Maradona, um deus do futebol demasiadamente humano

Memórias privilegiadas da inteligência, da sagacidade e da língua ferina do craque argentino que tem até uma igreja para sua adoração

Por Oscar Valporto | ODS 10 • Publicada em 25 de novembro de 2020 - 20:56 • Atualizada em 27 de novembro de 2020 - 19:34

Maradona deixa ingleses para trás para fazer seu segundo gol (o primeiro foi com a mão) contra a Inglaterra na Copa de 1986: craque idolatrado pelos argentino (Foto/AFP)

Era uma terça-feira, 26 de junho de 1990, e Diego Armando Maradona subiu numa cerca que havia no centro de treinamento da Roma, em Trigoria, ao sul da capital italiana, para dar entrevista a três dezenas de jornalistas que o cercavam. Dois dias antes, Diego e Argentina, que agonizavam na Copa do Mundo, haviam eliminado o até então invicto e 100% Brasil. “Na semana passada, ninguém queria saber de nós. Achavam que a Argentina estava morta; aqui estava vazio. Podem perguntar ao brasileiro”, disse Diego. O brasileiro era eu: na cobertura do Jornal do Brasil na Copa tinha acompanhado o drama dos campeões do mundo de 1986 na primeira fase do Mundial da Itália. A Argentina perdeu para Camarões na estreia; ganhou da União Soviética – partida em que perdeu seu goleiro titular, Nery Pumpido, com fratura na perna – e empatou com a Romênia: ficou em terceiro lugar, ganhou a vaga no desempate, e foi enfrentar o Brasil nas oitavas-de-final.

Maradona dava entrevista de cima da cerca para evitar que os jornalistas pisassem seu pé: o tornozelo era uma bola colorida de hematomas. Mesmo assim, antes do jogo com os romenos, ele fizera mais de 50 embaixadas de calcanhar – na época, contei mas já não me lembro o número certo. Do seu posto, respondia em italiano e espanhol. Espanava o ceticismo dos jornalistas argentinos, provocava os italianos: reconhecia até o brasileiro que usava um italiano capenga para fazer perguntas ao maior jogador do mundo. Com a língua mais afiada do que o corpo, Maradona liderava seu time além do campo; depois da derrota na estreia, havia sido mentor de um pacto entre os argentinos: os campeões de 1990 – o próprio Maradona e mais Burruchaga, Ruggeri, Batista, Olarticoechea, Giusti e Pumpido – pararam de fazer a barba, com a promessa que só cortariam após levar a Argentina à final.

Argentinos em vigília em frente ao necrotério de Buenos Aires após o anúncio da morte de Diego Maradona: comoção nacional (Foto: Roberto Schmidt/AFP)
Argentinos em vigília em frente ao necrotério de Buenos Aires após o anúncio da morte de Diego Maradona: comoção nacional (Foto: Roberto Schmidt/AFP)

Em 1990, Maradona jogava no Napoli, clube italiano que levara a seus dois primeiros scudettos de campeão italiano e ao título da Copa da Uefa. Era idolatrado na cidade onde o destino determinou que os argentinos enfrentassem a Itália na semifinal do Mundial, O presidente da federação italiana chegou a ir a público pedir que os cidadãos napolitanos torcessem pela Azurra. A resposta de Maradona, sempre do alto de sua cerca de coletiva, botou fogo na semifinal. “Claro que Nápoles vai torcer para Itália; mas é pena que eles só lembrem que, nós, meridionais, somos italianos em ocasiões como esta”. Ao mesmo tempo, Diego se colocou como meridional – termo usado muitos vezes pejorativamente pelos italianos do rico norte, onde estão Milão, Turim e Roma, aos cidadãos do Sul, onde fica Nápoles – e botou o dedo na ferida do preconceito.

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Multidão de torcedores em frente ao estádio do Napoli para reverenciar Maradona: ídolo na Argentina e na Itália (Foto: Carlos Hermann/AFP)
Multidão de torcedores em frente ao estádio do Napoli para reverenciar Maradona: ídolo na Argentina e na Itália (Foto: Carlos Hermann/AFP)

Foi o assunto principal do país, transbordando das páginas esportivos, até a hora do jogo.  Em Nápoles, a torcida italiana, sempre barulhenta, passou quase o tempo todo calada, como numa reverência ao maior ídolo da cidade. Maradona foi tão aplaudido ao entrar em campo quanto a Azurra. Os argentinos ganharam, nos pênaltis, a vaga para a final.  Após o jogo, Diego disse esperar que os italianos, agora, torcessem por ele na final – o que não aconteceu. No Estádio Olímpico de Roma, parte do estádio, onde estavam concentrados torcedores de organizadas milanesas e romanas, vaiavam Maradona quando ele pegava na bola.  Os alemães deixaram a Itália com seu terceiro título mundial; eu fui embora com uma admiração mais do que futebolística pelo maior craque da minha geração.

Minha admiração só fez crescer: na Copa do Mundo de 1994, acredito que a Argentina – guiada por Maradona, e com Simeone, Redondo, Balbo, Zanetti, Batistuta e Canniggia – seria novamente campeã se não fosse o flagrante de doping do craque. Acompanhei Maradona comprando brigas com a AFA, com Havelange, com a Fifa, com todos os poderosos do futebol. Era um craque sem medo de ter opinião, de defender o lado dos mais fracos, de apontar as desigualdades, de criticar a pobreza. Vi Diego ao lado de Fidel, de Chaves, de Lula. “Posso ser preto ou branco, nunca cinza”, afirmou após bater bocas com jornalistas na sua fase técnico.

Maradona como técnico da seleção na Copa de 2010 lembrando a conquista de 1986: craque com a bola e com as palavras (Foto: AFP)
Maradona como técnico da seleção na Copa de 2010 lembrando a conquista de 1986: craque com a bola e com as palavras (Foto: AFP)

Recomendo muito – para entender o gênio argentino – ver o filme Maradona por Kusturica, documentário biográfico dirigido pelo cineasta sérvio Emir Kusturica, premiado nos festivais de Cannes e Berlim e indicado ao Oscar. De futebol, Maradona sabia tudo – mesmo sem ter tido sucesso como treinador. Em 2010, na África do Sul, pude reencontrar o argentino, agora técnico de sua seleção na Copa do Mundo. (Não, ele não se lembrou de mim 20 anos depois nem mandou colegas confirmarem qualquer coisa com o brasileiro). Mas a língua continuava afiada ao responder as perguntas sobre as orientações que dava a Lionel Messi, seu sucessor com a camisa 10. “Orientações, eu dou aos outros. A Lio, só peço que jogue”.

Maradona festejando gol da Argentina durante Copa da Alemanha, em 2006: identifficação com os torcedores apaixonados (Foto: Achim Schdeimann/DPA/AFP)
Maradona festejando gol da Argentina durante Copa da Alemanha, em 2006: identifficação com os torcedores apaixonados (Foto: Achim Schdeimann/DPA/AFP)

Os moralistas podem criticar Diego Maradona por seu vício em drogas e sua vida pessoal e familiar atribulada.  Mas os argentinos veneram seu craque pelas suas qualidades – não apenas esportivas – e também por seus defeitos. Estava em Buenos Aires anos atrás quando vi a comoção nacional em uma das internações. Posso imaginar como está hoje a capital argentina. Diego nasceu ali, em bairro pobre, e nunca escondeu suas origens e as dificuldades da infância. “Eu cresci em um bairro privado. Privado de água, de luz e de telefone” – disse o argentino certa vez. Era visto torcendo loucamente, como qualquer apaixonado, pelo Boca Juniors e pela seleção argentina. Era um Deus do futebol, mas não é por isso que há, na Argentina, uma Igreja Maradoniana – uma devoção que nenhum outro astro, nem mesmo Pelé, tiveram direito. Os argentinos amam Diego Maradona por ele ser demasiadamente humano. Foi assim em vida e assim será após sua morte.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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