Direito aos sem direitos: estudantes prestam atendimento jurídico à população de rua

Projeto Café Suspenso ameniza a invisibilidade de quem não tem teto nem condições de enfrentar a burocracia da Justiça

Por Karla Marcolino | ODS 8 • Publicada em 29 de novembro de 2018 - 08:00 • Atualizada em 29 de novembro de 2018 - 15:16

O escritório de Direito é a calçada (Foto: divulgação)
O escritório de Direito é a calçada (Foto: divulgação)
O escritório de Direito é a calçada (Foto: divulgação)

As manhãs de domingo são de lei para Marcelo Dealtry Turra, coordenador do Núcleo de Prática Jurídica (NPJ) da Faculdade Hélio Alonso, e seus alunos. Desde fevereiro o grupo, que já se aproxima de 40 pessoas, reveza-se para conversar com quem dorme em bancos de praça, sob marquises, dentro de túneis, debaixo de viadutos. O objetivo é transformar a disciplina do curso de Direito em serviço de utilidade para a população sem teto. Gente como Cléber Wilson Nunes Cordeiro, 29, e Amanda Daniel dos Santos, 33, primeiros entre cerca de 200 cadastrados pelo projeto Café Suspenso. O nome é uma alusão à tradição dos cafezinhos solidários que clientes deixam pagos em estabelecimentos da Europa. A doação, neste caso, é o auxílio às pessoas em situação de rua na solução de problemas jurídicos nas áreas de Direito Cível, Criminal, Trabalhista e de Família.

Sem documentos

O paulista Cléber trabalhou como zelador e morou de aluguel em um condomínio do programa Minha Casa Minha Vida. Desempregado, há dois anos se abriga com Amanda sob o viaduto Rainha Carlota Joaquina, próximo ao Mourisco, em Botafogo. Ele só precisava de documentos, a principal demanda, já que é comum os papéis serem perdidos, apreendidos ou roubados. O caso dela é mais complicado. Detida por furtar produtos de beleza nas Lojas Americanas, graças à atuação dos estudantes responde ao processo em liberdade. “O problema é que ela é reincidente”, analisa o professor Gustavo Auler, coordenador de Direito Criminal, que deu uma bronca na cliente. Por roubar oito produtos entre xampus e cremes de tratamento – “um de cada e só coisa boa, porque sou vaidosa”-, Amanda pode ser condenada a 5 anos de prisão: “Ele mandou eu não fazer mais bobagem”.

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Casal prefere dormir nas ruas, pois em abrigos ficam separados (Foto: divulgação)
Casal Cléber e Amanda prefere dormir nas ruas, pois em abrigos ficam separados (Foto: divulgação)

O casal vive da venda de latinhas e sonha com um aluguel social. Já estiveram em abrigos, mas não gostaram. “Não podemos dormir juntos”, reclama Cleber. Há um mês o catador foi presenteado com uma espécie de escritura informal: o grafite do artista Cazé, retratando-o bem na pilastra onde encosta seu colchão e que inclui as inscrições “Minha Casa Colorida” e “Paz e Rua”. “Isso é muito interessante. Participar do projeto me fez refletir sobre conceitos como lar. Inclusive, já existe jurisprudência estabelecendo a inviolabilidade da moradia, mesmo no caso de pessoas em situação de rua”, diz Bruno Peregrino, jornalista, estudante do 6º período de Direito, e responsável pelaconstrução de um banco de dados do projeto.

Estudante da Facha faz atendimento nas ruas: alunos conheceram nova realidade (Foto: divulgação)
Estudante da Facha faz atendimento nas ruas: alunos conheceram nova realidade (Foto: divulgação)

‘Exilados’ da sociedade

“A gente aprende que essas pessoas são gente como a gente. Tiveram casa, emprego, têm família, e, por alguma eventualidade, terminaram nessa situação. Conheci um senhor que era motorista de ônibus, sua casa foi incendiada e perdeu tudo. É muito triste”, comentava Caroline Gonçalves Lopes, 22, aluna do 8º período, em seu terceiro domingo de ronda, na Cinelândia.

Elizabeth Gomes de Souza, bolsista do 10º período, acha que tudo o que as pessoas precisam é de oportunidades. Como a que ela mesma recebeu da professora Flávia Fernandes, da FACHA e da Escola Municipal Edna Porcioni Ferreira, onde Beth, hoje com 53, trabalha e mora há quase trinta anos.  Ela conta que começou a cursar direito aos 21. “Quando estava no 5º período veio o Collor e cortou o financiamento educativo. Precisei parar e com muita luta fiz concurso para merendeira. Assim criei minhas filhas e conheci esse anjo que me ajudou. Ela me disse, ‘se você tem vontade, vai sim, voltar a estudar’. Quase não acredito que estou me formando”, diz.

Patrícia de Oliveira Martins, 22, conta que no início teve receio durante as saídas de campo. Até perceber, nas histórias de vida dos entrevistados, as situações mais absurdas. A mais impressionante, de uma senhora, acusada e presa injustamente, vítima de parentes de olho na pensão de dois salários mínimos que ela recebia. “Ela recuperou a remuneração, mas vive nas ruas, porque não quer mais contato com a família”. Esse tipo de mágoa é recorrente. Luiz Santos, 56, teve empregos como vigilante e auxiliar de cozinha. Perdeu o último há 13 anos e reclama que tem uma tia e dois irmãos, mas nunca pôde contar com ajuda. “Sou o mais velho, cuidava deles, levava para tomar guaraná. Agora nem me chamam pelo nome, estão esperando que eu morra”, lamenta. Luiz também já esteve em abrigos e diz que falta tudo nesses lugares, até papel higiênico, e que, por ser hipertenso, passa mal com a comida cheia de sal. Com artrose reumática, recorreu ao CRAS (Centro de Referência em Assistência Social) para conseguir o Benefício de Prestação Continuada (uma renda de um salário-mínimo para idosos ou pessoas com deficiência que não podem se manter).

Sentado num banco, Jorge Luiz Silva dos Santos, 41, só queria um alívio para a dor. Ele fazia a limpeza do telhado de um quiosque no Parque Madureira quando caiu e rasgou o escroto. Chegou a ser internado e tratado no hospital Salgado Filho, mas, depois que teve alta, piorou. Sem casa e sem poder fazer biscates, não tem como comprar remédios. Marcelo Marques, 28, se aproximou do grupo afirmando que precisava de uma namorada. Alcoolizado e muito perturbado, dizia estar inconsolável depois de abandonado por uma loura mineira com quem teria passado 45 dias de puro romance em um apartamento no Ingá, em Niterói. A dona do imóvel, tia da moça, estaria viajando. Quando voltou, o amor acabou, e Marcelo tornou às ruas e à bebida, apesar de estar em tratamento contra o vício no CAPS (Centro de Atendimento Psicossocial da Prefeitura). Ele diz que tem família, inclusive uma irmã advogada. “Trabalha ali no Fórum”, apontou. Fala inglês e conta que estudou, gosta de cinema, arte, literatura, e é fã dos Beatles. Mas não fez faculdade porque se desentendeu com a mãe e saiu de casa aos 16 anos.

Rejeição aos abrigos

Aluno do 10º período, Robson Franco de Moura, 43, que também é voluntário no abrigo Pescadores de Homens, mantido por uma igreja evangélica no Alto da Boa Vista, convenceu Jorge e Marcelo a irem até lá. Os dois tomaram banho, comeram e dormiram no local. Jorge foi medicado. No dia seguinte, decidiram ir embora. É comum. A cada cem dependentes, dois costumam ficar. “Alguma dessas pessoas já passaram por experiências bem ruins. Há relatos de agressões nos abrigos. Por outro lado, a recuperação vem com responsabilidades que assustam”, diz Robson.  

Anderson Souza de Farias, monitor de prática jurídica, acha que só o fato de serem percebidas já conta muito para quem vive em situação de rua. Acredita que participar do projeto mudou seu olhar. “Nunca fui indiferente. Lembro-me de, ainda garoto, dar meu casaco a um homem que vi na chuva. A primeira reação dele, quando eu me aproximei, foi tentar se proteger. Ele achou que eu iria agredi-lo! Chorei muito nesse dia. Mas a verdade é que a gente vive no automático. Eu moro em Botafogo e corro no Aterro do Flamengo. Numa de nossas incursões, fomos até lá e conheci um rapaz, que teve o pulso arrebentado por um golpe de cassetete. Ele sempre esteve ali, trabalhando como catador. Eu que nunca vi”. O rapaz não foi até o NPJ para o atendimento. Estatisticamente, apenas 10% dos entrevistados vão. Anderson encontrou com o catador outras vezes durante suas corridas e foi recebido com abraços.

G (que prefere não revelar o nome) esteve no NPJ há algumas semanas, diz que vai voltar para arrumar sua situação, mas posterga porque está avisado de que cumprirá pena. O rapaz, de 26 anos, conta que saiu de Angra dos Reis, onde cresceu e ainda vive sua mãe, para fugir do tráfico. Usava e vendia drogas. No Rio, conheceu Paloma, 19, com quem morou em Saracuruna. “A gente tinha casa, mas não tinha o que comer. Eu vinha pro Aterro tentar arranjar algum bico. Quando não dava, roubava. Meu pensamento era levar comida pra casa de um jeito ou de outro”. Preso, passou pelos presídios Milton Dias Moreira, Ary Franco e Muniz Sodré. Entrou para o regime semiaberto na Casa de Custódia de Benfica. Um dia saiu e não voltou mais. “Os caras invadem as celas de madrugada e batem na cara de todo mundo. E lá é muito misturado, tem bandido de tudo que é facção. Não vou voltar”, justifica. G tem um filho, Caleb, de um ano e três meses, registrado só pela mãe. Diz querer “consertar isso” e andar dentro da lei pelo menino, que pretendia visitar no dia seguinte à entrevista.

Histórias recuperadas em fotos

G., Cléber, Amanda e outros entrevistados foram retratados por estudantes de cinema e comunicação da FACHA, sempre com o cuidado de não expor suas identidades, como explica Laura Carvalho, aluna do 6º período de cinema e curadora, junto com Marcelo Turra, da exposição “Teto de Estrelas”, montada na entrada da faculdade entre setembro e outubro. Pedaços de papelão, usados como cama por quem dorme das ruas, serviram de suporte. Convidado a comentar, o público, na grande maioria alunos da faculdade, não foi unânime. Houve quem escrevesse “vontade de matar esses viciados”. Mas a maioria usou palavras como “amor”, “afeto”, “gratidão”, “exemplo” e slogans como “verdadeira função do direito”, além de encampar um dos lemas do projeto Café Suspenso: “Pessoas não são invisíveis”. “Acho que esse projeto tem sido mais valioso para meus alunos do que para essas pessoas”, analisa o idealizador Turra.

Karla Marcolino

Formada em jornalismo na ECO/UFRJ em 1989, trabalhou na Rádio JB, na TV Globo, na revista Veja Rio, no Jornal do Brasil e em O Dia. Faz tempo optou por ser freelance e desde então tem produzido conteúdo para sites e publicações diversas. Divide-se entre a reportagem e as aulas de yoga desde que se tornou instrutora, em 2018.

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7 comentários “Direito aos sem direitos: estudantes prestam atendimento jurídico à população de rua

    • ROBSON FRANCO DE MOURA disse:

      KARLA TUDO BEM? AQUI E O ROBSON.
      FICOU LINDA A MATERIA, OBRIGADO POR NOS CONCEDER A OPORTUNIDADE DE DIVULGAR NOSSO TRABALHO, PARABENS, BJ

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