ODS 1
Termelétricas flutuantes: pesadelo ambiental na Baía de Sepetiba
Decisão suspende empreendimento em baía cerca por áreas de proteção; sete hectares de manguezais já foram destruídos
A Baía de Sepetiba, no litoral sul do estado do Rio de Janeiro, e seus 500 quilômetros quadrados reúnem ecossistemas variados e já ameaçados pelos quatro portos instalados, apesar de cercada de áreas protegidas: a Área (APA) de Proteção Ambiental de Mangaratiba abrange parte mais ao sul da Região Hidrográfica, ilhas no interior da baía e a Ilha da Marambaia; a APA da Orla Marinha de Sepetiba, sob guarda da capital, a Reserva Biológica (REBIO) de Guaratiba e a APA de Sepetiba II, ambas áreas estaduais, e a APA Marinha Boto-Cinza abrange o ambiente marinho. Nos últimos meses, a baía vem convivendo com o pesadelo ambiental de instalação de quatro termelétricas flutuantes, que começaram a ocupar as águas da baía quase ao mesmo tempo da determinação da Justiça de suspender a operação.
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A batalha judicial – com ambientalistas, pescadores e o Ministério Público, Federal e Estadual de um lado, e a empresa turca responsável pelas usinas e o governo do Rio do outro – teve novos capítulos na semana passada com um audiência pública na Câmara dos Deputados, que pretende acionar órgãos federais, e denúncia formalizada pelo Instituto Arayara junto à Capitania dos Portos acusando a Karpowership (KPS), proprietária das termelétricas flutuantes de descumprir a ordem judicial de suspender as atividades. “Esse é um dos maiores crimes ambientais já vistos no Brasil. Esse enorme empreendimento, que vai queimar três milhões de metros cúbicos de gás por mês, ganhou isenção do estudo de impacto ambiental do estado”, afirmou o engenheiro florestal John Wurdig, coordenador técnico do Instituto Arayara, que lidera as ações contra o empreendimento na Baía de Sepetiba.
A turca Karpowership foi uma das beneficiadas pela contratação emergencial feita pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), por meio de Procedimento Competitivo Simplificado (PCS), em outubro de 2021, em meio à crise hídrica. Das 17 usinas contratadas, 14 eram termelétricas movidas a gás, entre elas, as quatro flutuantes de Sepetiba. “O custo da energia dessas usinas termelétricas, o que inclui as da KPS, é quase sete vezes maior do que de outros empreendimentos em operação no país. Queremos o fim do racismo energético e uma energia limpa e barata para todos. Não queremos uma energia suja e cara”, destacou o engenheiro Juliano Bueno, do Observatório de Petróleo e Gás durante a audiência pública na Câmara.
Apesar de toda a sensibilidade ambiental da Baía de Sepetiba, considerada pela Constituição Estadual do Rio de Janeiro “área de relevante interesse ecológico”, o processo para instalação das termelétricas flutuantes e de 36 torres de transmissão de energia necessárias para distribuição andou em ritmo acelerado. Ainda em dezembro de 2021, o governo do Rio enquadra o empreendimento na qualidade de projeto estratégico, garantindo um processo de licenciamento mais célere. Em fevereiro de 2022, o governador Claudio Castro assina decreto considerando as obras de infraestrutura do empreendimento como de utilidade pública, “para fins de intervenção em áreas de vegetação primária ou secundária em estágios avançado e médio de regeneração pertencentes ao bioma Mata Atlântica”. A construção das torres de transmissão exige a supressão de Mata Atlântica no entorno da baía.
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Veja o que já enviamosEm março, o Instituto Estadual do Meio Ambiente (Inea) concedeu Licença Ambiental Integrada, que liberou parte do projeto para a construção das torres de transmissão, mesmo sem o EIA/RIMA (Estudo de Impacto Ambiental / Relatório de Impacto Ambiental) e a realização de audiências públicas, fatiando o empreendimento e provocando a primeira reação no âmbito do Judiciário. O Ministério Público Federal entrou com ação para que a Justiça declarasse nula a licença. “A licença para instalar as torres não poderia prescindir de Estudos de Impacto Ambiental aprofundados e detalhados, tendo em vista os significativos impactos à Mata Atlântica e à Zona Costeira”, argumentou o procurador da República Jaime Mitropoulos, autor da ação.
No começo de maio, o Instituto Arayara emitiu notificações extrajudiciais a 11 órgãos – federais e estaduais, do Executivo e do Legislativo – listando irregularidades no licenciamento das Usinas Termelétricas Flutuantes da Karpowership. Maio não havia terminado, quando no dia 24, a Comissão Estadual de Controle Ambiental (Ceca) aprovou deliberação dispensando o Inea de exigir EIA/RIMA, o que provocou nova ação do MPF para suspender impedir a instalação das térmicas na Baía de Sepetiba. “As provas iniciais trazidas ao Ministério Público Federal já evidenciavam que se trata de empreendimento de altíssimo impacto ambiental”, afirmou o procurador Mitropoulos, na audiência convocada pelas Comissões de Direitos Humanos e de Minas e Energia da Câmara. “O mínimo que o poder público deve fazer é exigir o estudo de impacto ambiental da forma mais rigorosa possível”, acrescentou.
Em paralelo, o Arayara e o Ministério Público Estadual ingressaram com ações civis públicas para suspender o empreendimento no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. As obras para a construção das torres de transmissão começaram enquanto os powerships (as termelétricas flutuantes) se deslocavam para o Rio de Janeiro. A primeira embarcação alcançou a Baía de Sepetiba na última semana de julho; as outras três chegaram em seguida. Entretanto, também no final de julho, a juíza da 2ª Vara da Fazenda Pública do Rio de Janeiro, Georgia Vasconcellos da Cruz, determinou a suspensão da instalação e operação das quatro usinas termelétricas flutuantes. Na decisão, a juíza argumentou ser “frágil e insustentável” a argumentação do Inea ao se manifestar favorável à inexigibilidade de EIA-RIMA para as usinas, uma vez que o próprio órgão classificou o projeto como “potencialmente causador de significativo impacto ambiental”, em parecer anterior.
Ameaça na terra, no mar e no ar
Para os especialistas, os impactos ambientais podem ser terríveis. “Os riscos são imensos. Na Baía de Sepetiba, existem manguezais que estão em muito bom estado de conservação, além de restingas de áreas de Mata Atlântica. Há uma biodiversidade grande, incluindo a maior população de botos-cinza do estado, grande variedade de peixes e espécies de aves migratórias”, destacou a professora Helena de Godoy Bergallo, do Instituto de Biologia Roberto Alcantara Gomes, da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). “Já há um passivo ambiental porque foi feita supressão de vegetação nativa na área onde eles pretendem construir as torres de transmissão”, acrescentou a pesquisadora no debate promovido pela Câmara.
Helena Bergallo explicou que, ao utilizar a água da própria baía para resfriar suas caldeiras, as termelétricas têm potencial para elevar a temperatura das águas no local em até 15º C, o que ameaçaria a vida de diversas espécies. A professora acrescentou que, com o funcionamento ininterruptos das termelétricas, haveria a propagação do som dentro da água. “Isso afeta a atividade de peixes e botos-cinza”, frisou, lembrando ainda que as estruturas estão iluminadas durante a noite e o impacto da luz também afeta a vida marinha e as aves que vivem na região. “O próprio Inea classificou o empreendimento como de alto potencial poluidor, na última classe, em uma lista de 20 classes. Empreendimentos com esse impacto devem passar pelo estudo”, enfatizou a pesquisadora.
O pesadelo ambiental na Baía de Sepetiba, porém, parece longe de acabar. As usinas flutuantes já estão atracadas na Baía de Sepetiba e a Karpowership afirma que vai recorrer da decisão para prosseguir a instalação. “Todo processo de licenciamento ambiental do empreendimento segue rigorosamente os critérios técnicos e jurídicos aplicáveis, decisões e normas estabelecidas pelo órgão licenciador. Todos os estudos de impacto socioambiental exigidos pelo órgão ambiental já foram apresentados”, afirmou a empresa em nota. A Karpowership informou ainda que iniciou um projeto de compensação ambiental voluntária em parceria com a prefeitura de Itaguaí. De acordo com a empresa, haverá ações para reflorestar áreas degradadas, com o replantio de espécies nativas da Mata Atlântica, de mangue e restinga.
Pescadores da região e os ambientalistas do Araraya, entretanto, acusam a empresa de descumprir a ordem judicial e o Inea de não tomar providências. No dia 27, pescadores fizeram com 60 barcos em Sepetiba: eles reclamam que as embarcações estão impedindo o livre acesso a áreas da baía, queda do volume de pescado retirado do mar, desaparecimento dos peixes em seis pontos, e a colocação de cabos atravessando as águas, que podem provocar acidentes. “A juíza mandou parar o empreendimento e eles continuam trabalhando. São 3.500 famílias, mais de 15 mil pessoas, só de pescadores, que já estão sendo afetados, mesmo com o ordem de suspender”, disse, na audiência pública, o pescador Flávio Confrem, coordenador geral da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas e Povos Tradicionais Extrativistas Costeiros e Marinhos (Confrem).
No mesmo dia do debate na Câmara (03/08), a Justiça do Rio de Janeiro intimou a Karpowership a interromper a instalação das quatro usinas flutuantes na Baía de Sepetiba (RJ), até que sejam apresentados e aprovados os estudos de impacto ambiental, sob multa de 50 mil reais. E o Inea recebeu intimação semelhante. A empresa assegurou que estava cumprindo a decisão e mantendo apenas serviços essenciais para a manutenção. Na sexta-feira, entretanto, uma equipe do Araraya esteve na Baía de Sepetiba e fotografou operários trabalhando nas termelétricas flutuantes e nas torres de transmissão na baía. “O que nós estamos vendo aqui é um crime de desobediência a uma ordem judicial”, afirmou a diretora executiva da Arayara, Nicole Oliveira, que esteve em Sepetiba, e, após o flagrante, protocolou as denúncias do descumprimento da intimação junto à Capitania dos Portos e ao Ministério Público do Rio.
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Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade