de adoecer e deixar os filhos desassistidos ganham novas proporções diante do contexto da pandemia. “Além de ser dona de casa e mãe, ela também acaba tendo que assumir um pouco o papel de ser fisioterapeuta com o filho em casa, por exemplo. Como muitas não têm rede de apoio, a ansiedade e o medo de adoecer são ainda maiores, porque elas temem que algo aconteça com elas”, explica Samantha.

Algumas mães chegam a ter pensamentos suicidas, porque o próprio momento que estamos vivendo já gera um sofrimento, agora imagine isso em um contexto no qual eu tenho um filho com necessidades especiais em casa, e tenho observado a regressão dele

A fisioterapeuta Camila Rocha, que coordena a Reabilitação Física do Centro de Educação e Pesquisa Anita Garibaldi, que integra o Instituto Santos Dumont, explica que há diversos graus de comprometimento entre as crianças que nasceram com a Síndrome Congênita do Zika Vírus. O principal público atendido no ISD, no entanto, apresenta comprometimento severo das habilidades motoras, como dificuldade de controlar a cabeça, o próprio corpo e sustentar a postura sozinho. “Um ponto muito importante que deve ser observado é que essas crianças precisam, além de fisioterapia, de um acompanhamento relativo à sua musculatura, pois muitas apresentam uma rigidez maior nos músculos. Como elas têm uma movimentação espontânea reduzida, podem ter uma tendência a criar encurtamentos musculares e, muito comumente, aparece a luxação de quadril”, explica a fisioterapeuta.

Para tentar alcançar as mães durante a quarentena, o ISD é uma das instituições que adotou o teleatendimento. As equipes costumam enviar às mães exercícios que elas podem fazer em casa para ajudar na estimulação dos músculos dos filhos, e evitar a regressão completa dos ganhos obtidos ao longo dos anos. “Por um lado, há o aspecto positivo, de que as mães levem para casa uma estimulação que não deve se restringir à terapia, mas a questão da sobrecarga e da própria capacidade de garantir a continuidade dos exercícios é uma dificuldade em meio às tarefas diárias. O foco principal tem sido dar suporte à família”, relata Camila.

Pandemia gera mais invisibilidade

Das 3.523 crianças com a Síndrome no Brasil, 3.112 (88,3%), recebiam o Benefício de Prestação Continuada (BPC), de acordo com um levantamento do Ministério da Cidadania feito em 2020. Em abril deste ano, foi sancionada a lei que garante o pagamento de pensão mensal vitalícia, no valor de um salário mínimo, para as crianças com microcefalia em decorrência do zika vírus entre 2015 e 2019, em substituição ao BPC. Mas as necessidades são grandes.

A fim de tentar ampliar essa rede de apoio, Daguia Santos, de 46 anos, criou a Associação de Mães Especiais, a Ame. Com sede em Natal, a Associação distribui doações de alimentos e itens de necessidade básica para as crianças, como shampoo, fraldas, seringas para aplicação de medicamentos e leite. Aos 43 anos de idade, Daguia adotou Maria Vitória, hoje com 4 anos, que também tem microcefalia. As tentativas de abandono de crianças nascidas com a condição, ainda na maternidade, de acordo com profissionais da saúde, se tornou comum nos anos de 2015 e 2016, durante o auge do surto.

Sem atendimento, crianças com microcefalia apresentam regressões no Nordeste
Rita faz parte do contingente das 3.523 crianças que nasceram com a Síndrome Congênita do Zika Vírus no Brasil desde o ano de 2015 (Foto: Mariana Ceci)

Se o prognóstico dado à Vitória ao nascer não era positivo, ela provou que, com o acompanhamento multidisciplinar, muitas das barreiras iniciais foram rompidas: hoje, a pequena já consegue balbuciar as primeiras palavras e andar pela casa com apoio. “Vitória já consegue comer e ficar em pé. Ela anda a casa inteira se segurando nas coisas. Agora, imagine o desespero das mães que não têm mais acesso aos serviços e veem que os filhos estão regredindo. A sensação é de que as portas que lutamos tanto para abrir de repente se fecharam. Entendemos a necessidade, mas a principal preocupação é como vai ficar depois da pandemia”, afirma Daguia.

O desejo de diminuir a solidão das mães dessas crianças foi o que motivou Daguia a dar início à Associação, que hoje atende 63 mães de crianças com a Síndrome Congênita do Zika Vírus, paralisia cerebral e autismo. A Ame conseguiu fazer parcerias com instituições da Bahia e de Pernambuco, que ajudam na obtenção de doações. “As crianças que possuem plano de saúde estão tendo acesso ao atendimento durante a pandemia, mas a maioria esmagadora, que não tem condições, estão paradas”, relata.

O abandono e a invisibilidade já eram grandes antes da pandemia. A mídia só cobria os casos durante o surto e, como a maior parte delas são pobres e estão no interior do Nordeste, ficam esquecidas

Mesmo que os serviços estivessem funcionando, no entanto, as mães se deparam ainda com outra dificuldade, que persiste desde antes da chegada do coronavírus, e afeta inclusive as consultas de rotina: como muitos dos casos estão concentrados em áreas distantes dos centros urbanos e dos locais de tratamento, elas dependem de carros dos municípios para levá-las aos centros. Durante a pandemia, os veículos foram inteiramente direcionados à levar os pacientes com Covid-19 que aguardam nas filas por leitos hospitalares. “Se muitas precisarem de uma urgência, não vão ter a quem recorrer”, diz Daguia.

“O que a gente espera é que, quando tudo isso passar, seja dada uma atenção especial para essas crianças e essas mães, porque elas vão precisar, e muito. O abandono e a invisibilidade já eram grandes antes da pandemia. A mídia só cobria os casos durante o surto e, como a maior parte delas são pobres e estão no interior do Nordeste, ficam esquecidas”, completa.

Mariana Ceci

Mariana Ceci é jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Tem interesse principalmente nas coberturas voltadas para o Nordeste brasileiro, Direitos Humanos, Gênero e Meio Ambiente. Desde 2016, atua como repórter no jornal Tribuna do Norte, em Natal, e colaborou com a agência Saiba Mais, de jornalismo independente.

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