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Veja o que já enviamosColorismo 2.0 – segunda parte (final)
A branquitude perverteu a política pública, apropriou-se indevidamente de recursos que seriam destinados aos negros e conseguiu aumentar sua presença utilizando-se de fraude eleitoral
Desde que tomei contato com o conceito de colorismo sabia que não iria compreendê-lo totalmente sem estudar outros temas que as feministas negras haviam abordado. Foi quando comecei a ler o pensamento de Patricia Hill Collins que me deparei com a definição, mobilizada junto a outras articulações teóricas e entendi o significado de matriz de dominação. Pensar os dois itens foi a chave para que eu finalmente compreendesse o colorismo como subproduto do racismo em contextos específicos; foi a chave para eu entender por que o conceito não tinha o mesmo sentido no nos Estados Unidos e no Brasil.
Collins explica que o racismo é organizado dentro de uma matriz de dominação que lhe confere sentido. É a forma com que as opressões se articulam em domínios de poder, que fazem as opressões poderem funcionar perfeitamente em contextos tão diferentes; se elas fossem a mesma coisa em todos os lugares, perderiam o sentido. As opressões, e o racismo entre elas, se apresentam em um contexto social, econômico, cultural e histórico. Ou seja, as experiências vividas das opressões se dão dentro de ambientes sociais que produzem essas experiências.
E o contexto social do racismo estadunidense e do racismo brasileiro, sabemos, não é o mesmo. Lá, o racismo enraizou o colorismo como seu derivado, hierarquizando ainda mais as relações em uma sociedade onde tais escalas são o centro da articulação da supremacia branca, que para seguir existindo precisa aparentar ser o que ela não é – por exemplo, inclusiva. Negros são incluídos numa democracia onde a retórica do daltonismo racial é central a um controle determinado pelo colorismo. No Brasil, o mito da democracia racial sempre existiu, exigiu fortes articulações do movimento social negro para ser desmantelado, mas segue sendo utilizado na forma de discurso para negar a existência do racismo, especialmente por grupos conservadores.
A propósito, cabe lembrar que quem define o tratamento mais nocivo ou preferencial entre pessoas da mesma raça mas de tons de pele distintos são aqueles que historicamente estabelecem as dinâmicas de poder: a branquitude. No Brasil, as muitas pesquisas sobre desigualdades raciais desenvolvidas nos últimos anos demonstram como, independentemente da linha de cor, negros mais claros ou mais escuros vão ter tratamento prejudicial e ponto. Se você é negro, vai ser diretamente afetado por alguma forma de violência e não importa se sua pele é mais clara ou mais escura. As crianças negras mais claras são vítimas da violência de Estado e as crianças negras mais escuras também. As mulheres negras mais claras são vítimas de violências institucionais e as mais escuras também. Os homens negros mais claras são alvos do estado genocida e os homens negros mais escuros também. Nem mais, nem menos.
Os instrumentos coercitivos e disciplinadores do Estado não se importam com a tonalidade da pele – o objetivo é apenas normalizar e naturalizar a morte de pessoas negras em geral. Recado bastante explícito. Em que pese termos avançado tanto em articulação quanto na visibilidade de nossas pautas, as instâncias de poder ainda são espaços tomados pela branquitude sem nenhum tipo de alternância que permita a pessoas negras serem vistas em sua humanidade, independentemente de mais ou menos melanina.
Aqui, o termo ganhou contornos próprios em razão de outro fenômeno, muito além da violência ou das desigualdades econômicas. O que fez o colorismo virar instrumento de determinação racial foi o oportunismo da branquitude, também chamado de afroconveniência. A mazela surgiu nos desdobramentos da implementação das políticas de ações afirmativas de cotas raciais no mercado de trabalho e no nível superior. Aparece quando a mobilização da identidade negra é feita por uma pessoa branca para obter algum tipo de ganho. A forma não silente com que estudantes negros de instituições de ensino superior presenciaram essa forma de fraude ao sistema de cotas raciais talvez tenha sido uma das principais responsáveis pela repercussão do termo.
A partir daí se iniciou uma espécie de levante de pessoas negras mais claras, que passaram a se sentir silenciadas ou diretamente ofendidas pelo questionamento de suas afirmações raciais. Instaurou-se algo como um colorismo reverso, como se as pessoas mais escuras pudessem deslegitimar a negritude de pessoas mais claras. O termo ganhou um sentido bastante individual e distante do que ele se propõe mesmo no contexto estadunidense. Ao mesmo tempo, gera debates onde o centro é apontar a existência de um certo racismo interno, como se as pessoas negras escuras se recusassem a reconhecer a negritude de pessoas claras e com isso lhes impedissem de afirmar a própria negritude.
Nessa confusão, raramente questionamos como em determinadas situações aparece uma identidade racial de ocasião, apropriada apenas quando a vaga para o concurso é destinada a negros, apenas na hora em que a bolsa do programa de pós-graduação é específica para negros ou quando a oportunidade de trabalho é voltada para negros. Uma identidade racial que só é acessada na hora dos benefícios, mas que desaparece quando precisa ser mobilizada para a resistência coletiva.
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Veja o que já enviamosConsiderando o que expliquei aqui anteriormente e observando como se articulam as estruturas de poder, é bastante óbvio que não está na mão de pessoas mais escuras impedir ou obstaculizar nenhum tipo de oportunidade às mais claras. No fim das contas somos todos negros e, em um país estruturado pelo racismo, ainda impedidos do exercício do poder.
Mas as eleições de 2022 nos deram a oportunidade de pelo menos fazer chacota e deslegitimar publicamente gente branca que utiliza nossas pautas como commodities para seu próprio benefício. ACM Neto, candidato ao governo da Bahia, se declarou como pardo obviamente mirando no maior aporte financeiro que as conquistadas políticas públicas de divisão dos recursos eleitorais para beneficiar candidaturas negras poderiam aportar em sua campanha. A negritude não se calou perante tamanha falta de caráter e de muitas formas, umas cômicas, outras sérias, expôs a perversidade do ato do candidato. A conta também foi cara para o próprio ACM que terminou o primeiro turno das eleições em segundo lugar, a considerável diferença de seu opositor, Jerônimo Coelho – este sim, homem negro.
O baiano servirá de exemplo a outros brancos que queiram nossa pele vestir para mais uma vez nos expropriar de nossas conquistas. Como ele, sabemos que existem vários outros e logo após o resultado eleitoral do primeiro turno pudemos perceber o quanto a afroconveniência é uma realidade institucional no Brasil. Tivemos aumento de quase 10% de presença negra no Congresso Nacional, mas apenas em tese. Na prática, apesar de ainda não termos análises aprofundadas sobre o tema, a branquitude perverteu a política pública, apropriou-se indevidamente de recursos eleitorais que seriam destinados aos negros e conseguiu aumentar sua presença em cima de fraude eleitoral.
Já estão em curso iniciativas que visam a fazer com que as pessoas brancas que se declararam negras neste pleito e receberam incentivos públicos em razão da sua autodeclaração sejam devidamente investigadas e não passem ilesas (o que acontece mais do que deveria). Não é raro vermos pessoas brancas que se declaram negras inclusive definindo quem negro é apropriando-se de falas e contribuições importantes de nomes fundamentais para a luta dos negros e negras no Brasil. Quando apontadas em sua afroconveniencia, lembram da avó preta apenas na hora de desfrutar de algum tipo de benefício, e utilizam erroneamente a ideia de colorismo para silenciar pessoas negras. Passam ilesas, sentam-se nas cadeiras de liderança em grandes empresas como pessoas negras seguem exercendo trabalhos precários sem oportunidade de ascensão.
Contudo, o mais importante aqui é compreender que as diferenças que enfrentamos socialmente em nosso país como pessoas negras, na diversidade da nossa negritude, não são passíveis de serem explicadas pelo colorismo. Este conceito não dá conta da matriz de dominação brasileira, da forma com que o racismo no Brasil desqualifica, desprivilegia e elimina pessoas negras independentemente da sua cor. Aqui não existe privilégio concreto para pessoas mais claras nem mesmo na dimensão subjetiva.
Ao mesmo tempo, é inegável que pessoas negras mais escuras vivenciam situações de racismo cotidianas e irrefutáveis. E a maior visibilidade da nossa melanina também significa que no cotidiano e que em nossas trajetórias individuais o racismo será mais palpável.
Porém, apesar de estar convencida de que o colorismo não é uma chave analítica útil para observar em perspectiva sociológica o racismo brasileiro, não significa que ele seja de todo dispensável. Debruçarmo-nos sobre esse conceito pode nos dar a oportunidade de pensar outros, desde a nossa própria experiência vivida, que nos ajudem a desenvolver ferramentas de percepção do racismo brasileiro e nos auxiliem a enfrentá-lo. Pois o racismo é uma estrutura de poder complexa, que jamais será solucionada com atalhos simplistas.
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