A vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas durante a pandemia

Entre o risco de perder a renda e o perigo de se expor ao coronavírus a vida das empregadas se transforma numa angústia permanente; ONGs criam projetos para ajudar as profissionais

Por Anistia Internacional | ODS 10ODS 8 • Publicada em 2 de julho de 2020 - 09:13 • Atualizada em 11 de fevereiro de 2021 - 16:54

Protesto na porta do prédio de ricos de onde caiu o menino Miguel, filho da doméstica Mirtes Santana de Souza: opressão e vulnerabilidade na pandemia. Foto de Leo Malafaia (AFP)

*Thais Zimbwe, da ONG Criola

“Ainda não consegui parar para viver o luto do meu filho”. A frase é da empregada doméstica Mirtes Renata Santana de Souza, mãe do menino Miguel Otávio, de 5 anos, que caiu do prédio em Recife, enquanto a mãe trabalhava, exatamente um mês atrás, dia 2 de junho. No auge da covid-19, assim como Mirtes, muitas trabalhadoras domésticas se veem obrigadas a conciliar os cuidados possíveis no isolamento social com a rotina de trabalho. Estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) e da ONU Mulheres revela o aumento da situação da vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas durante a pandemia.

“A pandemia tem afetado muito a categoria. Muitas diaristas perderam seus trabalhos, além de outras que estão passando por situações surreais, obrigadas a ir trabalhar e se expor à contaminação”, comenta Cleide Silva Pereira Pinto, presidenta do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas de Nova Iguaçu e integrante da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad).

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A fala de Cleide se ancora nos fatos. A primeira morte pela covid-19 no Estado do Rio foi a de uma trabalhadora doméstica, de 63 anos, residente em Miguel Pereira e que trabalhava havia mais de dez anos numa casa no Leblon, área nobre carioca. A vítima apresentou os primeiros sintomas após a patroa voltar de uma viagem da Itália, país que, na época, registrava o maior número de mortes pela doença.

Muitas profissionais do trabalho doméstico não têm emprego formal, numa precariedade impossibilita a reivindicação de direitos. Soma-se ainda o fato da maioria destas mulheres serem chefes de suas famílias e, em tempos como os atuais, a ausência de renda significa a impossibilidade de manutenção dos lares. Assim, muitas se veem obrigadas a continuar suas atividades laborais, em nome do sustento das famílias.

“Decretado como serviço essencial em vários estados brasileiros, as trabalhadoras domésticas não podem cumprir a quarentena em suas casas. Nada seria problema se a essencialidade da função também viesse acompanhada dos essenciais direitos trabalhistas, já perdidos por força de negociações espúrias. Há ainda outro fato grave: a perda dos laços familiares e comunitários. Impedidas de retornar ao lar para não infectar os domicílios onde trabalham e os idosos de quem são cuidadoras, elas deixam de acompanhar o processo de saúde de suas famílias e ficam isoladas em territórios onde sua condição de subalternidade não permitirá o descanso e nem o bem-estar físico e psicológico”, completa Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola.

Uma das recomendações do “Observatório de Direitos Humanos e Covid-19” é a priorização na testagem aos trabalhadores na área de cuidados. Especialmente as domésticas, que estão na linha de frente do enfrentamento da pandemia, lidando com diferentes pessoas, em diferentes lares, sem acesso a EPIs e sem possibilidade de distanciamento social das pessoas que cuidam.
O trabalho doméstico é classificado, desde o início da pandemia, como atividade não essencial. Mas não é a realidade em muitas cidades do país – como mostra, no exemplo mais estarrecedor, o caso de Recife.

“As trabalhadoras domésticas são o grupo com maior vulnerabilidade no decorrer da pandemia”, constata Lúcia Xavier. “Sem direitos e trabalhando na informalidade, veem-se agora golpeadas outra vez sob o risco de perder a sua fonte de renda, se não conseguirem negociar o tempo de quarentena”.

Rosane Cardoso, trabalhadora doméstica há mais de 20 anos, mesmo apesar de ter carteira assinada, vive um cotidiano de direitos violados. Desde o início da pandemia, não volta para casa, em Caxias. Os patrões ofereceram duas opções: seguir trabalhando, residindo na casa deles até a situação se normalizar, ou retornar para a casa, receber as férias de 30 dias, e só voltar quando a situação terminar, sem receber salário. Rosane escolheu a primeira alternativa, pelo sustento da família.

“Pensei: como vou ficar em casa e só receber o dinheiro das férias se não sabemos quando tudo isso passará? E tenho um filho de 19 anos, que cursa faculdade de Letras, e a mensalidade custa R$ 700. Acho que sempre tem alternativa, mas eles não me deram opção, me assustaram dizendo que já tinham demitido muita gente”, lamenta Rosane.

Iniciativas de apoio às trabalhadoras

Para combater os impactos desiguais da pandemia, a Fenatrad realiza uma ação de distribuição de cestas básicas para trabalhadoras domésticas, principalmente diaristas. Andréa da Silva, moradora de Japeri, na Baixada Fluminense, foi uma das beneficiadas. Doméstica desde os nove anos de idade, ela atuava como diarista no início da pandemia e teve todos os trabalhos cancelados. “Há três meses não consigo arranjar nada. Recebo a ajuda das cestas básicas via nosso sindicato das domésticas, que tem sido o sustento da minha família”, consola-se.

Outra iniciativa é o projeto Agora é a Hora!, que reúne lideranças comunitárias em diversos territórios e comunidades do Rio de Janeiro para suporte no cadastramento do auxilio emergencial e na distribuição de cestas básicas também é uma opção para essas trabalhadoras.

A ONG Criola, a Anistia Internacional Brasil e mais 34 organizações e movimentos da sociedade civil estão na campanha Nossas Vidas Importam. E exigem das autoridades brasileiras que deem respostas inclusivas à crise da COVID-19, para populações vulneráveis, entre elas as mulheres e moradores e moradoras de favelas e periferias.

Anistia Internacional

A Anistia Internacional é um movimento global de mais de 7 milhões de pessoas que realiza campanhas para que direitos humanos internacionalmente reconhecidos sejam respeitados e protegidos no mundo. Criada em 1961, pelo advogado britânico Peter Benenson, teve sua sede inaugurada no Brasil em 2012.

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