ODS 1
Com Temer, lugar de mulher é no lar
Num regime democrático, a influência que cada grupo exerce no Estado não é mero detalhe
Quando o recém-eleito primeiro ministro do Canadá, Justin Trudeau, apresentou o novo ministério no fim do ano passado, chamou logo a atenção de todo mundo a sua composição eclética: eram 15 homens e 15 mulheres, para começar. E entre eles, três sikhs, uma refugiada afegã, um cadeirante. Questionado por um jornalista sobre o porquê daquela composição tão eclética, Trudeau respondeu com simplicidade: “Porque estamos em 2015”.
No Brasil de 2016 a situação é bem diferente. Coincidência ou não, a primeira presidente mulher eleita no país é afastada do cargo por um processo de impeachment questionado legalmente por muitos especialistas, e o novo governo de Michel Temer, que tomou posse na última quinta-feira, é 100% masculino. Tal composição de governo não se via no país desde a presidência do general Ernesto Geisel, em plena ditadura militar.
“Não há democracia sem mulheres”, afirmou na manhã desta sexta-feira a representante da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman.
Num regime democrático, a influência que cada grupo exerce junto ao estado não é mero detalhe. Ao montar uma coalizão, é natural que diferentes forças políticas tenham voz, se manifestem, é do interesse da sociedade como um todo que isso ocorra
[/g1_quote]Para a antropóloga Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UNB), em artigo publicado no “Brasil Post”, com a saída da presidente Dilma Rouseff, se afirma a “misoginia como política de governo”.
“Eu nem esperava tanto como um ministério da Saúde, do Planejamento ou da Economia”, escreveu Débora. “Minha esperança resignava-se à história: ministérios de assistência ou de minorias. Mas a novidade foi ainda mais espetacular: acabou-se isso de Secretaria de Mulheres ou de Igualdade Racial. Não há mulheres nem homens negros nos ministérios. Mulheres negras não devem existir para a nova política, pois já houve gente famosa que, recentemente, confundiu uma senadora negra com a ‘tia do cafezinho’.
Coincidência ou não, exatos 128 anos depois da abolição da escravatura no Brasil (em 13 de maio de 1888, como bem lembrou o historiador Raphael Kapa), o ministério de Temer é exclusivamente formado de brancos, uma composição que tampouco se via no país pelo menos desde o governo de Fernando Henrique Cardoso. Tal composição está bem longe de representar a sociedade brasileira, na qual, de acordo com os últimos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), metade da população é formada por mulheres e, na mesma proporção, por negros e mestiços.
“Esse ministério reflete um movimento conservador que vem tomando corpo desde as eleições presidenciais”, explica o economista Marcelo Paixão, que coordenava o Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais da UFRJ e, atualmente, está trabalhando na Universidade de Austin, Texas, nos Estados Unidos.
Paixão lembra que, além de a sociedade brasileira ser composta por pelo menos 50% de mulheres, negros e mestiços, o próprio congresso nacional – apesar de predominantemente branco e masculino – tem 10% de negros e de mulheres. Ou seja, nem isso está representado no novo governo.
“E por que isso é importante? Porque num regime democrático, a influência que cada grupo exerce junto ao estado não é mero detalhe. Ao montar uma coalizão, é natural que diferentes forças políticas tenham voz, se manifestem, é do interesse da sociedade como um todo que isso ocorra”, explica o especialista.
Paixão lembra ainda que, o novo ministro da Educação e Cultura, Mendonça Filho, é do DEM, partido que, em 2009, entrou com uma ação no Supremo contra a política de cotas raciais – uma das maiores conquistas do movimento negro dos últimos anos. E ainda, afirma, na recente votação do impeachment da presidente no Congresso, vários deputados evocaram não apenas Deus e a família, mas muitos falaram abertamente contra a “ideologia de gênero”.
“Ao montar um governo homogêneo (100% branco e masculino), há uma sinalização monotendencial, de um determinado tipo de visão de mundo, que é contra a ideologia de gênero e contra as políticas afirmativas”, diz Paixão.
Para o especialista, não foi por acaso que a atual primeira-dama, Marcela Temer, foi perfilada por uma revista nacional sob o título de “Bela, recatada e do lar”. Esse parece ser o lugar das mulheres no atual governo Temer, não apenas na sua casa.
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Trabalhou como repórter especializada em ciência, saúde e meio ambiente nos jornais Estado de S. Paulo e O Globo. No último ano integrou a coordenação de internacional da GloboNews. É feminista desde os 11 anos de idade