Pescadores tiveram a vida mudada pela construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, que impactou diretamente no nível de água (Foto: Lilio Clareto / Amazônia Real)

Desmatamento no Pará afeta reprodução de peixes

Desmatamento no Pará afeta reprodução de peixes

Por Conexão UFF UFPA ODS 14ODS 15

Comunidades indígenas e ribeirinhas têm alimentação, saúde e rotina impactados pelas mudanças climáticas

Publicada em 4 de novembro de 2025 - 00:18 • Atualizada em 4 de novembro de 2025 - 10:05

Houve um tempo em que o povo Kayapó usava o rio Fresco, um dos afluentes do rio Xingu, no sudeste paraense, como principal caminho para conseguir alimento. Os peixes faziam parte da alimentação diária dos indígenas e, mesmo no verão, era possível incluir o pescado nas refeições. Hoje, em tempos de calor mais forte, os peixes chegam a ‘ferver’ na água, secam e morrem. Muitos morrem antes mesmo de se reproduzir, diminuindo significativamente a comida dos Kayapó. O relato é de Bel Payakan, indígena do povo Kayapó — uma das principais etnias afetadas pelas mudanças climáticas no Pará, causadas principalmente pelo desmatamento que atinge as florestas do estado.

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Apesar de registrar uma redução de quase 31% no desmatamento na Amazônia Legal, em 2024, esta região – composta pelo Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão –  os dados da destruição do bioma amazônico ainda são alarmantes. O Pará é um exemplo: a sua área desmatada caiu de 3.299 km2 (2023) para 2.362 km² (2024), comemorando uma redução de 937 km². Ainda assim, foi o estado que mais perdeu cobertura florestal entre agosto de 2023 e julho de 2024, de acordo com o Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (PRODES), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

Eu também espero que tenha bastante destaque para os povos indígenas na COP30; nós sofremos as principais consequências das mudanças climáticas dentro do nosso território

Bel Payakan
Indígena do povo Kayapó

Nos relatórios de desmatamento, um padrão pode ser observado: no recorte entre 2020 e 2024, os municípios paraenses de Altamira (1º), Itaituba (6º) e Uruará (13º) aparecem entre as 15 cidades que mais desmataram no ranking do INPE. Enquanto motosserras avançam na região do chamado Arco do Desmatamento – termo que se refere às áreas da Amazônia que apresentam o maior índice de área desmatada -, um efeito dominó atinge unidades de conservação, como a Floresta Nacional de Carajás e a Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, que, segundo o mesmo relatório do Instituto, foi considerada a mais desmatada da Amazônia em 2023. O Arco do Desmatamento tem uma área de cerca de 500.000 km², se estendendo do Maranhão ao sul do Pará, passando por Mato Grosso, Rondônia e Acre, englobando 256 municípios. É nessa região que ocorre o encontro entre a devastação, que avança de maneira desenfreada, e a floresta.

A Transamazônica é um dos pontos chaves para entender o avanço do desmatamento na região. Em 1970, durante o governo militar de Emílio Médici, a rodovia com 319 km de extensão foi inaugurada com a intenção de expandir as fronteiras econômicas do país e ligar diversos pontos do Brasil. A estrada vai do município de Cabedelo, na Paraíba, até o de Lábrea, no Amazonas. “A Transamazônica está aí: a pista da mina de ouro”, era o slogan da campanha pela construção da rodovia, que incentivava a exploração da região como fonte de riquezas. Outras campanhas na época da abertura da Transamazônica também se pautavam na ideia de um território que deveria ser explorado em prol do avanço econômico e da integração do país, como a frase: “para unir o Brasil, nós rasgamos o inferno verde”, publicidade da construtora Andrade Gutierrez publicada na revista Manchete em 1972.

A supressão vegetal é um dos principais fatores das mudanças climáticas que, por sua vez, desempenham um papel fundamental na alteração do ecossistema da floresta, impactando diretamente as populações tradicionais da região. Pesquisador e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Márcio Cataldi explica que o fenômeno de feedback meteorológico tem um impacto local intensificado na região amazônica por conta do aquecimento global. “A região Norte do Brasil hoje sofre muito com esse processo de feedback. Existe uma mudança climática que gera um aquecimento no planeta. Com o desmatamento e mudança da vegetação, você altera os fluxos de calor. Então, o que a gente observou é que em parte da região Norte do Brasil, principalmente nas regiões mais desmatadas, a gente tem um aquecimento além do aquecimento global, o que não era para estar acontecendo”, diz Cataldi.

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O meteorologista complementa que o planeta está 1,5°C acima da média, mas que na região amazônica esse aumento da temperatura está mais intensificado. “Muitas pessoas pensam que, por estar na área equatorial, a região é mais quente que o restante do país e por isso sente mais os efeitos das mudanças climáticas. Mas é justamente o contrário, por ser uma região equatorial, era para ser uma das regiões que menos sentissem o aquecimento do planeta. O aquecimento do planeta é muito mais sentido nas regiões polares”, complementa o docente.

Isso tem acontecido porque as regiões polares estão perdendo a capacidade de refletir parte do calor irradiado pelo sol. Nossa vida não seria possível se a Terra absorvesse 100% da radiação solar. A neve, por ser branca, tem capacidade de refletir boa parte do calor do sol. Com o aumento da água nas regiões polares, o problema tem se agravado porque, enquanto o gelo reflete 90% do calor do Sol, a água reflete apenas 20%. Então os outros 80% são absorvidos, elevando suas temperaturas, o que faz com que a água se expanda ainda mais.

Cataldi adiciona que, para além dos efeitos do aquecimento global, a região amazônica passa por outros dois processos que influenciam diretamente na mudança climática na região: o desflorestamento, que envolve a supressão vegetal,  e o desmatamento decorrente das queimadas. Os efeitos deste aumento na temperatura da região impactam diretamente as comunidades tradicionais, que passam a ter mais problemas alimentares e de saúde.

O meteorologista aponta que, para além das ondas de calor provocadas, a seca passará a ser mais constante na região, impactando diretamente o consumo de alimentos e a própria água dos rios. “Quando a gente fala de mudança climática, entendemos que ela gera um desequilíbrio no balanço hídrico. A região Norte do Brasil é a região com menor índice de saneamento básico e com um índice muito alto de contaminação dos rios por conta dos garimpos. Muitas das populações ribeirinhas acabam tendo a água contaminada por conta da baixa solubilidade nos períodos de seca, que leva ao aumento da concentração de mercúrio e dos coliformes fecais nas águas, acarretando um aumento no número de doenças nessas populações”, destaca o especialista.

Bel Payakan, indígena do povo Kayapó. em manifestação em Brasília: rios contaminados ameaçam a saúde nas aldeias do Pará (Foto: Arquivo Pessoal)
Bel Payakan, indígena do povo Kayapó. em manifestação em Brasília: rios contaminados ameaçam a saúde nas aldeias do Pará (Foto: Arquivo Pessoal)

O coordenador executivo da Federação dos Povos Indígenas do Pará (FIPA) e integrante da liderança indígena do povo Manayer, Ronaldo Manayer, aponta que os plantios têm sido impactados com as mudanças climáticas: “as estiagens nos atingem diretamente na questão da produção dos nossos alimentos, seja o arroz, o feijão, a mandioca, as batatas, o amendoim e tantas outras fontes de alimentação que nós produzimos através da terra”. Além disso, o clima quente impacta, também, nas festividades desses povos.

Manayer conta que até mesmo a festa do milho, que celebra a importância do alimento, é realizada com dificuldade. “Como vamos fazer a festa do milho se não conseguimos produzir o milho? Isso gera um impacto social e cultural dentro do território e em alguns casos até econômico”, afirma. A fala de Ronaldo vai ao encontro do que disse Bel Payakan, do povo Kayapó, que também relatou obstáculos na realização da festa Kwyrykango, a festa da mandioca, que tem a sua realização afetada por conta do atraso no plantio.

Além dos problemas de alimentação dos povos indígenas da região, a vida das comunidades tem sido impactada por questões de saúde. Bel Payakan comenta que no território do seu povo estão ocorrendo, com mais frequência, surtos de tuberculose e de viroses em decorrência do mercúrio. “Temos muito no nosso território a questão do mercúrio nos rios e acaba que há uma grande onda de tuberculose e de gripe, porque quando muda drasticamente a temperatura, a gente sempre tem a questão da gripe e das viroses”, comenta Bel.

Bel Payakan em evento da ONU sobre clima na Alemanha: no Pará, peixes morrem antes mesmo de se reproduzir, diminuindo comida dos Kayapó (Foto: Arquivo Pessoal)
Bel Payakan em evento da ONU sobre clima na Alemanha: no Pará, peixes morrem antes mesmo de se reproduzir, diminuindo comida dos Kayapó (Foto: Arquivo Pessoal)

COP 30: Existe uma solução para o futuro da Amazônia?

Iniciativas como a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) surgem como uma alternativa para lutar contra o avanço do desmatamento. A COP é um evento global que neste ano acontecerá em Belém (PA), no mês de novembro, reunindo líderes mundiais para discutir questões ambientais, e a Amazônia é uma peça central dessas conversas. Em trinta anos de COP, é a primeira vez que esta reunião acontecerá no Brasil.

O professor Carlos Nobre, cientista e pesquisador do INPE, ressalta a importância desse encontro acontecer dentro da Floresta Amazônica. Para ele, é essencial manter o foco do evento em questões do clima e valorizar a participação das populações tradicionais na preservação. Nobre argumenta que os indígenas vivem na floresta há mais de 10, 15 mil anos, sempre procurando manter a floresta em pé e, por isso,  é necessário que essas comunidades participem do processo para que a mata continue existindo.

Os ricos são os que mais emitem gases do efeito estufa, mas os que mais são afetados são os pobres. Enquanto esses eventos climáticos não atingirem de forma mais intensa os países ricos, acho que nada vai mudar

Marcio Cataldi
Meteorologista, Pesquisador e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF)

A afirmação do especialista sobre a importância de a COP 30 ser realizada dentro da floresta coincide com o pensamento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: “Uma coisa é discutir a Amazônia no Egito; outra coisa é discutir a Amazônia em Berlim; outra coisa é discutir a Amazônia em Paris. Agora, não. Nós vamos discutir a importância da Amazônia dentro da Amazônia. Vamos discutir a questão dos indígenas, vendo os indígenas”,  disse o chefe de Estado na COP 28, que aconteceu em Dubai, frase que vem repetindo desde então.

Bel Payakan, convidada para a 62ª sessão dos Órgãos Subsidiários da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC SB62), uma conferência que aconteceu na Alemanha antes da COP30, torce para que o principal tópico da conferência seja a adaptação às mudanças climáticas. “Eu também espero que tenha bastante destaque para os povos indígenas na COP30, porque a gente é que está mais preocupado com isso; nós sofremos as principais consequências das mudanças climáticas dentro do nosso território”, relatou a jovem.

Desmatamento e garimpo ilegal em território dos Kayapós: ameaças a indígenas e ribeirinhos (Foto: Thiago Dias / PR / Agência Brasil)
Desmatamento e garimpo ilegal em território dos Kayapós: ameaças a indígenas e ribeirinhos (Foto: Thiago Dias / PR / Agência Brasil)

Uma pedra no meio do caminho

Apesar do cenário esperançoso, há vários pontos de atenção dentro do estado, como o desmatamento na APA do Tapajós. Localizada em Itaituba, um dos municípios que compõem o Arco do Desmatamento, liderou o ranking de unidades de conservação mais desmatadas em 2023, apesar de ser uma unidade de conservação. No entanto, a barreira de fiscalização instalada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) na APA reduziu em 41% os alertas de desmatamento nesta região.

Segundo o monitoramento de  áreas desmatadas feito pelo projeto PRODES, do INPE, o Pará reduziu a sua área desmatada em até 55% de 2021 a 2024, a maior queda registrada nos últimos anos. O Plano Estadual Amazônia Agora, idealizado em prol do desenvolvimento sustentável do Pará, teve influência direta nesses números. floresta e da Ronaldo Amanayé vê as ações do governador Helder Barbalho (MDB) como ações de um governo que, “felizmente, ou infelizmente, é um governo para todos”. Segundo ele, o governo do Pará tem planos que valorizam o empreendedorismo, mas que levam em consideração a biodiversidade e pretendem manter a floresta viva. “Mas, por outro lado, ele apoia, por exemplo, o derrocamento do Pedral do Lourenço para fazer o fluxo de importação de grãos e de outras atividades”.

O derrocamento do Pedral do Lourenço, localizado em Itupiranga, é um projeto para retirar rochas submersas da hidrovia do rio Tocantins, para viabilizar a navegação na água em todas as épocas do ano. Segundo uma nota publicada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens, o temor dos moradores das proximidades é que a retirada das pedras impacte a subsistência das comunidades, fazendo com que haja diminuição do número de peixes, contaminação de água, e não haja reparação de danos.

O pesquisador Márcio Cataldi disse estar pessimista em relação aos possíveis resultados da COP30. Ele aponta que, apesar da importância do evento, as ideias debatidas raramente são implementadas por irem contra o interesse das grandes empresas. Além disso, o professor destaca que a justiça climática precisa ser colocada em prática o mais rapidamente possível. “Os ricos são os que mais emitem gases do efeito estufa, mas os que mais são afetados são os pobres. A gente teve no ano passado, por exemplo, o furacão Milton (na Flórida), que chegou à escala cinco no oceano e à escala três no continente, resultando em algumas mortes. Ao mesmo tempo, temos ciclones de categoria dois que passam na África e matam milhares de pessoas. Então, enquanto esses eventos climáticos não atingirem de forma mais intensa os países ricos, acho que nada vai mudar”, pontua o meteorologista.

Reportagem de Clarice Lopes Viana, Kayky Resende, Marcus Gralha, Maria Eduarda de Andrade (UFF), Ryan Reis, Felipe Mota, Gustavo Vilhena, Joyce Nunes, e Samara Teixeira (UFPA)

Conexão UFF UFPA

O Conexão UFF – UFPA é um projeto que reúne alunos dos cursos de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense e da Universidade Federal do Pará para a produção de reportagens especiais, sob a coordenação das jornalistas e professoras Adriana Barsotti (UFF) e Elaide Martins (UFPA).

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