Austrália e Nova Zelândia: o estranho normal de quem está livre da pandemia

Bem-sucedidos no combate à covid-19, os dois países da Oceania retomam a vida, criam a primeira bolha de viagem, atraem artistas e esportistas e, também, críticas de expatriados

Por Carla Lencastre | ODS 3 • Publicada em 19 de abril de 2021 - 14:12 • Atualizada em 28 de abril de 2021 - 09:08

Viva as bolhas: abraço apertado no Aeroporto Internacional de Sydney no dia em que Austrália e Nova Zelândia abriram suas fronteiras para viagens sem quarentena | Foto de Saeed Khan/AFP/19-4-2021

Mês de março. A Nova Zelândia ganha em Auckland a 36ª America’s Cup, o mais tradicional campeonato de vela do mundo. Na cidade mais populosa do país, as pessoas vão para a rua festejar a regata. Também março: a banda australiana Midnight Oil, em turnê por seu país natal, reúne 13 mil pessoas em show nos arredores de Melbourne. O ano dos dois eventos: 2021. Moradores de Austrália e Nova Zelândia vivem a estranha vida normal de quem está livre da pandemia.

Os dois países da Oceania conseguiram conter o vírus e a população retomou a rotina. Nas últimas semanas praticamente não há registro de novos casos nem de mortes por covid-19 na Austrália, com 25,3 milhões de habitantes, e na Nova Zelândia, com cinco milhões. A situação é tão estável que, no momento, não há também pressa pela vacina. Os dois países planejam acelerar os respectivos programas nacionais de imunização somente no segundo semestre. À meia-noite do dia 19 de abril deram mais um passo significativo na condução da pandemia: abriram um corredor de viagens livre de exigências de quarentena.

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Boa condução da pandemia permite volta à vida normal na Austrália e na Nova Zelândia

Aos números. Dados do site Our World in Data, da Universidade de Oxford, consultados em 18 de abril de 2021, mostram que a Nova Zelândia registrou ao longo da pandemia 2.596 mil casos de covid-19. Na Austrália, foram 29.533. No Brasil, já são mais de 13,5 milhões. Na comparação por milhão de habitantes, o Brasil tem mais de 65 mil casos. A Austrália, 1.157. A Nova Zelândia, apenas 538 casos de covid-19, com 26 mortes no total. Na Austrália, foram 910 mortes. O Brasil já passou de 371 mil.

“Acompanhamos com admiração, para não dizer inveja, a gestão da pandemia, principalmente da Nova Zelândia. Fica evidente que autorizações para eventos e viagens são as últimas antes do retorno ao comportamento pré-pandemia. Mesmo sem o avanço da vacinação, as medidas de contenção foram eficientes. As bolhas de viagens estão entre elas, sendo que gradualmente os vacinados serão encampados”, analisa a professora e pesquisadora Mariana Aldrigui, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP).

Austrália e Nova Zelândia: o estranho normal na pandemia
Vida normal em Auckland: espectadores assistem à vitória da Nova Zelândia na regata de vela America’s Cup | Foto de Gilles Martin-Raget/APF/17-3-2021

Expatriados enfrentam dificuldades para voltar

Austrália e Nova Zelândia são dois países-ilhas, o que colaborou para o sucesso do trabalho de contenção. Afinal, estão isolados do mundo em vários sentidos. Fronteiras seguem fechadas para o restante do planeta e há exigência de quarentena para os cidadãos que chegam do exterior. Visitantes não são admitidos ou necessitam de permissões especiais para entrar nos países.

Mas as permissões governamentais têm causado polêmica. Expatriados que querem voltar pagam caro pela passagem, porque há poucos voos, sempre sujeitos a cancelamento. Como o número de chegadas, e de vagas nos hotéis designados para quarentena, é limitado para reduzir as possibilidades de contágio, é preciso esperar por uma oportunidade para entrar tanto na Austrália quanto na Nova Zelândia. Porém, todas essas restrições do governo afetam menos artistas ou esportistas, que chegam para trabalhar em voos fretados e podem escolher onde se isolar.

Artistas e esportistas têm permissão especial de entrada

Na Nova Zelândia as críticas vieram ainda nos primeiros meses da pandemia, em meados de 2020, quando as fronteiras foram abertas para equipes internacionais de filmagens. Aqui vale lembrar que o cinema colaborou para a relevância do país no mapa turístico nos últimos anos e, consequentemente, com a economia local. A Nova Zelândia concedeu autorização de entrada, por exemplo, para o cineasta canadense James Cameron e uma equipe de mais de 50 pessoas que foram filmar Avatar 2 em Wellington, a Hollywood do país. Todos ficaram em quarentena no ótimo QT Museum Hotel, na área mais turística da cidade.

Na vizinha Austrália acontece algo parecido. Tenistas e equipe de produção do Aberto da Austrália, realizado em fevereiro, tiveram permissão especial para entrar no país. Celebridades vivem como se a pandemia não existisse onde não existe mesmo. A lista vai do casal Nicole Kidman e Keith Urban, ambos com cidadania australiana, a artistas que estabeleceram residência temporária. Reportagem da BBC Brasil cita nomes como Julia Roberts e Matt Damon, que receberam permissão especial do governo, puderam fazer a quarentena em locais de sua escolha e irritaram expatriados mundo afora.

Para esses expatriados, resta esperar por uma vaga em um dos hotéis designados para quarentena. É o caso do neozelandês Kelvin Ussher, empresário do ramo de inovação tecnológica há 20 anos no Rio de Janeiro. Ele tinha uma viagem marcada para o país em julho de 2020, que foi sendo adiada. Agora, decidido a ir visitar o pai de 93, anos, só conseguiu lugar em um hotel de quarentena para julho de 2021. Mas a nostalgia bateu mesmo mês passado, quando Kelvin viu o povo nas ruas na final da America’s Cup.

Austrália e Nova Zelândia: o estranho normal na pandemia
Aeroporto Internacional de Sydney: reencontros no primeiro dia da bolha de viagens Trans-Tasmânia | Foto de Saeed Khan/AFP/19-4-2021

Do lockdown com apoio financeiro do governo às festas sem máscaras

As medidas de restrição na Austrália e na Nova Zelândia foram fundamentais para a contenção do vírus e para o retorno à rotina pré-covid-19. Nos dois países houve apoio financeiro do governo tanto para quem ficou sem trabalho quanto para as empresas, o que ajudou a manter as pessoas em casa. Mesmo em lugares onde o lockdown durou meses e o impacto econômico foi grande, como em Melbourne. Hoje a vida na capital do estado australiano de Victoria é “completamente normal”, conta a brasileira Julia Noronha:

“A segunda onda estourou em Melbourne no início de agosto, com uma média diária de cerca de 500 casos. Houve um lockdown muito pesado por cerca de três meses. Só era permitido sair em um raio de 5km de casa, por uma hora ao dia. As restrições só começaram a ser relaxadas quando o número de casos chegou perto de zero. Agora a vida está completamente normal. Até meados de março alguns lugares ainda exigiam uso de máscara, como mercados, mas não é mais obrigatório. Está tudo aberto e as pessoas fazem festa, vão à praia, frequentam bares. Não há nenhuma restrição e até agora não surgiram novos casos”, conta Julia, que trabalha na área de desenvolvimento sustentável, morou quatro anos em Melbourne e voltou ao Brasil no início de abril.

“O lockdown não foi uma medida popular. Mas o governo deu um apoio financeiro muito grande e isso fez toda a diferença. Outra medida importante foi isolar os estados. Não era permitir voar de um estado para o outro”, acrescenta.

Austrália e Nova Zelândia: o estranho normal na pandemia
Aeroporto Internacional de Wellington: chegada de passageiros do primeiro voo de Sydney | Foto de Marty Melville/AFP/19-4-2021

Outros corredores de viagem devem ser criados em breve

O início das viagens sem quarentena entre Austrália e Nova Zelândia, depois de mais de um ano de fronteiras fechadas, é um marco na pandemia. Porém, no primeiro momento, o impacto da chamada bolha Trans-Tasmânia no devastado setor de turismo será pequeno. As viagens iniciais devem marcar reencontros familiares de neozelandeses que moram na Austrália (segundo o jornal britânico The Guardian são 60 mil) ou vice-versa. Mas o Turismo da Austrália já anunciou que está preparando a primeira campanha internacional de marketing da nova fase para atrair visitantes do país na outra costa do Mar da Tasmânia. Vale ressaltar que qualquer um dos dois governos pode fechar o corredor caso surja algum novo caso de contaminação diretamente relacionado à bolha.

Muito comentada no início da pandemia, a ideia de corredores de viagens foi deixada de lado por causa da dificuldade de contenção do vírus e das sucessivas ondas de contaminação em todo o mundo. Mas há novamente uma expectativa de que outras bolhas possam surgir, principalmente na Europa, mas também no Sudeste Asiático, como entre Tailândia e Vietnã, dois países com bom histórico de combate ao vírus. A maioria dos corredores será voltado para pessoas vacinadas, como alguns destinos já anunciaram que pretende fazer, ressalta a pesquisadora da USP Mariana Aldrigui:

“As bolhas e os corredores de viagens são soluções propostas a partir do setor de viagem, com algum apoio de autoridades, e consideradas junto a outra medidas. No Brasil temos o hábito estranho de não alinhar as análises de turismo às de outros setores. Certamente este não é o caso de Austrália e Nova Zelândia, que se destacam em gestão de turismo internacional. O modelo da Trans-Tasmânia será analisado por vários países, especialmente por aqueles que têm grande interesse da retomada do turismo, como Grécia ou Tailândia, por exemplo, e certamente será replicado mediante ajustes às realidades locais. Veremos muitos testes, alguns falhando e novos modelos surgindo, especialmente para o verão europeu.”

No momento, Brasil não tem chance de participar de nenhuma bolha de viagem

Mariana destaca que as bolhas permitem a entrada de moeda estrangeira, colaboram para a preservação de empregos e empresas, e desoneram o poder público. Mas ressalta que esta é uma conversa da qual o Brasil não pode participar no momento:

“Nem cabe a discussão, pelo menos não até setembro de 2021. Além da péssima gestão da pandemia, temos agora o risco de nos tornarmos um celeiro de variantes. O brasileiro estará confinado ao Brasil até que haja mais conhecimento científico internacional sobre o que se dá em nossas terras. Do ponto de vista dos destinos internacionais, faremos falta. Mas haverá muito demanda e isso, de alguma forma, compensará nossa ausência. Não vejo nenhum país disposto a receber brasileiros em 2021. Não sem que haja uma mudança radical na maneira como o país lida com a pandemia. Seremos espectadores de mudanças positivas acontecendo em outros lugares, com alguns de nós torcendo para que as coisas melhorem por aqui.”

Carla Lencastre

Jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou por mais de 25 anos na redação do jornal O Globo nas áreas de Comportamento, Cultura, Educação e Turismo. Editou a revista e o site Boa Viagem O Globo por mais de uma década. Anda pelo Brasil e pelo mundo em busca de boas histórias desde sempre. Especializada em Turismo, tem vários prêmios no setor e é colunista do portal Panrotas. Desde 2015 escreve como freelance para diversas publicações, entre elas o #Colabora e O Globo. É carioca e gosta de dias nublados. Ama viajar. Está no Instagram em @CarlaLencastre 

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