ODS 1
Aproveitar a cidade existente para criar uma cidade justa
Política habitacional brasileira repete erros do passado e reforça o apartheid social
Soa bastante óbvio dizer que urbanistas e planejadores urbanos devem abordar temas como transporte, habitação e emprego de maneira conjunta. No entanto, durante grande parte do século 20 não foi isso que aconteceu. O que predominou foi a separação entre usos e circulação, resultando na triste realidade que vemos hoje no Brasil: cidades com mobilidade limitada e territórios socialmente desiguais.
A política de habitação de interesse social foi e continua sendo um dos principais motores do desenvolvimento urbano. No entanto, ela segue enfatizando o apartheid na nossa sociedade, com a localização dos conjuntos desconectada do restante da cidade e apenas marginalmente conectada à malha de transporte. O que acaba sendo, não apenas um desastre, mas uma idiossincrasia, pois no cerne destas políticas deveria estar a redução do descompasso espacial e social nas cidades.
Investimentos sem precedentes têm marcado o Brasil desde 2009, tanto para a expansão da infraestrutura de transportes públicos, quanto para a habitação de interesse social. Só o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) destinou R$ 153,7 bilhões para 413 projetos de infraestrutura de mobilidade urbana em todo o país. Simultaneamente, o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) já entregou mais de 2 milhões de moradias, e há mais de 1.6 milhões em construção.
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Uma cidade é sempre uma concentração de oportunidades, não uma aglomeração de casas
[/g1_quote]O governo federal espera que até o final de 2018 mais de 25 milhões de pessoas tenham sido atendidas. Um montante de investimentos em habitação social incomparável no Brasil e no mundo. O que está claro, no entanto, é que embora o programa se justifique frente ao déficit habitacional estimado em 5.5 milhões de unidades em 2009, seu ímpeto inicial focou na necessidade de manter a economia aquecida durante a crise financeira mundial de 2008. Enquanto o MCMV atende às metas quantitativas, a qualidade é alvo de questionamentos, principalmente no que diz respeito ao planejamento, ao desenho e à qualidade dos projetos finais.
Um elo crítico, em particular, está ausente no investimento que vem sendo feito em mobilidade urbana e habitação de interesse social: ambos são tocados forma isolada. O padrão na seleção de terrenos pelas construtoras, aprovada pelos entes municipais e financiada pela CAIXA, é obviamente norteada pela lógica de mercado, resultando em projetos isolados em periferias urbanas remotas.
No Rio de Janeiro, por exemplo, 53% das unidades do MCMV entregues até 2013 para beneficiários da faixa 1 (entre 0 e 3 salários mínimos) estavam no extremo da Zona Oeste, a área da cidade mais limitada quanto à infraestrutura e oportunidades de emprego. Moradores desta área precisam cobrir 50 km em cada sentido para chegar diariamente ao Centro do Rio, onde está concentrada a maior parte dos empregos.
Infelizmente, não é a primeira vez que a habitação de interesse social é planejada desta forma no Brasil. Na prática, este padrão foi exatamente o que norteou o planejamento da política habitacional durante os anos 60. Perdemos uma grande oportunidade de aprender com os erros do passado.
A criação do Banco Nacional da Habitação (BNH), em 1964, garantiu uma fonte permanente de recursos para a produção em massa de habitação de interesse social. No entanto, as preocupações com os custos resultaram em projetos homogeneizados de baixa qualidade, localizados na periferia. Três exemplos famosos são a Cidade de Deus, a Vila Aliança e a Vila Kennedy, complexos habitacionais financiados com recursos dos Estados Unidos. O “Aliança Kennedy para o Programa Progresso”, de erradicação de favelas, na verdade, tinha como objetivo evitar que a Revolução Cubana se espalhasse pela América Latina.
Neste período, 40 mil casas foram construídas na periferia para receber cerca de 30% dos moradores desapropriados de suas residências nas favelas. O resultado foi um esforço inútil. Entre 1970-1974 o número de favelas nas cidades quase duplicou, pois a lógica de ocupação dessas comunidades está ligada à necessidade óbvia de manter as pessoas próximas dos seus locais de trabalho.
Quando se planeja moradia de forma isolada, ignora-se uma das principais estratégias de subsistência dos grupos baixa renda para estabilidade econômica e realização social. Produzimos pedaços de cidade monofuncionais. Perdemos todas as possibilidades que o uso misto oferece: ocupação, utilização e fluxos que se complementam de forma mútua e constante, tanto econômica quanto social e culturalmente.
É urgente que um programa com a escala do MCMV, que agora se prepara para entrar em sua terceira fase, traga novos padrões de planejamento que efetivamente transformem as dinâmicas sociais e espaciais das cidades. Uma boa localização e o acesso aos sistemas de mobilidade são tão importantes para a sustentabilidade desses programas quanto o fornecimento de água, a eletricidade e o saneamento.
Isso quer dizer aplicar nos processos de planejamento, aprovação e desenho condicionantes que induzam à inserção dos empreendimentos em área urbana consolidada; com oferta adequada de equipamentos de educação e saúde; com oferta adequada de serviços e comércio de uso diário; e bem servido por transporte público de média e alta capacidade. O desenho do projeto e da área do seu entorno também é crucial, com rede de ruas seguras e acolhedoras, que induzam as pessoas a caminharem a pé, a pedalarem e a socializarem no espaço público. Nas palavras de Alejandro Aravena, “uma cidade é sempre uma concentração de oportunidades, não uma aglomeração de casas”. Aproveitemos, portanto, a cidade existente para produzir cidades justas.
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É Diretora do ITDP no Brasil e atua com políticas públicas desde 2001, com experiência no Brasil, Moçambique e Namíbia. É Mestre em Políticas Sociais pela London School of Economics. Entre 2006-2011, foi responsável pela expansão da BEN Namibia, se tornando a maior rede de bicicletas integrada a empreendimentos sociais na África sub-Saariana. Em 2010, foi premiada pela Ashoka no Desafio “Mulheres, Ferramentas e Tecnologia”. Clarisse é uma pessoa que só pensa em como transformar as cidades em lugares de felicidade.