ODS 1
Maradona, um deus do futebol demasiadamente humano
Memórias privilegiadas da inteligência, da sagacidade e da língua ferina do craque argentino que tem até uma igreja para sua adoração
Era uma terça-feira, 26 de junho de 1990, e Diego Armando Maradona subiu numa cerca que havia no centro de treinamento da Roma, em Trigoria, ao sul da capital italiana, para dar entrevista a três dezenas de jornalistas que o cercavam. Dois dias antes, Diego e Argentina, que agonizavam na Copa do Mundo, haviam eliminado o até então invicto e 100% Brasil. “Na semana passada, ninguém queria saber de nós. Achavam que a Argentina estava morta; aqui estava vazio. Podem perguntar ao brasileiro”, disse Diego. O brasileiro era eu: na cobertura do Jornal do Brasil na Copa tinha acompanhado o drama dos campeões do mundo de 1986 na primeira fase do Mundial da Itália. A Argentina perdeu para Camarões na estreia; ganhou da União Soviética – partida em que perdeu seu goleiro titular, Nery Pumpido, com fratura na perna – e empatou com a Romênia: ficou em terceiro lugar, ganhou a vaga no desempate, e foi enfrentar o Brasil nas oitavas-de-final.
Maradona dava entrevista de cima da cerca para evitar que os jornalistas pisassem seu pé: o tornozelo era uma bola colorida de hematomas. Mesmo assim, antes do jogo com os romenos, ele fizera mais de 50 embaixadas de calcanhar – na época, contei mas já não me lembro o número certo. Do seu posto, respondia em italiano e espanhol. Espanava o ceticismo dos jornalistas argentinos, provocava os italianos: reconhecia até o brasileiro que usava um italiano capenga para fazer perguntas ao maior jogador do mundo. Com a língua mais afiada do que o corpo, Maradona liderava seu time além do campo; depois da derrota na estreia, havia sido mentor de um pacto entre os argentinos: os campeões de 1990 – o próprio Maradona e mais Burruchaga, Ruggeri, Batista, Olarticoechea, Giusti e Pumpido – pararam de fazer a barba, com a promessa que só cortariam após levar a Argentina à final.
Em 1990, Maradona jogava no Napoli, clube italiano que levara a seus dois primeiros scudettos de campeão italiano e ao título da Copa da Uefa. Era idolatrado na cidade onde o destino determinou que os argentinos enfrentassem a Itália na semifinal do Mundial, O presidente da federação italiana chegou a ir a público pedir que os cidadãos napolitanos torcessem pela Azurra. A resposta de Maradona, sempre do alto de sua cerca de coletiva, botou fogo na semifinal. “Claro que Nápoles vai torcer para Itália; mas é pena que eles só lembrem que, nós, meridionais, somos italianos em ocasiões como esta”. Ao mesmo tempo, Diego se colocou como meridional – termo usado muitos vezes pejorativamente pelos italianos do rico norte, onde estão Milão, Turim e Roma, aos cidadãos do Sul, onde fica Nápoles – e botou o dedo na ferida do preconceito.
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Veja o que já enviamosFoi o assunto principal do país, transbordando das páginas esportivos, até a hora do jogo. Em Nápoles, a torcida italiana, sempre barulhenta, passou quase o tempo todo calada, como numa reverência ao maior ídolo da cidade. Maradona foi tão aplaudido ao entrar em campo quanto a Azurra. Os argentinos ganharam, nos pênaltis, a vaga para a final. Após o jogo, Diego disse esperar que os italianos, agora, torcessem por ele na final – o que não aconteceu. No Estádio Olímpico de Roma, parte do estádio, onde estavam concentrados torcedores de organizadas milanesas e romanas, vaiavam Maradona quando ele pegava na bola. Os alemães deixaram a Itália com seu terceiro título mundial; eu fui embora com uma admiração mais do que futebolística pelo maior craque da minha geração.
Minha admiração só fez crescer: na Copa do Mundo de 1994, acredito que a Argentina – guiada por Maradona, e com Simeone, Redondo, Balbo, Zanetti, Batistuta e Canniggia – seria novamente campeã se não fosse o flagrante de doping do craque. Acompanhei Maradona comprando brigas com a AFA, com Havelange, com a Fifa, com todos os poderosos do futebol. Era um craque sem medo de ter opinião, de defender o lado dos mais fracos, de apontar as desigualdades, de criticar a pobreza. Vi Diego ao lado de Fidel, de Chaves, de Lula. “Posso ser preto ou branco, nunca cinza”, afirmou após bater bocas com jornalistas na sua fase técnico.
Recomendo muito – para entender o gênio argentino – ver o filme Maradona por Kusturica, documentário biográfico dirigido pelo cineasta sérvio Emir Kusturica, premiado nos festivais de Cannes e Berlim e indicado ao Oscar. De futebol, Maradona sabia tudo – mesmo sem ter tido sucesso como treinador. Em 2010, na África do Sul, pude reencontrar o argentino, agora técnico de sua seleção na Copa do Mundo. (Não, ele não se lembrou de mim 20 anos depois nem mandou colegas confirmarem qualquer coisa com o brasileiro). Mas a língua continuava afiada ao responder as perguntas sobre as orientações que dava a Lionel Messi, seu sucessor com a camisa 10. “Orientações, eu dou aos outros. A Lio, só peço que jogue”.
Os moralistas podem criticar Diego Maradona por seu vício em drogas e sua vida pessoal e familiar atribulada. Mas os argentinos veneram seu craque pelas suas qualidades – não apenas esportivas – e também por seus defeitos. Estava em Buenos Aires anos atrás quando vi a comoção nacional em uma das internações. Posso imaginar como está hoje a capital argentina. Diego nasceu ali, em bairro pobre, e nunca escondeu suas origens e as dificuldades da infância. “Eu cresci em um bairro privado. Privado de água, de luz e de telefone” – disse o argentino certa vez. Era visto torcendo loucamente, como qualquer apaixonado, pelo Boca Juniors e pela seleção argentina. Era um Deus do futebol, mas não é por isso que há, na Argentina, uma Igreja Maradoniana – uma devoção que nenhum outro astro, nem mesmo Pelé, tiveram direito. Os argentinos amam Diego Maradona por ele ser demasiadamente humano. Foi assim em vida e assim será após sua morte.
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Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade