ODS 1
A pressa do povo com fome à espera dos primeiros 100 dias do governo Lula
José Graziano, um dos mentores do Fome Zero, defende mutirão nacional contra a epidemia da fome e punição drástica para produtos não saudáveis
“Nós já dormimos com fome. A minha renda é o Bolsa Família e não dá, porque eu compro gás e [com o que sobra] vou comendo aos pouquinhos”. Essa é a avó solo negra Margarida do Nascimento, de 65 anos, que mora na Comunidade dos Coelhos, no centro do Recife, capital de Pernambuco. Para garantir o seu sustento e o da neta Vitória Castro, de cinco anos, ela conta apenas com os R$ 600 reais do Auxílio Brasil, que segue chamando de Bolsa Família.
Quando têm a sorte de não dormir de barriga vazia, Margarida e a neta comem salsicha e ovo. Esses alimentos são mais baratos e ajudam a fazer com que o auxílio, que depois da compra do botijão de gás cai para R$ 490, renda um pouco mais. Além de viver os dramas da fome, Margarida enfrenta um contexto de violência. Cinco dos seus sete filhos estão presos, incluindo a mãe de Vitória que se chama Monalisa. O único filho livre está envolvido com o tráfico de drogas e sofreu uma tentativa de assassinato, no sábado, 19 de novembro, e está internado no Hospital da Restauração, no Recife.
Leu essa? O que falta no prato das crianças
Margarida é uma das seis de cada dez mulheres negras chefes de família que enfrentam dificuldades para se alimentar, de acordo com o 2º Inquérito VIGISAN. Ela e a neta têm a pressa de quem ouve o ronco e sente a dor da barriga vazia, de quem sabe que uma hora ou outra vai faltar força para se sustentar. Elas compõem ainda os 65 milhões de brasileiros, que dormem sem a certeza de que vão comer amanhã. Este número é a soma entre o total de pessoas que vivem em insegurança alimentar moderada e grave, indicador que é trabalhado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
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Veja o que já enviamosA mãe/avó solo negra é um exemplo do Brasil de 2023, que voltará a ser governado por Luiz Inácio Lula da Silva. Além do número maior de pessoas passando fome, hoje, 28% da população brasileira vive em situação de insegurança alimentar leve, ou seja, deixou de consumir frutas, verduras e legumes. Os dados são do 2º Inquérito Nacional de Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia (VIGISAN). Em 2003, esse número era de 13,8%.
José Graziano, ex-Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, um dos mentores do Programa Fome Zero e ex-Diretor Geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), considera a situação atual muito pior do que parece. “Deve ter se agravado porque o Governo veio dar um Auxílio de R$ 600 só agora nas eleições, só programa eleitoreiro”, pondera.
Graziano acredita que o combate à fome no contexto atual depende de uma combinação de estratégias. Algumas delas adotadas no Programa Fome Zero, em 2003, que uniu crescimento econômico inclusivo com experiências exitosas implementadas em municípios brasileiros, a exemplo dos bancos de alimentos e restaurantes populares. E políticas econômicas incluindo a recuperação do salário-mínimo com bônus para evitar desatualização em relação à inflação. Além de gerar emprego e aumentar o poder de compra da população. As demais medidas, segundo o ministro, devem ter caráter emergencial e de tributação.
“Primeiro, nós precisamos de um mutirão contra a fome, pois esta é uma epidemia de fome. Nós não podemos mais ficar dependendo da Anvisa para cuidar do tema da alimentação no Brasil. Ela já está muito ocupada com as pandemias e com o atraso nas vacinas. Não podemos esperar que a Anvisa vá dar prioridade, por exemplo, à rotulagem dos alimentos que começa a ser feita tardiamente no Brasil. Temos que partir para uma política para subsidiar alimento saudável e punir drasticamente aqueles alimentos não saudáveis. Eles geram um custo de saúde brutal para o país. Então, é justo que o Brasil passe a taxar esses produtos”, propõe.
Fome e mudanças climáticas
A questão da fome está “indissoluvelmente ligada à questão do clima”, afirma, de forma categórica, Graziano, que completa: “esta relação é uma das grandes diferenças entre o Brasil de hoje e o de 2003”. Situações de secas prolongadas, tempestades de granizo e geadas fora de hora revelam essa alteração climática. “É uma série de distúrbios climáticos que afetam muito a produção agrícola, principalmente aquela produção local de frutas, verduras e legumes. Então, fome e mudança climática têm que andar juntas. Hoje, não basta dar de comer, tem que dar de comer alimentos saudáveis e produzidos de forma sustentável para todos”, arremata o especialista.
Foi justamente a combinação de desemprego, pandemia e mudanças climáticas que fez com que a agricultora Daniela Santos, de 25 anos, que mora no Sítio Gruta Funda, no Semiárido pernambucano, entrasse para a estatística da fome. Ela faz parte dos 21,8% das famílias agricultoras, produtoras de alimentos, que foram alcançadas pela insegurança alimentar moderada, como revela o 2º Inquérito VIGISAN.
A chuva começou tarde, em maio. Sempre começa em março ou abril. [Neste período] choveu um pouquinho e a gente não plantou, com medo de perder. Plantamos no dia 15 de maio, aí a chuva veio demais e deu a queima, o amarelo [quando as folhas perdem a coloração verde e as plantas morrem] e perdemos a plantação. A gente plantou milho, fava, feijão, rama de batata e maniva (macaxeira). Quando a gente lucra meio saco de feijão, a gente come durante uns quatro ou cinco meses”, conta Daniela.
Sem os alimentos da terra, Daniela e o marido, que estão desempregados, tiveram que, junto com as três filhas, viver apenas dos R$ 600 do Auxílio Brasil. A renda só garante alimento durante 15 dias e porque Daniela faz malabarismos, comprando o que é mais barato: cuscuz, macarrão, bolacha. Dois dos seus filhos, José Augusto, de seis anos, e Joana Vitória, de dois anos, ainda são lactantes. Com isso, a família não escapa de uma despesa: o leite. As crianças tomam leite duas vezes ao dia. Por sorte, o leite da manhã é garantido pelo vizinho, que doa um litro de leite de vaca todos os dias. Mas, para garantir o leite da noite, Daniela tem que reservar R$ 60 todos os meses.
“Sem ter uma renda fixa, não dá para dizer com certeza ‘amanhã eu vou ter esse alimento para comer’. Praticamente faz três anos que eu estou desempregada e o meu esposo do mesmo jeito. Antes da pandemia ele já ficou desempregado. Eu peço que o Brasil, nesses quatro anos para a frente, melhore! Porque o pior já passou. E eu penso que possa ter um emprego, que eu possa dar algo de melhor para os meus filhos”, sonha a agricultora.
É preciso reconstruir as políticas de segurança alimentar
Mariana Santarelli, integrante do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), acrescenta o aumento do consumo de produtos ultraprocessados, que está ligado aos casos de obesidade, diabetes e pressão alta, aos problemas alimentares do Brasil de 2023. Neste contexto, nos últimos quatro anos, “foi dada prioridade à produção de commodities para exportação em detrimento da agricultura familiar, que abastece as mesas das famílias rurais e urbanas do Brasil”, destaca.
Para se ter uma ideia, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que comprava alimentos da agricultura familiar para doar às pessoas em situação de insegurança alimentar da área urbana, foi extinto. Os investimentos na agricultura familiar foram minguando ano a ano, como revela uma investigação publicada em matéria da Agência Pública. Em 2019, o repasse foi de R$ 6 milhões, caiu para R$ 1,2 milhão, em 2020; e até outubro deste ano, era zero.
Some-se a tudo isso o reajuste do orçamento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que não ocorre desde 2017. Com isso, os valores per capita trabalhados pelo programa variam de R$ 0,32 a R$ 1,07, que não garante a compra nem de um pão em muitas cidades brasileiras. Por fim, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi extinto, logo no primeiro ano da gestão de Bolsonaro. Levando em conta o desmonte das políticas de segurança alimentar, nos últimos quatro anos, Santarelli afirma que é preciso reconstruir o que foi perdido.
“É preciso garantir a retomada dos programas de combate à insegurança alimentar, incluindo o Programa Cisternas. A Proposta de Lei Orçamentária Anual que foi enviada por esse desgoverno atual praticamente esvaziou o orçamento desses programas. Será preciso restituir o financiamento do Programa Nacional de Alimentação Escolar de forma a superar as perdas decorrentes do não reajuste do Programa. A reconstrução do Ministério do Desenvolvimento Agrário, preocupado com a produção de comida de verdade, que incorpore a perspectiva de abastecimento. Financiar as experiências de produção e distribuição de alimentos realizadas pela sociedade civil, ao longo da pandemia, e garantir a reconstituição do Consea, que não pode ser pensada de forma deslocada do Sisan (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional)”, pontua a integrante do FBSSAN.
A fome não está sozinha
A fome presente nas vidas das famílias de Daniela e Margarida não está sozinha. No caso da agricultora, ela caminha de mãos dadas com a ausência de políticas públicas específicas para a região do Semiárido. Essa região se caracteriza pela ocorrência de chuvas concentradas em apenas quatro ou cinco meses do ano, ou seja, entre janeiro e maio, chove de 200 mm a 800 mm, no restante dos meses ocorre o período de estiagem. Para que famílias como as de Daniela atravessem esse período, com qualidade de vida, é preciso assegurar estoque de água, condições de produção e alimento para os animais.
A região semiárida compreende os nove estados do Nordeste e a área norte de Minas Gerais. Historicamente, nestas localidades, a fome e a sede foram serviram de moeda de troca, base dos regimes de governos clientelistas e coronelistas que se consagraram na região. De acordo com o autor da clássica obra “A invenção do Nordeste”, Durval Muniz, “a fome e a seca são contextos que marcaram o surgimento da região Nordeste, um conceito criado para atender as elites das oligarquias”, define o autor.
Por essa razão, a fome nessa região caminha junto do cabresto, tem cor, tem lado, sobrenome e estratégia política. Entre os anos 2003 e 2015, o Semiárido conheceu o gosto das conquistas sociais. Esteve fora do Mapa da Fome, alcançou a marca de um milhão de cisternas. No entanto, como afirma Daniela, “nesses últimos quatro anos, não se viu nada. Com a pandemia, então, não foi nada agradável”, avalia.
Dona Margarida já nasceu marcada pela fome. Aos cinco anos de idade, veio com a mãe e os irmãos de Macaparana, cidade localizada a 116 km do Recife, no Semiárido pernambucano, junto com os irmãos. A mãe trabalhava como empregada doméstica pelo alimento, mas, ainda assim, a fome era tanta que a família se dividiu. Margarida foi parar na ocupação urbana dos Coelhos. Casou, teve 14 filhos, dos quais apenas sete ficaram vivos. O marido, que tinha dependência do álcool, saiu de casa e a deixou sozinha para sustentar os sete filhos.
“Ele foi embora e me deixou com uma tuia [muitos] filhos caindo de fome. Aqui é a cracolândia e os meus filhos, para não morrerem de fome, foram vender droga. Amanhecia o dia, os meus filhos diziam assim ‘mãe, bote o meu café’, eu respondia ‘tem não’ e botava para chorar, aí batia aquela mágoa, eu saia para beber. Depois, veio aquela depressão, aquela agonia. A depressão virou um tipo de loucura e eu quebrei tudo dentro casa”, conta a mãe/avó solo.
No caso de Margarida, a fome está emaranhada com a violência, a criminalidade, os transtornos mentais e o racismo. Segundo ela, em qualquer conflito na comunidade ou com o ex-marido, o uso de adjetivos como “macaca” e “negra da senzala” são frequentemente usados. Os filhos de Margarida, em sua maioria negros, encontram no presídio um refúgio, uma forma de manter as próprias vidas a salvo. “Se [meus filhos] se soltarem e vierem para cá, morrem! Porque inventaram de estar no meio do tráfico, aqui é outra facção. Se vier para cá, vai ter que entrar para esse outro dono, esse outro dono ele [eles] não quer [querem]. Eu avisei: ‘deixa essa vida, que roubar o que é dos outros não dá certo”, confessa Margarida.
Josué de Castro não sabia o que estava por vir
“O que falta é vontade política para mobilizar recursos a favor dos que têm fome”. A frase de Josué de Castro, o maior pensador sobre a fome no Brasil, era uma virada de chave. Denunciava o interesse político por trás da fome. O que Josué não sabia era que 80 anos após ele cantar essa bola, o Brasil de hoje, em vez de caminhar rumo a superação do problema com ações políticas, iria se encontrar numa situação ainda pior.
“Se você comparar, o mapa que o Josué de Castro apresentou no Geografia da Fome, em 1946, com o mapa da VIGISAN, em 2022, vai ver um Brasil inteiramente vermelho da fome. Enquanto no Mapa de Josué de Castro era apenas na região Norte e no Litoral da região Nordeste. Além disso, nós não estamos falando apenas de miseráveis passando fome. Nós estamos falando de uma fome que já atingiu segmentos da classe média mais baixa e da própria classe média, no caminho que a insegurança alimentar seguiu, ela já afeta um terço da população brasileira”, analisa Graziano.
Mesmo com o agravamento da fome, 80 anos após Josué de Castro revelar alguns caminhos das pedras para combater o mal, a história do Brasil segue tendo algumas idas e vindas. O Programa Fome Zero criado, em 2003, quando “tudo ainda era mato” no que se refere ao combate à fome no Brasil marca um desses momentos de avanço.
Segundo José Graziano, um dos mentores do Programa, o país vivia, à época, “um apagão de estatísticas fundamentais. Podíamos dizer que estávamos às cegas”, afirma. O conceito de Insegurança alimentar ainda não havia sido adotado e o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) havia sido extinto no governo de Fernando Henrique, que por sua vez, “não reconhecia que existia famintos no Brasil”, relembra Graziano. Nesta época, a equipe do Fome Zero chegou ao cálculo de que quem vivia com menos de US$ 1 per capita passava fome. No Brasil, 44 milhões de pessoas se encontravam nesta condição”, recorda.
Partindo do zero, o Programa aprendeu muitas lições no combate à fome. “A primeira grande lição é que acabar com a fome é uma decisão política e ajuda demais se o presidente for o avalista desta decisão”, relembra o ex-ministro, corroborando a tese de Josué de Castro. A segunda lição é que o Brasil precisa crescer para gerar empregos de qualidade, distribuir melhor a renda. Não adianta ter uma política tipo o Bolsa Família, transferir a renda e aí ter desemprego crescente. “Não pode pôr com uma mão e tirar com a outra. As duas mãos têm que andar juntas. A política macroeconômica e as políticas de segurança alimentar”, completa.
Por fim, as políticas de transferência de renda tipo o Bolsa Família e outras políticas de segurança alimentar precisam de uma coordenação muito forte, tanto no nível do Governo Federal, quanto no nível municipal. “As políticas de segurança alimentar têm que ser implementadas a níveis municipais”, reforça.
Graziano considera que a experiência do Fome Zero deixou aprendizados e é uma vantagem para o Brasil de hoje em relação ao de Josué de Castro. “Nós temos hoje uma série de instrumentos legais e operacionais, nós temos um cadastro das famílias, o Cadastro Único. É uma grande vitória e vai ser recuperado agora no terceiro governo Lula. Nós temos já azeitado com a Caixa Econômica para fazer as transferências dos programas tipo Bolsa Família. E outras medidas tipo a Conab, que já sabe como fazer compras da agricultura familiar. Evitar a privatização da Conab, agora, é fundamental. Porque a Conab é quem opera a compra da agricultura familiar”, conclui.
*Dona Margarida espera por políticas que resolvam a sua situação de forma estrutural, mas, enquanto isso não acontece, se você quiser fazer ao menos o Natal dela e da neta Vitória mais digno, pode doar para o PIX: amanciocomunicacao@gmail.com. Na próxima terça-feira, os recursos arrecadados serão entregues e será produzido um vídeo de prestação de contas. Acompanhe nas redes do #Colabora.
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Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.