ODS 1
Contra o desperdício de comida
Italianos usam aplicativo para aproveitar alimentos que seriam descartados e, nas escolas, alunos levam sobras de comida para casa
Limpar o prato era uma regra quando a produção de alimentos era escassa. Na Itália da época da fome era comum fazer a scarpetta – esfregar o pão no resto de molho no prato. O hábito foi banido por um tempo, considerado falta de educação, mas está de volta. Hoje, na terra da pizza e do espaguete, onde a comida é valorizada como um bem cultural, estão sendo desenvolvidos vários projetos contra o desperdício de alimentos, um dos maiores desafios de sustentabilidade no mundo. Viver e comer sem desperdiçar é o lema de instituições privadas e governamentais italianas que estão ampliando o conceito da scarpetta.
Em novembro de 2015, o Ministério do Meio Ambiente italiano deu à cidade Borgo San Lorenzo, na região de Florença, o prêmio Vivere a spreco zero (viver com desperdício zero). Resultado de uma parceria da prefeitura com organizações não-governamentais, entre elas a Cooperativa Le Mele di Newton. A ONG desenvolveu um aplicativo que liga a produção, a distribuição, a comercialização e o consumidor final, pessoa física ou jurídica, e instituições filantrópicas, recuperando em tempo real o excesso de comida. No site da cooperativa, o internauta pode saber onde comprar a maçã que seria descartada a um preço mais barato no mercado ou no produtor, ou descobrir que as tortas ou docinhos de determinada padaria não foram vendidas e que o pasticciere está vendendo a preço de custo, ou mesmo doando, o que iria acabar indo parar no lixo.
“Antes de sair de casa, nos dias em que preciso fazer compras, eu vou até o site ver se tem algo que me interessa”, conta a funcionária pública Paola Ricci, que tem dois filhos, de 5 e 3 anos, e que não se importa em comprar fruta ou legumes que já não estão dentro dos padrões europeus para a venda no supermercado. “Posso fazer deliciosos sucos ou sopas para as crianças, cortando as partes que podem estar já um pouco passadas”.
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Veja o que já enviamosPara Jacopo Visani, do mercado virtual Senza Spreco de Borgo San Lorenzo, ”o maior desafio é envolver os vendedores nesse sistema, percebemos que entre os consumidores existe um forte interesse em fazer parte dessa mudança de comportamento”, explica.
[g1_quote author_name=”Andrea Segrè” author_description=”ONG Last Minute Market” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Na Itália, o desperdício de alimentos da dispensa de casa até o frigorífero, dos fogões até a lata de lixo, custa 8,4 bilhões de euros ao ano e representa 50% do desperdício gerado na inteira cadeia do agronegócio
[/g1_quote]E falamos de um planeta em que 1/3 da produção alimentícia se perde ou se deteriora ao longo do processo de distribuição. “Na Itália, o desperdício de alimentos da dispensa de casa até o frigorífero, dos fogões até a lata de lixo, custa 8,4 bilhões de euros ao ano e representa 50% do desperdício gerado em toda cadeia do agronegócio”, explica Andrea Segrè, fundador de Last Minute Market, uma iniciativa social ligada à Universidade de Bolonha inspirada na ONG americana Food not Bombs (Comida, não bombas). Ainda segundo Segrè, 95% dos produtos alimentares que saem das prateleiras dos comerciantes para a lata do lixo seriam ainda consumíveis. “Queremos transformar o desperdício em recurso”, ele diz.
Esse mercado paralelo last minute agrega 40 cidades italianas promovendo o desenvolvimento do consumo sustentável através da organização da coleta e distribuição de produtos próximos do vencimento ou sem condições adequadas de comercialização, com a realização também de campanhas de educação alimentar nas escolas e associações civis. Um pacote de biscoitos com a embalagem um pouco danificada, uma lata que amassou ao cair da mão de alguém, produtos que podem ainda ser usados mas que afastam o interesse do consumidor. “Nós aderimos ao projeto Desperdício Zero e seguimos e vamos seguir o maior número possível de boas práticas com a finalidade de combate ao desperdício além do reaproveitamento e reciclagem”, garante Ilaria Bonanni, a assessora de Políticas Sociais de Borgo San Lorenzo.
Nas escolas públicas de Florença e também da cidade da famosa Torre Pendente, Pisa, diante da preocupação de pais e professores com as volumosas sobras de comida da merenda escolar, aos poucos estão sendo encontradas soluções criativas. Mesmo se os principais movimentos começam no centro do país, em toda a Itália o assunto começar a ganhar destaque.
[g1_quote author_name=”Marco De Ponte” author_description=” ActionAid” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]É a partir das crianças que frequentam o refeitório escolar que pode acontecer a verdadeira mudança
[/g1_quote]A ONG ActionAid “Io mangio giusto” (“Eu como bem”) pretende que, até o fim de 2015, 15 mil crianças matriculadas nas escolas italianas possam ter acesso a uma merenda “mais correta” e que pelo menos 40 mil alunos e suas famílias tenham acesso às informações sobre uma dieta mais sustentável. “É a partir das crianças que frequentam o refeitório escolar que pode acontecer a verdadeira mudança”, acredita Marco De Ponte, representante de ActionAid. Cerca de 10 milhões de pessoas, entre funcionários, professores, estudantes e auxiliares, usufruem do serviço de merenda escolar no território italiano.
Mas, apesar da educação por uma alimentação mais sustentável, o fato é que a comida sobra no prato. Por isso, algumas escolas estão desenvolvendo várias frentes de ação. Antes de tudo, é preciso distinguir a comida que foi tocada, e sobrou, daquela que sobrou, mas não foi tocada. E, por outro lado, adequar o cardápio às necessidades nutricionais, mas também ao gosto dos estudantes. Se as crianças apreciam o que é servido no refeitório, a sobra diminui.
Sobra do lanche vai para casas dos alunos
Em Milão, como mostra a associação Ecco della Città, a novidade nas escolas é as próprias crianças levarem as sobras para casa. Nessa metrópole italiana, são servidas 80 mil refeições ao dia distribuídas em 450 escolas, o equivalente a 32 toneladas de comida das quais 8 vão parar no lixo, ou seja, 25% da produção. E a decisão não é apenas por conta do desperdício. Com a crise batendo à porta, a cada dia aumenta o número de famílias com problemas financeiros e, para algumas crianças, o almoço na escola é a única refeição do dia. “Inicialmente sugerimos aos diretores das escolas para pedir que as crianças recolham o que sobra diariamente na sua mesa, como pão, fruta, iogurte ou doces que podem ser colocados em um saquinho para levar para casa ou doar às famílias mais pobres do bairro”, explica o assessor de Educação da prefeitura de Milão, Francesco Cappelli, se referindo principalmente aos idosos e os sem-teto que são atendidos nos centros de serviço social espalhados pela cidade.
[g1_quote author_name=”Francesco Cappelli” author_description=”Assessor de Educação da prefeitura de Milão” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Sugerimos aos diretores das escolas para pedir que as crianças recolham o que sobra diariamente na sua mesa, como pão, fruta, iogurte ou doces que podem ser colocadas em um saquinho para levar para casa ou doar às famílias mais pobres do bairro
[/g1_quote]Segundo a diretora da educação fundamental do Instituto Comprensivo Galvani, Giuliana Romano, a iniciativa funcionou bem para as crianças que ficam no horário integral e que, à tarde, lancham o iogurte ou a fruta que sobrou do almoço. “Mas pedir para levar para casa o que sobrou de comida é difícil, porque na maioria das vezes sobra o que eles não gostaram”, argumenta. Na escola de educação primária G. Cipolli, na cidade de Cascina, as crianças que ficam no serviço extraclasse à tarde também se beneficiam do iogurte ou da fruta que sobrou do almoço. Já a diretora do Istituto Comprensivo Ciresola, Chiara Domioni, considera a ideia de levar sobras para casa inviável. “Se a professora tiver que organizar as sobras do lanche da turma toda, pode acontecer de acabar derramando na mochila e sujando cadernos e livros”, reclama. Já nas escolas de Educação Infantil da região de Pisa foi criado o Café da manhã saudável em que as crianças comem a fruta que seria a sobremesa e que muitas vezes era deixada de lado na hora do almoço.
Iniciativas por todo o mundo
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), com sede em Roma, lançou um alerta mundial sobre os danos que o desperdício de comida podem causar ao ambiente, com consequências ao clima, uso da água e do solo e para a biodiversidade. De acordo com o relatório da FAO, 54% do desperdício ocorrem na fase inicial da produção, no manuseio das hortaliças ou no transporte de grãos em sacos furados, por exemplo. E são os países mais pobres que mais sofrem perdas na produção agrícola. Em todo o mundo, cerca de um terço de todos os alimentos produzidos é perdido ou desperdiçado. Quase a metade deste desperdício acontece em regiões industrializadas, que descartam comida que está própria para consumo. Isso equivale a mais de 1,3 bilhão de toneladas de comida – e a cerca de US$ 1 trilhão, o suficiente para alimentar 870 milhões de pessoas.
Diante desse quadro, a FAO lançou a campanha “Pensar.Comer.Conservar” em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Uma plataforma digital em inglês, chinês, francês, espanhol e português organiza e divulga as iniciativas em todo o mundo contra a prática nem um pouco sustentável de jogar comida no lixo. Lá você fica sabendo que em São Vicente e São Paulo estudantes se reuniram para criar um aplicativo nos moldes do “Senza spreco”, entre outras inciativas brasileiras.
Se em cada canto do mundo cada um se preocupar em não jogar comida fora, em ser mais responsável na hora de comprar e menos exigente na hora de consumir, dividir o que sobrar com quem precisa, é possível reduzir o desperdício. E quem sabe seguir a tradição italiana de aproveitar tudo para criar uma nova receita. Como a ribollita, sobra de sopa de feijão misturada com pão no dia seguinte. Ou almôndegas feitas com o resto da carne que sobrou ou o suplì di riso, bolinho frito feito com a sobra do risoto. A cultura gastronômica da sobra. E, no fim de cada refeição, ainda ter o prazer de ter um pedaço de pão para esfregar no restinho de molho de tomate suculento, de creme de queijo, de sopa de legumes. Transformar o resto em um prazer a mais, uma scarpetta de gourmet, e não fazer do resto de comida mais um elemento de poluição e desigualdade entre as pessoas.