Vale a pena sediar uma Copa do Mundo?

Mundial da Rússia custou R$ 38,49 bilhões, competição no Qatar deve consumir mais de R$ 100 bilhões. Afinal, há legado?

Por Claudio Nogueira | ODS 8 • Publicada em 8 de julho de 2018 - 04:08 • Atualizada em 15 de julho de 2018 - 13:25

Estádio Luzhniki, em Moscou, um dos legados da Copa 2018 (Foto: Javier Garcia Martino/Mexsporto/AFP)
Estádio Luzhniki, em Moscou, um dos legados da Copa 2018 (Foto: Javier Garcia Martino/Mexsporto/AFP)
Estádio Luzhniki, em Moscou, um dos legados da Copa 2018 (Foto: Javier Garcia Martino/Mexsporto/AFP)

“Quando o Mundial começou, pendurei na porta da minha casa um cartaz que dizia: Fechado por motivo de futebol. Quando o retirei, um mês depois, eu já havia jogado 64 jogos, de cerveja na mão, sem me mover da minha poltrona preferida”, escreveu o intelectual Eduardo Galeano (1940-2015) em seu “Fechado por motivo de futebol”. Para o uruguaio, absolutamente apaixonado pelo esporte da bola tocada com os pés, mais do que ser apenas uma modalidade, o futebol era e é uma espécie de bússola que permite perceber os rumos da própria humanidade. Assim, se o futebol é capaz de parar um país, quando jogam seleções como as de Brasil, Uruguai ou Argentina, dentre outras, o que uma Copa do Mundo deixa para a nação que que serve de palco para o desfile de astros?

Bilhões de investimento

Afinal, como em qualquer festa, alguém precisa pagar a conta da Copa. E o que recebe de volta? As contas existem, são altas e em alguns casos, depois da celebração esportiva, resta muito pouco para quem se empenhou nos preparativos e em fazer a festa. Caso da Copa do Mundo de 2014, no Brasil. De acordo com levantamentos feitos pelo governo brasileiro, o megaevento teve custos de cerca de R$ 33,48 bilhões, o Mundial mais caro da história até então. Sobre benefícios para a população, a população pouco viu.

Já o presidente russo Vladimir Putin não deixou barato, literalmente. Em abril, o Comitê Organizador do megaevento divulgou em Moscou que os investimentos daquele país chegavam ao equivalente a R$ 38,49 bilhões, superando o do Brasil em R$ 5 bilhões, para se tornar a Copa do Mundo mais cara de todos os tempos. A projeção do mesmo Comitê é a de que o Mundial represente um impacto econômico de US$ 15 bilhões (R$ 51,9 bilhões) no PIB da Rússia deste ano, sendo US$ 2 bilhões apenas no turismo. Um estudo da Consultoria Legislativa do Senado Federal do Brasil, datado de 2013, dava conta de que a Copa da Alemanha- 2006 custou US$ 6 bilhões (R$ 23 bilhões em valores atuais) e a da África do Sul-2010  em US$ 8 bilhões (R$ 30 bilhões).

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Lucro da Fifa

Ao mesmo tempo em que se trata do Mundial mais caro de todos os tempos, a edição da Rússia será também a de maior lucratividade para a Fifa. Consultoria de renome internacional, a KPMG divulgou que no Mundial de 2014, no Brasil, a Fifa teve uma receita de US$ 4,8 bilhões (R$ 18,5 bilhões), mas agora, no megaevento russo, estes números chegarão aos US$ 6,1 bilhões (R$ 23,6 bilhões), ou seja, 25% a mais do que na edição anterior do campeonato, graças, principalmente, aos direitos de TV (cerca de 50% da receita) e de patrocínios (35%). Isso serve para mostrar o quanto a televisão se torna cada vez mais um fator preponderante de lucratividade não apenas deste como de quaisquer outros eventos internacionais. de esporte.

Em exibição em Moscou, maquete do Estádio Khalifa International, um dos que sediará jogos na Copa de 2022 (Foto de Iliya Pitalev / Sputnik/AFP)
Em exibição em Moscou, maquete do Estádio Khalifa International, um dos que sediará jogos na Copa de 2022 (Foto de Iliya Pitalev / Sputnik/AFP)

Mais gastos no Qatar

Entretanto, na rubrica “investimentos na Copa”, já se sabe que dificilmente algum outro país organizador irá superar um pequeno reino de 11.571km², situado no Oriente Médio: o Qatar, que irá organizar o Mundial de 2022. Conhecidos por investirem em esportes, como no clube Paris Saint-Germain, no Mundial de Motovelocidade, e em eventos de tênis, esportes paralímpicos e handebol, os xeques qataris não vão hesitar em desembolsar US$ 30 bilhões (R$ 116,5 bilhões) para verem a bola rolar em seus estádios,  o maior e mais moderno deles, o Iconic Stadium, em construção em Lusail, a 15km da capital Doha. Pré-candidato a sediar os Jogos Olímpicos de 2016, que foram no Rio, e de 2020, a serem celebrados em Tóquio, o governo qatari segue sonhando com uma futura edição das Olimpíadas.

“O Qatar está sempre pronto para se candidatar a qualquer coisa. Estamos prontos a qualquer tempo, para sediar qualquer grande evento, e a Olimpíada é um deles”, declarou o xeque Joaan bin Hamd bin Khalifa Al Thani, irmão do emir Tamim bin Hamad bin Khalifa Al-Thani, em 2015, quando do Mundial Masculino de Handebol naquele país.

Daqui a oito anos, o circo da Fifa vai fazer suas paradas, pela primeira vez, em cidades de três nações diferentes: Canadá, Estados Unidos e México. Em 2002, a Copa já tivera dois organizadores, a Coreia do Sul e o Japão, mas em 2026 será o primeiro campeonato “tripartite”, mobilizando toda a América do Norte, além de, pela primeira vez, reunir 48 seleções, e não mais 32 como no modelo atual. A candidatura tríplice levou melhor sobre a do  Marrocos. Isso, apesar de o país norte-africano ter se comprometido em levar adiante a bandeira do desenvolvimento do esporte fora dos grandes centros e carregando-a novamente para a África a um custo de US$ 15,8 bilhões (R$ 61,2 bilhões).

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Uma Copa do Mundo de Futebol, simbolicamente, é uma espécie de abertura das portas de nossa casa, para uma certa universalidade de atitudes e comportamentos, de modos e jeitos de ser, de pensar e de agir.

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A favor do trio das Américas, pesaram fatores como os investimentos de US$ 2,16 bilhões (R$ 8,36 bilhões) e de a maior parte dos estádios e infra-estrutura estarem prontos. Mas, claro, pesou na votação o fato de a candidatura da América do Norte ter projetado para a entidade internacional do futebol lucros de US$ 14,3 bilhões (R$ 55,4 bilhões) contra US$ 7,2 bilhões (R$ 27,8 bilhões) da postulação marroquina. Dos 80 jogos, 60 serão nos Estados Unidos, com dez cidades sediando a competição. Com três cidades cada um, Canadá e México ficam com a menor parte. O México, que já promoveu as edições de 1970 e de 1986, será o primeiro país a ter sediado três Mundiais na história.

Com a imagem manchada por uma série de denúncias de corrupção sobre as escolhas de sedes do próprio Mundial atual e do de 2022, e de situações nebulosas envolvendo seus principais dirigentes – alguns deles estão presos e são alvos de processos a partir de uma investigação iniciada pelo FBI e pela Justiça Federal americana – a Fifa  parece mesmo disposta a mudar sua imagem na administração do suíço-italiano Gianni Infantino. A ponto de a eleição da sede do megaevento de 2026, realizada no Congresso da entidade em Moscou, ter sido aberta, com as participações de 207 federações nacionais.

Outros indícios de que a entidade internacional deseja ser mais transparente se refletem dentro e fora dos gramados são o VAR, para tentar evitar erros flagrantes de arbitragem, e o sensor na bola, que sinaliza os gols. Fora do jogo propriamente dito, a Fifa tem procurado estar mais atenta à movimentação de empresários no futebol, às negociações de atletas, ao risco de partidas com resultados arranjados e ao combate ao racismo nos estádios.

Apesar do rastro de elefantes brancos deixado por Jogos Olímpicos e Copas do Mundo, o especialista e professor de marketing esportivo João Henrique Areias lista como legados para África do Sul, Brasil e Rússia as instalações esportivas​ e as obras de infraestrutura nas cidades em que são realizados. Ele alerta, no entanto, para o fato de que, por questões políticas,  setores mais carentes desses países, talvez, tenham sido alijados de benefícios:

“Infelizmente, diante de algo como a Copa-2014 e as Olimpíadas e Paralimpíadas-2016, que dariam impulsos a projetos estacionados e benéficos para toda a população, políticos e empresários inescrupulosos se aproveitam para enriquecerem por meio da corrupção. Como vimos no Brasil”, comenta.

Herança intangível

Há quem destaque também outro tipo de legado, uma herança intangível que seria o combate a comportamentos preconceituosos. No caso da Rússia, manifestações racistas, frequentes até em jogos de seus campeonatos nacionais, foram uma preocupação da Fifa. Para Marcelo Carvalho, presidente do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, a existência desse tipo de ofensas já deveria ter motivado ação imediata e enérgica por parte do governo russo, o que jamais ocorreu:

 “O combate ao racismo poderia ser um importante legado da Copa do Mundo da Rússia, mas não parece que será. A federação e o governo russos se preocuparam apenas em manter um clima amistoso para os turistas, mas não investiram em campanhas contra a discriminação, tampouco admitiram que isso é um problema no país, o que praticamente inviabiliza o pensar ações contra o racismo para o futuro. O racismo vai continuar sendo praticado nos estádios russos e pouco ficará do esforço da Fifa e demais entidades no combate à discriminação.”

 Criador do Núcleo de Sociologia do Futebol da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Maurício Murad acha que é cedo para prever qual legado desta Copa, em especial no que diz respeito a questões comos preconceito racial e homofobia, já que no país há uma lei que proíbe manifestações homoafetivas em locais onde estejam presentes crianças, com punições como multa, deportação e até detenção.  

 “Uma Copa do Mundo de Futebol, simbolicamente, é uma espécie de abertura das portas de nossa casa, para uma certa universalidade de atitudes e comportamentos, de modos e jeitos de ser, de pensar e de agir. E como o ser humano é um ser social, que age e reage, por intermédio de suas interações recíprocas e em todas as direções, um evento dessa magnitude deixará alguma herança para a história, as culturas e a vida social das pessoas”, argumenta. “Até onde será o alcance desse impacto, só mesmo o tempo poderá nos contar. Não se pode esperar grandes resultados, mas qualquer contribuição por um pouco mais de abertura política, democrática e civilizatória, claro, será sempre bem-vinda. O futebol, é evidente, não pode solucionar nenhuma grande questão social ou política. Mas por sua repercussão simbólica poderá contribuir, mesmo que só um pouco.”

Claudio Nogueira

É jornalista, tendo iniciado carreira em 1986 no Globo, onde trabalhou até o começo de 2016. Desde março do mesmo ano, é produtor de reportagens do Sportv. Cobriu, entre outros eventos, quatro Olimpíadas, a Copa do Mundo-2014 e cinco Jogos Pan-Americanos. Como escritor, publicou, entre outras obras: “Futebol Brasil Memória”; “Dez Toques sobre Jornalismo”; “Vamos todos cantar de coração - os 100 anos do Futebol do Vascão”; e ”Esporte Paralímpico - Tornar possível o Impossível”

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