ODS 1
Guardião da fé na tolerância e na inclusão
Pastor batista Henrique Vieira prega a convivência entre as religiões, propõe novas leituras da Bíblia, defende LGBTs e enfrenta o conservadorismo neopentecostal
Na terra envenenada por preconceito e exclusão, o pastor Henrique Vieira prega na contramão, semeando entendimento e tolerância. Dono de oratória poderosa e contagiante, professa sua fé na aceitação das diferenças, pela inclusão de negros, mulheres, LGBTs, fiéis de religiões afro-ameríndias e todos os perseguidos pelos intolerantes. Encara o conservadorismo com coragem, consolidando-se como uma bênção progressista.
Por vezes, parece o único. “Não sou exceção. Apenas somos apagados em termos de mídia”, explica ele, niteroiense ordenado na Igreja Batista. Henrique enfrenta cotidianamente os “coronéis da fé”, sua imbatível definição dos pastores televisivos, comandantes de denominações neopentecostais, líderes de um “tipo de religiosidade violenta, baseada no confronto, que não escuta nem dialoga”.
[g1_quote author_name=”Henrique Vieira” author_description=”Pastor” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Há um setor extremista, com poder político, econômico e midiático. São fiscalizadores de corpos, mais apegados a uma doutrina do que ao amor e à dignidade humana. Mas existem irmãos lutando pelo Estado laico, contra o racismo, o patriarcado, o machismo e a homofobia
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Veja o que já enviamos“Eles não representam a totalidade da experiência evangélica em nosso país”, sustenta. Para enfrentar os vendilhões dos templos, Henrique Vieira se socorre de Jesus, “um negro, pobre, da periferia, que andou com os miseráveis e excluídos da sua época, condenou o acúmulo de riqueza, foi preso, torturado, humilhado e assassinado”. O sacrifício se deu “a pedido de uma elite religiosa, que o considerava desviado e herege”, continua o pastor. “Jesus foi vítima da raiva dos fundamentalistas, do próprio Estado e daqueles religiosos que se sentiam procuradores de Deus”.
A cruzada de Henrique Vieira busca descolar dos evangélicos o rótulo de repressores e fundamentalistas conservadores, mostrando que, sob o guarda-chuva da religião, há muita diversidade. “Há um setor extremista, com poder político, econômico e midiático. São fiscalizadores de corpos, mais apegados a uma doutrina do que ao amor e à dignidade humana”, observa. “Existem irmãos lutando pelo Estado laico, contra o racismo, o patriarcado, o machismo e a homofobia”.
Ele se integra aos grupos que lutam por cidadania e defendem os direitos humanos — “irmãos e irmãs que, a partir da sua fé, lutam por terra, moradia, direitos, cidadania, pelo pão de cada dia”, descreve. “Essa espiritualidade evangélica tem muito de povo, de favela, de periferia, de resistir a partir da fé, para existir, numa sociedade tão desigual”, prega.
Os relatos de Henrique Vieira são disseminados em vídeos pela internet e em cultos e palestras pelo Rio de Janeiro. Caçula de três irmãos, integra a quarta geração de sua família na Igreja Batista. Um bisavô e um tio foram pastores, respectivamente em Macuco, na Região Serrana fluminense, e em Vitória (ES). Sua religiosidade é resultado da direta influência dos avós, do hábito de orar ao dormir e acordar, e dos cultos em casa. “Com dois, três anos, falava em Papai do Céu e em Jesus”, atesta. “Mas nunca fui restrito a um universo”, ressalva.
Frequentador da Primeira Igreja Batista de Niterói, o futuro pastor passou a ter, com 16 anos, o templo como endereço de convivência social. No Carnaval de 2002, participou de um retiro no sítio da igreja, em Rio do Ouro, na periferia da cidade, e viveu cinco dias transformadores, que marcaram o aparecimento de sua vocação como pregador. A facilidade no púlpito serve de ferramenta para — como ele mesmo define — “a preocupação com gente”. Aquele que prega e cuida.
Rapidamente, Henrique ganhou fama em círculos religiosos de Niterói, com direito a um apelido: Pastorzinho. “Foi um amadurecimento precoce e excessivo”, avalia ele que, no Ensino Médio, teve aula com professores como o futuro deputado Marcelo Freixo, intensificando as noções de Direitos Humanos, feminismo, racismo e desigualdade. O Pastorzinho chorava, angustiado. “Eu me perguntava como ficávamos isolados, longe dos pobres”, relembra o nascimento de seu aguçado sentido social.
Henrique tem mesmo o poder de enfeitiçar multidões. Ouvir sua oratória ao mesmo tempo firme e suave, de palavras claras e vocabulário impecável, prende a atenção. Os argumentos desfilam sólidos e serenos, como convém a um sacerdote. São um bálsamo para os ouvidos, ao mostrar o fervor religioso dominado pelo espírito social. “Minha visão do evangelho é da ajuda aos pobres. Da defesa dos direitos, da diversidade”, ratifica.
Ele se assume como um “seminarista meio herege”, que, em 2009, ajudou a fundar a congregação de Piratininga, bairro da Região Oceânica de Niterói, transformada, três anos depois, na Igreja Batista do Caminho. Lá, entendeu que sua vocação pastoral não era num templo, mas na rua. Sua pregação ganhou ressonância na internet, e ele, que também dava aulas de História em colégios da cidade, decidiu combater os “coronéis da fé” em outra arena — a política.
Em 2012, elegeu-se vereador pelo PSOL de Niterói, cristalizado como o pastor dos movimentos sociais. Agregador por natureza e convicção, viu grupos excluídos da sociedade recuperarem o fervor religioso. “Gente machucada, que estava pensando em desistir, encontrou na nossa construção comunitária plural a ressignificação da fé”, atesta. “Andar com renegados é ser fiel ao que Jesus fez.”
Quatro anos depois, Henrique atravessou a ponte para morar no Rio. “Tudo que vivi até então mudou, ganhando dimensões gigantes”, relembra ele, sobre a multiplicação de palestras e entrevistas. “Atribuo a Deus ter conseguido furar o bloqueio dos pastores midiáticos”, agradece, mantendo os pés no chão e a dimensão humana. Assume, sem meias palavras, como enfrenta seus dilemas. “Eu tenho fé porque tenho dúvidas”.
Paralelamente à rotina de pastor, passou a fazer teatro, “para alimentar a alma”. Foi como conheceu Caroline, sua mulher, com quem teve a filha, Maria, em 2018. Num dos primeiros trabalhos, viveu um frei dominicano no filme sobre Carlos Marighella. Mas adora mesmo se vestir de palhaço. “Para mim representar o artista que valoriza a infância e reinventa um mundo cheio de imaginação é uma honra”, festeja, pronto para viver qualquer papel, “de gay, trans, pai de santo”. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. “A prática religiosa que dá sentido a minha vida. Estou animado com o trabalho artístico, mas a fé está sempre comigo”.
Mas o objetivo central continua sendo a igreja como “expressão do reino de Deus, contra a opressão, pelos Direitos Humanos e a igualdade”. Sem hesitar diante dos tabus. Defende, por exemplo, aproximação com os homossexuais, para desespero dos pastores intolerantes. “A Bíblia deve ser lida de forma panorâmica. Não encontro nela nenhuma verdade superior ao amor”, sustenta. “O amor sacraliza, santifica, abençoa. Não devemos ter medo do amor. Assim, por que se importar com o beijo gay na televisão e não com o extermínio do povo negro, com a fome, com a concentração de terra, com a violência contra as mulheres? Jesus bateu de frente com a tradição. Sempre preferiu a dignidade humana. Considero as diversas sexualidades como expressões da vida. Homofobia e transfobia matam, e a gente não quer perder pessoas em nome de um dogma. Deus não é um dogma, é amor.”
Ele também participa do socorro aos terreiros de candomblé e umbanda, atacados pelas milícias neopentecostais. Sem meias palavras, Henrique acusa líderes de denominações evangélicas com grandes espaços na televisão, os “amoladores de faca”. “O ataque sistemático às religiões de matriz africana se dá com um discurso de ódio, racista, construindo o ambiente de exércitos religiosos que atacam e ferem o corpo, a dignidade e religiosa das pessoas”, denuncia.
Por tudo isso, ele interage com pais e mães de santo, em nome da harmonia entre as religiões. “Como novo carioca e sempre cristão, defendo a cultura de matriz africana, no sentido da centralidade da História e da memória da cidade”, raciocina. “A preservação é fundamental para o futuro”.
Seguidor — você deve ter percebido — dos valores e estratégias do americano Martin Luther King Jr., Henrique Vieira tem, cada vez mais, a rua como púlpito. “Se não houver aproximação com a dinâmica popular, os coronéis da fé vencerão”, argumenta. “Eles não podem monopolizar a Bíblia”. Levou multidões ao delírio, nas manifestações que homenagearam Marielle Franco (a vereadora carioca assassinada em 2018).
Sua cruzada para desmontar o castelo fundamentalista e o racismo religioso recupera o sentido mais acolhedor do Evangelho, pelas histórias “generosas e subversivas” de Jesus Cristo de Nazaré. “Afirmar a memória e a vida Dele, especialmente em nosso tempo, é também guardar a democracia, celebrar a diversidade, enfrentar os discursos de ódio e defender uma prática de amor e o amor como prática”, ensina.
Bem-aventurado seja.
*Publicado originalmente no livro “Guardiões da Alma Carioca” (Editora Parideira Cultural)
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Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!
O segundo homem com quem me relacionei, ele era Espirita, Casado e Meu Chefe: estávamos nos anos 90 e, outro detalhe: diferença de idade de 14 anos! E eu havia começado a namorar homem, mas como eu e ele, já vinhamos conversando antes de eu comerçar a namorar, tivemos a transa!