O que se sabe sobre a atuação da Cambridge Analytica no Brasil

Bolsonaro procurou a empresa para ajudá-lo, mas foi recusado. Parceiros da CA atuaram em três campanhas estaduais

Por Flavia Milhorance | ODS 8 • Publicada em 27 de outubro de 2018 - 08:21 • Atualizada em 27 de outubro de 2018 - 15:56

Ex-estrategista de Donald Trump, Steve Bannon elogia Jair Bolsonaro mas nega ter participado da campanha brasileira. Foto Joe Raedle/Getty Images/AFP
Ex-estrategista de Donald Trump, Steve Bannon elogia Jair Bolsonaro mas nega ter participado da campanha brasileira. Foto Joe Raedle/Getty Images/AFP
Ex-estrategista de Donald Trump, Steve Bannon elogia Jair Bolsonaro mas nega ter participado da campanha brasileira. Foto Joe Raedle/Getty Images/AFP

(Colaboraram Manuela Andreoni e Adriano Belisário) – Cientistas políticos, marqueteiros e estatísticos ficaram sem ar. As eleições de 2018 mudaram todos os paradigmas. O pleito foi soterrado por notícias falsas e conduzido por uma volumosa e rápida circulação de informações pelos submundos do Whatsapp. Em um mundo de manipulação das redes, em campanhas como as de Donald Trump e do Brexit, em que russos são acusados de hackear eleições, não faltaram especulações sobre influências estrangeiras nas eleições brasileiras. No topo da lista de conspirações estava a possível interferência da empresa britânica de dados e análise política Cambridge Analytica (CA) e de seu ex-conselheiro Steve Bannon, ex-estrategista do governo americano.

[g1_quote author_name=”André Torretta” author_description=”Dono da Ponte Estratégia” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Bolsonaro buscou a Cambridge, mas a empresa não o quis como cliente. Eles acharam que não seria propício porque ele é de extrema-direita e poderiam ser feitas associações com o Trump

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Um escândalo que explodiu em março deste ano mostrou como a CA roubou informações de 50 milhões de usuários do Facebook para serem usadas no direcionamento de mensagens políticas nos EUA, Reino Unido, Quênia, Índia, entre outros países. Diante das revelações, a CA, ligada ao grupo SCL (Strategic Communication Laboratories), fechou as portas. Seus executivos criaram novas companhias ou assumiram cargos em outras empresas.

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Enquanto isto, o ex-parceiro da Cambridge Analytica no país, André Torretta, fechou contratos com três campanhas estaduais para as eleições de 2018, inclusive a da reeleição do atual governador do Amapá, Waldez Góes. Torretta também atuou no Maranhão e afirma ter feito consultorias em outros estados.  E a campanha do Bolsonaro? Em entrevista para a BBC News Brasil, Bannon elogiou o candidato do PSL, declarou apoio, mas negou ter participado das eleições no país. Torreta, por sua vez, confirma que Bolsonaro tentou fazer um contrato com a Cambridge Analytica, mas a empresa teria recusado trabalhar com a extrema-direita no Brasil.

Confira abaixo o que é fato sobre a relação entre a CA e as eleições de 2018 no Brasil:

1 – A CA tinha um parceiro no Brasil e pretensões eleitorais

Em meados de 2017, o marqueteiro André Torretta alega ter feito um memorando de entendimento (MOU – Memorandum of understanding) com a Cambridge Analytica, firmando uma parceria que ele acredita ter sido exclusiva para operação da empresa estrangeira no Brasil. À época, antes do escândalo sobre o uso indevido de dados do Facebook vir à tona, o plano era que a Ponte Estratégia – empresa de Torretta, que existe desde novembro de 2007 – seria uma espécie de “braço brasileiro” da Cambridge.

Em 2017, o marqueteiro André Torretta assinou um memorando de entendimento com a Cambridge Analytica, que, segundo ele, daria exclusividade para a operação no Brasil. Foto Divulgação
Em 2017, o marqueteiro André Torretta assinou um memorando de entendimento com a Cambridge Analytica, que, segundo ele, daria exclusividade para a operação no Brasil. Foto Divulgação

Há referências a uma empresa chamada “CA Ponte”, que seria resultado desta parceria. No entanto, não foram encontradas pessoas jurídicas com este nome, tampouco a Ponte Estratégia alterou sua razão social neste período. Torretta também garante que não houve institucionalização da parceria para além do memorando.

As primeiras conversas com a CA começaram pelo menos dois anos antes, afirmou Torretta. Seu principal contato na empresa britânica era Mark Turnbull, o mesmo executivo flagrado revelando métodos antiéticos de manipulação política, como suborno, armadilhas com prostitutas e disseminação de mensagens pela internet. No vídeo, inclusive, ele conta a um potencial cliente que a empresa atuaria no Brasil. O vídeo foi gravado em um encontro de empresários realizado entre o novembro de 2017 e o janeiro de 2018.

Torretta garante que a parceria entre a Ponte e a CA foi cancelada após a explosão do escândalo. “Me senti como o homem casado que descobre que a mulher roubou metade dos dados do mundo”, compara. “Não sabia de nada do que estava acontecendo”.

2 – A Ponte trabalhou em pelo menos três campanhas eleitorais

O rompimento da parceria com a CA não afastou André Torretta das eleições em 2018. Três candidaturas do Norte e Nordeste contrataram seus serviços este ano, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em entrevista, Torretta também admitiu ter realizado consultorias em outros estados, mas não especificou quais.

O governador Waldez Góes, candidato à reeleição pelo PDT, e Fátima Pelaes, ao Senado pelo MDB, ambos do Amapá, declaram terem pago à Ponte Estratégia e Planejamento R$ 480 mil e R$ 75 mil, respectivamente. Já o deputado federal do PSDB pelo Maranhão, José Reinaldo Carneiro Tavares, contratou a McMann & Tate Pesquisas e Eventos, outra empresa de Torretta, por R$ 80 mil.

O candidato a governador pelo Amapá Waldez Góes foi um dos clientes da Ponte Estratégia. Foto Divulgação
O candidato a governador pelo Amapá Waldez Góes foi um dos clientes da Ponte Estratégia. Foto Divulgação

Torretta alega não poder detalhar os serviços prestados por sigilo do contrato, mas nega ter usado o WhatsApp em campanhas eleitorais. Segundo os dados declarados ao TSE, os serviços envolveriam produtos audiovisuais e pesquisas.

Fátima Pelaes, uma liderança da ala feminina do PMDB que assumiu a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres no Governo Temer, afirmou que Torretta prestou serviços de consultoria e marketing político, mas o trabalho não incluía redes sociais ou uso de outras tecnologias. Fátima e Tavares não se reelegeram.

Em outubro de 2017, Torretta deu entrevista sobre um projeto-piloto no Amapá para testar estratégias de convencimento de eleitores brasileiros através de um aplicativo de mensagens criado por ele, similar ao Whatsapp. Ele organizou ali um laboratório, que consistia em uma campanha de posicionamento de imagem para uma deputada estadual. Torretta nega que o projeto tivesse propósitos eleitorais. Segundo ele, era uma ação de “cunho filantrópico”.

Segundo o calendário eleitoral, candidatos que concorrem no segundo turno devem entregar suas prestações de contas completas até 17 de novembro, portanto, é possível que existam mais campanhas que contratam serviços da Ponte, mas ainda não declararam as despesas oficialmente. José Reinaldo Tavares e o governador Waldez Góes não responderam aos questionamentos do Projeto #Colabora.

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Em março, os promotores Frederico Meinberg Ceroy e Paulo Roberto Binicheski instauraram um inquérito civil público para apurar se Facebook, Cambridge Analytica e Ponte Estratégia haviam feito uso ilegal de dados de brasileiros. É fato que a investigação continua em curso, sob sigilo

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3 – Torretta diz que intermediou contato da Ponte com a Serasa, mas acordo fracassou

Antes de o escândalo da CA estourar, André Torretta defendia a aplicação de bancos de dados gigantes (Big Data) em estratégias eleitorais. Em finais de 2017 e início de 2018, no momento de prospectar clientes, ele explicava que o pulo do gato da técnica era empregar dados específicos de potenciais eleitores aliado às redes sociais. “Dá para eleger um deputado federal ou estadual quase 100% pelas redes”, chegou a comentar.

No Congresso, Torretta explicou como usar dados pessoais para persuadir a opinião pública; e a jornalistas da Folha de S. Paulo e El País garantiu já ter coletado dados de 80 milhões de brasileiros com características geolocalizadas, a partir de informações do Serasa Experian e IBGE, por exemplo. Ao Projeto #Colabora, Torretta explicou que foi tentado um “acordo operacional” entre a Cambridge Analytica e a Serasa via Ponte há dois anos, mas “não deu certo”.

Em nenhuma entrevista, o ex-parceiro da CA citou o uso de informações do Facebook. E após a revelação das ações questionáveis da CA em março deste ano, não só se antecipou em cortar as relações com a empresa estrangeira como amenizou o tom do alcance da técnica que antes propagandeava.

Ao Projeto #Colabora, Torretta afirmou que, no Brasil, não teríamos “nem tecnologia, nem informação suficiente” para ter o impacto da metodologia da CA.

4 – Método que trouxe fama à Cambridge era baseado no Facebook, não no Whatsapp

 Com 120 milhões de usuários, o WhatsApp acabou se tornando um canal decisivo nestas eleições e ficou no centro das investigações da Polícia Federal sobre o disparo irregular de mensagens pela plataforma. Os famigerados métodos usados pela Cambridge Analytica ocorreram essencialmente no Facebook, que também detém o WhatsApp, mas não há evidências de que este último tenha sido usado pela companhia britânica.

Torretta já pretendia “tropicalizar” a estratégia da CA no Brasil e comentou, em 2017, que usaria bancos de dados com informações sobre eleitores para “transformar os usuários de Whatsapp em cabos eleitorais virtuais”. Na conversa com o #Colabora ele voltou atrás e disse que a técnica usada no Facebook não serviria para o contexto brasileiro do WhatsApp. “É um engano muito grande do Brasil achar que a tecnologia da Cambridge poderia ser importada”, afirmou. Ele nega ainda que a Ponte tenha usado o Whatsapp nas campanhas no Amapá e no Maranhão em 2018. No Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral só permite uso de dados de eleitores que os ofereceram conscientemente para este fim a campanhas políticas.

Em nota, o WhatsApp explicou que tem banido centenas de milhares de contas durante o período das eleições e listou outras iniciativas em resposta às investigações da PF. Mas não comentou se havia indícios de que outras campanhas fizeram mau uso da plataforma ou se aplicaram métodos semelhantes aos da CA.

5 – A Ponte e a Cambridge são investigadas pelo Ministério Público

Em março deste ano, foi aberta a caixa preta. Uma investigação do New York Times e dos jornais londrinos The Observer e The Guardian revelou documentos que provavam que a empresa usou dados obtidos irregularmente por meio do Facebook para construir perfis de eleitores nos Estados Unidos e no Reino Unido, e assim tentar influenciá-los. Os resultados foram avassaladores para a empresa, que declarou falência apenas dois meses depois.

No Brasil, o Ministério Público do Distrito Federal não perdeu tempo. Ainda em março, os promotores Frederico Meinberg Ceroy e Paulo Roberto Binicheski instauraram um inquérito civil público para apurar se Facebook, Cambridge Analytica e Ponte Estratégia haviam feito uso ilegal de dados de brasileiros. Procurados, três ex-funcionários da Cambridge e dois promotores não quiseram se manifestar. Outros 21 ex-funcionários da empresa também não responderam a pedidos de entrevista.

Mas é fato que a investigação continua em curso, sob sigilo. Segundo reportagem da Veja, investigadores já descobriram indícios de que o plano era, em vez de usar dados do Facebook, ganhar acesso a bancos de dados do governo com informações sobre quase 80 milhões de brasileiros. Torretta criticou a reportagem e nega qualquer irregularidade.

A famoso encontro entre Eduardo Bolsonaro e Steve Bannon, em Nova York. Foto Reprodução
A famoso encontro entre Eduardo Bolsonaro e Steve Bannon, em Nova York. Foto Reprodução

6 – Eduardo Bolsonaro e Steve Bannon se encontram em um polêmico hotel de luxo em Nova York

No dia 3 de agosto deste ano, Bolsonaro postou uma foto nas redes sociais, ao lado de Steve Bannon. A imagem gerou repercussão e especulações sobre a possível parceria. Com o apoio de Aliaume Leroy, investigador do Bellingcat, verificamos que Eduardo Bolsonaro e Bannon estavam em um quarto de frente do Hotel Loews Regency em Nova York.

O Loews Regency é conhecido da imprensa americana por seus muitos escândalos. Em abril deste ano, o FBI (Polícia Federal americana) fez uma operação de busca e apreensão no hotel. O alvo era o quarto de Michael Cohen, advogado de longa data do presidente americano Donald Trump. Aliados de Trump, como Cohen e o próprio Bannon, são figurinhas conhecidas no Loews.

7 – Bolsonaro buscou a Cambridge, mas empresa não o quis como cliente

A Cambridge Analytica ficou famosa ao ajudar em dois feitos eleitorais que deixaram analistas sem ar. O primeiro foi a vitória do Brexit, em que britânicos votaram para sair da União Europeia, em junho de 2016. Depois, em novembro do mesmo ano, os americanos elegeram Donald Trump. Ambas importantes para a extrema direita global. Mas outros países onde o vento direitista soprou também viram sinais da obscura empresa britânica.

Nas Filipinas, por exemplo, publicações no site do  SCL Group, a empresa-mãe da Cambridge Analytica, mencionam o trabalho na transformação da imagem de um candidato para alguém de “durão e decidido”, segundo o jornal South China Morning Post.  Especula-se se o candidato em questão seja Rodrigo Duterte, o presidente que deu poder a esquadrões da morte, iniciando a guerra às drogas mais sanguinária de que se tem notícia. Membros da campanha de Duterte disseram à imprensa local que a Cambridge apenas influenciou seu trabalho.

No Brasil, não há evidências de que a empresa tenha ajudado o candidato da extrema-direita Jair Bolsonaro. Notícias de janeiro deste ano afirmam que Bolsonaro foi renegado pela Cambridge Analytica ao tentar contratá-los e, mais recentemente, Bannon confirmou a informação à BBC News Brasil.

Ao ser questionado, Torretta também confirmou que houve conversas de Bolsonaro e integrantes da CA em Nova York. Apesar de ser um parceiro da CA no Brasil à época, Torretta nega que a aproximação entre Bolsonaro e Bannon tenha passado por ele.

Torretta também confirmou que Bolsonaro buscou a Cambridge e a empresa não o quis como cliente. Segundo ele, a Cambridge Analytica “não achou que seria propício tê-lo como cliente porque ele é de extrema-direita” e poderiam ser feitas associações com Trump. “Achei que tinha certa lógica”, comentou Torretta ao #Colabora.

Até o momento, não foram encontrados registros de nenhum pagamento da campanha de Bolsonaro a empresas ligadas à Torretta ou à Cambridge Analytica no Tribunal Superior Eleitoral. Torreta negou ter participado de sua campanha ou da campanha de seus filhos.

Flavia Milhorance

Jornalista com mais de dez anos de experiência em reportagem e edição em veículos de imprensa do Brasil e exterior, como BBC Brasil, O Globo, TMT Finance e Mongabay News. Mestre em jornalismo de negócios e finanças pelas Universidade de Aarhus (Dinamarca) e City University, em Londres.

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2 comentários “O que se sabe sobre a atuação da Cambridge Analytica no Brasil

  1. Mauro disse:

    Não há como comprovar a associação da CA e a campanha, e acho bem provável que a CA realmente não foi contratada. Porém é certo que foram usados esquemas de publicação e compartilhamento de notícias falsas em massa, que beneficiaram muito mais B. Consultorias anti notícias falsas expuseram vários dados que comprovam isso. Sempre a maioria esmagadora das noticias falsas são pró-bolsonaro.

    E é engraçado como seu eleitorado é afetado pelo que chamo de uma mistura de pós-verdade com duplipensamento: A notícia comprovadamente falsa só é falsa mesmo se beneficiar H. Se beneficiar B, é, no máximo, uma manifestação da liberdade de expressão. E também, toda a mídia é anti B, B é o maior alvo das notícias falsas, bem como o homem é alvo das feministas radicais, os brancos são alvos de racismo e por aí vai…

    Me parece claro que esse fenômeno só ocorreu pelo pouco nível de instrução da classe média / pobre.

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