ODS 1
Retrato de um Rio muito desigual onde raça e gênero ampliam disparidades
Mapa da Desigualdade, lançado pela Casa Fluminense, mostra os contrastes - na renda, na saúde, na segurança - da Região Metropolitana do Rio de Janeiro
O salário médio dos empregos formais no município do Rio de Janeiro é o dobro dos vizinhos São João de Meriti, Nilópolis e Belford Roxo. A renda média dos moradores de Niterói é R$ 3.114 – 4,5 vezes maior que os R$ 694 dos moradores de Japeri, na Baixada Fluminense. Na média da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), o salário das mulheres negras equivale à metade do de homens brancos. Os niteroienses vivem, em média, 12 anos a mais que os moradores de Queimados. Na capital, esta disparidade na expectativa de vida entre quem mora em São Conrado, um dos mais valorizados da cidade, e quem mora na vizinha Rocinha é de 23 anos. O município do Rio é o único da região que teve nota acima da média nacional no IDEB (Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico). Na RMRJ, 79% das vítimas de homicídio por intervenção policial eram negras – quase oito pontos percentuais a mais que a média brasileira. Dos 22 municípios da Região Metropolitana do Rio, em nove, a população inteira não tem esgoto tratado.
Esses dados e muitos outros estão reunidos no Mapa da Desigualdade 2020, lançado nesta quarta (15/7), pela Casa Fluminense – associação civil com foco em políticas públicas para a Região Metropolitana do Rio – com a reunião de 40 indicadores que retratam os desafios socioeconômicos da vida urbana. Esta nova edição do Mapa da Desigualdade – as versões anteriores são de 2015 e 2017 – está organizada em 10 eixos temáticos: habitação, emprego, transporte, segurança, saneamento, saúde, educação, cultura, assistência social e gestão pública. “Tivemos a preocupação neste mapa em destacar novos aspectos da desigualdade, como o aspecto racial e de gênero. A Região Metropolitana é imensamente desigual e temos desigualdades dentro das desigualdades”, destacou o economista Vitor Mihessen, coordenador da pesquisa, lançada em encontro virtual pelas redes sociais da Casa Fluminense.
Mihessen explicou que o Mapa da Desigualdade reuniu indicadores dos órgãos públicos e, pela primeira vez, usou também bases de dados produzidos pela sociedade civil. “É sempre um desafio conseguir dados atualizados e as próprias prefeituras, em alguns casos, não fornecem informações básicas sobre os municípios”, acrescentou o coordenador da pesquisa. “Apesar da Lei de Acesso à Informação estar em vigor há nove anos, ainda é difícil utilizar essa ferramenta para obter informação e algumas prefeituras na região metropolitana não disponibilizam o Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC) em seus sites”, apontou o pesquisador Guilherme Braga Alves.
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Veja o que já enviamosOs 40 indicadores do Mapa da Desigualdade 2020 têm os mesmos eixos temáticos da Agenda Rio 2030, conjunto de sugestões de políticas públicas feitas pela Casa Fluminense e sua rede de parceiros – esses projetos, de diagnósticos e propostas, usam como base os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), propostos pelas Nações Unidas. “O nosso objetivo é apresentar as desigualdades para que a gente possa discutir políticas públicas as maneiras de superar essa desigualdade. Nós trouxemos essa questão da desigualdade racial para o mapa porque o racismo estrutural da nossa sociedade tem um impacto tremendo na desigualdade”, explicou o geógrafo Henrique Silveira, coordenador executivo da Casa Fluminense.
Desigualdade racial
Os dados sobre a desigualdade entre a população branca e a população negra começam pela renda: na capital, a diferença entre a remuneração salarial média é de 41,9% – e também a desproporção é grande em Japeri (31,6%) e Duque de Caxias (27,2%). Em metade dos 22 municípios, a diferença da média salarial entre brancos e negros fica entre 10% a 20%. Na Região Metropolitana do Rio, pouco mais da metade (52,78%) da população se declara negra (preta ou parda, conforme os critérios definidos pelo IBGE), um índice um pouco maior que o do Brasil (50,7%).
Essa desigualdade racial é mais trágica em outros indicadores. Os negros são as maiores vítimas da ação violenta da polícia: em municípios como Petrópolis, Cachoeira de Macacu, Guapimirim e Seropédica, todas – 100% – das vítimas de homicídios por intervenção policial eram negras. O índice também é escandalosamente alto em Mesquita (93,8%), Magé (91%), Belford Roxo (89,1%), Niterói (88%) e Rio de Janeiro (81%). Em 2018, foram registrados 1534 homicídios decorrentes de intervenção policial no Estado do Rio de Janeiro. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, isto representa 25% de todos os homicídios cometidos por agentes do estado no Brasil inteiro. Em Niterói, mais de 60% de todas as mortes foram decorrentes de ação de agentes de segurança. O Mapa da Desigualdade 2020 traz ainda mais um dado trágico: de acordo com o Datasus, 42,5% das mortes causadas por atropelamentos ferroviários no Brasil em 2018 ocorreram na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (91 casos) – entre as vítimas, 82,4% eram negros.
Essa desigualdade racial aparece em outros indicadores como na saúde. Em Niterói, a população negra morre 13 anos mais cedo quando comparada com a população branca: essa diferença também chega a 10 anos na capital, Paracambi, Japeri, Queimados, Itaboraí e Rio Bonito. Na representação legislativa, a população negra está sub representada em quase todas as Câmaras Municipais: são apenas 6,7% em Petrópolis, 11,8% em Itaguaí, 23,1% em Cachoeiras de Macacu, 23,5% em Magé, 29,4% no legislativo da capital. Em Itaguaí, particularmente, onde 60% dos habitantes são pessoas negras, há apenas dois vereadores negros entre os 17 membros do legislativo.
Desigualdade de gênero
Na questão de gênero, a desigualdade também começa pela renda: em toda a Região Metropolitana, apenas em Maricá e em Queimados, as mulheres têm médias salariais maiores que os homens. Essa superioridade salarial masculina chega a 33,6% a mais em Itaguai, 22% a mais em Duque de Caxias, 21,2 em Itaboraí, 20,2% em Magé, 19,9% em Belford Roxo. “Essa questão do sexismo e do racismo fica mais evidente quando analisamos que, na mesma região, o salário das mulheres negras equivale à metade da remuneração recebida pelos homens brancos desempenhando a mesma atividade econômica”, destacou a consultora Paula Moura.
A sub representação no legislativo se repete em relação ao gênero: em oito municípios, não há representante feminina na Câmara dos Vereadores; em outros nove, as mulheres representam menos de 10% do legislativo municipal. A cidade com maior representação feminina na Câmara é Belford Roxo, com 20%; no Rio de Janeiro, onde a vereadora negra Marielle Franco foi assassinada, a porcentagem de mulheres na Câmara é de 13,7%.
A violência contra a mulher é um dos poucos dados onde há pouca diferença entre os municípios: as taxas por mil mulheres variam de 8,7 em São Gonçalo – segunda cidade mais populosa do estado, ou seja, um número absoluto alto – a 20,5 em Paracambi. Dos 22 municípios da Região Metropolitana, apenas sete têm delegacias especializadas de atendimento à mulher.
O Mapa da Desigualdade 2020 também trouxe os dados sobre os casos registrados de violências sexuais no transporte público, por grupo de 100 mil mulheres: as taxas chegam a 113,2 em Guapimirim, 113,7 em Tanguá, 110,9 em Magé, 104,3 em Petrópolis; na capital, a taxa de casos de violência sexual no transporte fica em 57.1, abaixo da média de 65,7 da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Coordenador-executivo da Casa Fluminense, Henrique Silveira destacou ainda que as soluções urbanas são de longa prazo mas, para alcançá-las, é preciso começar já. “São desafios enormes na mobilidade, na segurança pública, no saneamento. Nossos mapas são para ajudar o debate, principalmente num ano de eleições municipais. Precisamos dar um giro na política, na pauta da política e no protagonismo da política. É preciso ter foco na solução, na política pública: como financia, como há controle. E é preciso uma renovação popular: com mais jovens, mais mulheres, mais negris”, afirmou Silveira.
Confiram mapas dos 10 eixos temáticos:
1. Habitação: a renda média salarial começa alta – entre as pessoas que moram no litoral e vai diminuindo conforme avança para a periferia e para a Baixada Fluminense
2. Emprego: o índice de empregos formais por 100 habitantes mostra a maioria da informalidade – e a informalidade avança para a Baixada.
3. Transporte: parte significativa da população gasta cerca de um terço de sua renda no transporte, geralmente de baixa qualidade
4. Segurança: A grande maioria – 17 de 22 – dos municípios da Região Metropolitana tem taxa de mortes violentas por 100 mil, maior que a média brasileira (27,5). Em Itaguaí, Japeri e Queimados, a taxa de crimes violentos é duas vezes maior.
5. Saneamento: Segundo o INEA, das 437 estações de tratamento de esgoto na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 134 estão inoperantes.
6. Saúde: Não havia leitos hospitalares em Japeri em dezembro de 2019, antes da pandemia chegar. Comparando os municípios com leitos, a desigualdade entre o melhor (Cachoeiras de Macacu) e o pior (São João de Meriti) município é de 8,4 vezes.
7. Educação: Municípios da Baixada Fluminense têm baixíssimo percentual de crianças em creche
8. Cultura: Segundo o IBGE, moradores de 20,3% dos domicílios na Região Metropolitana do Rio acessam à internet somente através de redes móveis.
9. Assistência social: Entre maio e dezembro de 2019, o número de famílias beneficiárias do Bolsa Família no Estado do Rio caiu 9,35%, de 903 mil para 818 mil famílias.
10. Gestão pública: O mapa do orçamento per capita mostra como as cidades de Niterói e Maricá vêm sendo beneficiadas pelos royalties do petróleo
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Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade