Pessoas trans: desrespeito à identidade de gênero mesmo após a morte

A família de Amanda com sua foto e os novos documentos: dignidade póstuma após transfeminicídio (Foto: Carolina Calháu / Defensoria Pública RJ)

“Não há segurança jurídica que garanta a dignidade póstuma para pessoas trans”, diz ativista dos direitos LGBTQIA+

Por Ana Carolina Ferreira | ODS 10 • Publicada em 10 de junho de 2024 - 09:33 • Atualizada em 17 de junho de 2024 - 09:54

A família de Amanda com sua foto e os novos documentos: dignidade póstuma após transfeminicídio (Foto: Carolina Calháu / Defensoria Pública RJ)

Amanda de Souza Soares, também conhecida como Mandy Gin Drag, era uma mulher trans de 23 anos, cantora de sertanejo e passista de escola de samba. Ela se preparava para desfilar pela Acadêmicos do Cubango no carnaval deste ano quando teve seus sonhos interrompidos: foi encontrada morta num terreno baldio perto de casa, em São Gonçalo, na madrugada do dia 1º de fevereiro. Era seu primeiro encontro com Marlon Nascimento da Silva, que confessou o crime após ser detido. 

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Para Tiago Souza, amigo de infância da cantora, “o crime aconteceu porque ela era uma mulher trans; ele disse que estava com medo de descobrirem a relação deles, que ela contasse para as pessoas”. Amanda, além de vítima do transfeminicídio, morreu uma segunda vez. Após o falecimento, o direito de ter o nome registrado na certidão de óbito foi negado. O cartório não emitiu o atestado com o nome social, devido a uma exigência legal — apesar do nome social já constar na carteira de identidade, em vida, ela não havia realizado a retificação na certidão de nascimento devido à burocracia e custo, e foi sepultada com nome civil masculino. 

Agora ela pode descansar em paz e eu posso viver o luto, porque eu não consegui sentir essa dor. Precisávamos passar por aquilo para que ganhasse visibilidade, para não ser só mais um caso e cair no esquecimento

Rhayanny Soares
Irmã de Amanda

“Mataram Amanda, enterraram Yago”, diz Tiago, que acompanhou a luta da família pela requalificação pós-morte. Ao pensar na injustiça, lembra a escolha do nome feminino e tudo que acompanhou a transição de gênero: “Ela escolheu Amanda porque significa digna de ser amada. Amanda era uma pessoa vulnerável, que não abaixava a cabeça para a sociedade e passava por cima de tudo para lutar pelos direitos da comunidade. Para os familiares e amigos, foi muito triste ter que lidar, ainda, com a morte de outra pessoa que não Amanda. Não podia ficar assim”.

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Enquanto lidavam com o luto pela perda brutal, a família reuniu forças para acionar a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, com o apoio do Movimento de Mulheres de São Gonçalo (MMSG) — organização que prestou atendimento psicológico e acompanhou a família no processo para acionar o sistema de garantia de direitos. No Dia Internacional da Mulher, 8 de março, o juiz André Britto assinou a sentença que possibilitou a mudança do nome na certidão de nascimento e no atestado de óbito, primeira requalificação pós-morte registrada de São Gonçalo.  

Amanda Soares em evento em Niterói: corpo de cantora e passista foi sepultada com nome de Yago (Foto: Álbum de família)
Amanda Soares em evento em Niterói: corpo de cantora e passista foi sepultada com nome de Yago (Foto: Álbum de família)

Marisa Chaves, fundadora e gestora de projetos do MMSG, acompanhou uma família fragilizada pelo luto, mas também um exemplo de seio familiar acolhedor. “Muitas famílias pensam que, quando o ente assume sua identidade, é como se a pessoa estivesse em conflito com o status quo heteronormativo da sociedade, e, a partir daí, deixa de ser merecedor da convivência familiar. Fiquei impressionada o quanto a família de Amanda é um exemplo para tantas outras, que possuem pessoas do segmento LGBTQI+ e violentam, discriminam, têm preconceito e afastam”, conta. 

Para Marisa, o juiz teve uma atuação ímpar ao ser sensível e empático com o sofrimento da família, o que ela considera não ser comum a todos do meio jurídico. “Ele disse a Silvia, mãe de Amanda: ‘se todas as mães entendessem que as pessoas devem ser respeitada pelo que são, a sociedade teria menos violência, ódio, guerra, e mais amor e empatia’. Então ela se sentiu muita acolhida. Saiu com sentimento de dever cumprido com a memória que ela sempre teve da filha, querendo dar dignidade no momento do sepultamento. Isso foi dar dignidade, permitir esse rito de passagem — sabendo que nada reduzirá a imensa dor e o vazio da família”. 

A aproximação do movimento com a família foi tanta que Rhayanny Soares, irmã de Amanda, foi contratada para trabalhar na área de Recursos Humanos do MMSG. Somente após a requalificação e o fim da luta pela garantia da dignidade e identidade da irmã que ela conseguiu viver o luto. “Agora ela pode descansar em paz e eu posso viver o luto, porque eu não consegui sentir essa dor. Precisávamos passar por aquilo para que ganhasse visibilidade, para não ser só mais um caso e cair no esquecimento”, desabafa.

Silvia, mãe de Amanda, com os documentos da filha retificados: dignidade póstuma (Foto: Carolina Calháu / Defensoria Pública RJ)
Silvia, mãe de Amanda, com os documentos da filha retificados: dignidade póstuma (Foto: Carolina Calháu / Defensoria Pública RJ)

Falta de leis sobre dignidade póstuma dificulta retificação 

O apoio da família de Amanda, elogiado também pelo juiz responsável pela sentença de requalificação, nem sempre é uma realidade. Segundo a presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Bruna Benevides, a dignidade póstuma para a população no Brasil é uma questão invisibilizada: “Temos a impressão de que o número de casos de violação da identidade de gênero é maior do que conseguimos mapear. Isso porque ainda há muita incompreensão, rompimento familiar, falta de acolhimento”. 

Bruna analisa que há dois cenários mais recorrentes no pós-morte: ou inexiste amparo familiar e a pessoa falecida passa por ritos fúnebres a partir da mobilização de amigos e conhecidos, ou é submetida a situações que desrespeitam o gênero ao qual se identificava — não apenas devido às complicações legais e burocráticas, como no caso de Amanda, mas pela intolerância.

Foi o que a internet registrou quando, em 2021, circularam fotos nas redes sociais do velório de Alana Azevedo, uma mulher trans da cidade de Aracaju (SE), que foi enterrada pela família como um homem — vestida de terno e gravata e com um bigode falso. Amigos divulgaram a imagem com mensagens de revolta e movimentos voltados para a garantia dos direitos da comunidade se mobilizaram. Em resposta, a então vereadora Linda Brasil (PSOL) protocolou um Projeto de Lei (PL), que visava garantir o respeito póstumo da identidade de gênero na capital sergipana  —  a proposta, entretanto, foi rejeitada em 2023.

“Não há segurança jurídica que garanta a dignidade para pessoas trans, nem em vida e muito menos no pós-morte. Um dos grandes desafios é pensar em medidas de assegurar o desejo da pessoa, que deve ser respeitado acima de qualquer coisa, independente de haver um documento que afirme suas vontades póstumas lavrado em cartório”, relata Bruna. 

Existe uma distância entre o que a lei determina e o seu efetivo cumprimento — ela se tornar acessível para os sujeitos do direito para o qual foi pensada. São necessários diversos esforços para que esse direito seja amplamente conhecido, e que familiares e amigos possam, portanto, acionar esse dispositivo legal e assegurar a dignidade póstuma

Bruna Benevides
Presidente da Antra

A pedido da Antra, um projeto de lei pela deputada federal Duda Salabert foi protocolado este ano e atualmente tramita na Câmara dos Deputados. O PL 56/2024 estabelece que, quem não retificou o nome e gênero no registro civil, pode ter o nome social em cerimônias, lápides, jazigos e documentos a partir de requerimento realizado pela família, companheiro(a) ou qualquer um com testamento da vontade expressa do falecido. Entretanto, mesmo com movimentações e pressão política de entidades pelos direitos LGBTQIAP+, o cenário legislativo na garantia deste direito não é promissor. Segundo levantamento realizado pela revista Piauí em 2021, de todas as capitais do Brasil, apenas São Paulo, Brasília e Palmas têm leis específicas sobre reconhecimento da identidade social em cerimônias de velório, sepultamento e cremação. 

Isso não significa que não há articulações de parlamentares por uma legislação voltada para a comunidade; PLs para garantir os direitos de pessoas trans e travestis após a morte tramitam lentamente. Na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, há dois projetos de lei – um do deputado Carlos Minc, do PSB, (PL 3357/2010) e outra de Renata Souza, do PSOL (PL 1287/2019) – , com dispositivos para assegurar o respeito à identidade de gênero. Os projetos, ainda em tramitação, reconhecem como direito o uso do nome social de pessoas trans nas lápides dos túmulos, jazigos e atestados de óbito, mesmo quando distinto daquele constante dos documentos de identidade civil, e também a possibilidade de requalificação pós-morte. 

Ainda que sejam aprovadas, a mobilização pela garantia não cessa. “Existe uma distância entre o que a lei determina e o seu efetivo cumprimento — ela se tornar acessível para os sujeitos do direito para o qual foi pensada. São necessários diversos esforços para que esse direito seja amplamente conhecido, e que familiares e amigos possam, portanto, acionar esse dispositivo legal e assegurar a dignidade póstuma”, diz Bruna Benevides.  

Apagamento póstumo da identidade de corpos trans no Estado do Rio

A reportagem do #Colabora conseguiu reunir três resumos de casos do Rio de Janeiro a partir de dossiê da Antra sobre assassinatos e violências contra travestis e transexuais do Brasil em 2021, e de entrevistas com o juiz André Britto — responsável pela retificação de Amanda de Souza — e com a defensora pública Mirela Assad, num breve memorial pela identidade destas pessoas. 

(2018) Shélida Ayana – Rio de Janeiro/ RJ

Shélida Ayana, 28 anos, era professora da rede municipal de ensino, e se dedicava ao ativismo pelos direitos da população LGBT+. Faleceu vítima de complicações relacionadas ao mau funcionamento dos rins. Segundo relatos de pessoas presentes durante o velório, mesmo documentação retificada formalmente, familiares insistiram em chamar pelo nome de alguém que não existia, e que tampouco era a pessoa para as quais estavam ali reunidos para uma última homenagem. Por isso, as ativistas presentes puxaram um coro a fim de chamar atenção para seu nome, “Shélida, Shélida, Shélida”, constrangendo aquelas pessoas que insistiam em ignorar a identidade. Hoje, dá nome a um instituto que realiza ações de combate à LGBTIfobia e garantia dos direitos humanos no Rio de Janeiro.

(2023) Samantha Ariely – Valença/ RJ

Samantha Ariely era uma jovem preta de 18 anos do interior do Rio de Janeiro, município de Valença. Procurou a Defensoria Pública (DPRJ) num dos mutirões realizados em parceria com a Justiça Itinerante Maré-Manguinhos-Jacarezinho, para fazer a requalificação civil. “Samantha entrou em contato com o Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis) solicitando a inscrição dela. Mandou mensagem muito feliz, porque tinha acabado de fazer 18 anos e estava esperando a maioridade para iniciar o processo”, explica a defensora pública Mirella Assad.

Estava tudo pronto para que a audiência de Samantha fosse realizada no dia do mutirão, mas ela não apareceu. Semanas depois, a DPRJ recebeu o contato da mãe, informando que ela havia tirado a própria vida no Dia das Mães, e foi sepultada com nome registral masculino e gênero masculino. “Ela teve uma existência feminina, ela usou um nome feminino. Isso tudo foi apagado. A maior forma de violência contra um ser humano não é matar o seu corpo, é matar sua existência, e ali uma existência trans foi apagada, simplesmente extirpada da sociedade”, afirma a defensora. A retificação pós-morte foi concluída pela mãe de Samantha, e numa ação judicial inédita, se tornou a primeira do país. 

(2023) Demétrio Campos – Cabo Frio/ RJ 

Demétrio nasceu em Cabo Frio, na Região dos Lagos. Era um jovem negro quilombola de 23 anos que também tirou a própria vida em 2020, após sofrer as consequências da violência, agressões físicas e luta contra a depressão. Foi sua mãe, Ivoni Campos, que realizou seu maior sonho: após conhecer o caso de Samantha, procurou imediatamente a defensoria para fazer a requalificação pós-morte do filho. Demétrio se tornou o primeiro homem trans e a segunda pessoa no Brasil a receber retificação de nome após a morte. Hoje, dá nome a ambulatório para travestis e transexuais em Cabo Frio; coletivo que acolhe a população e cursinho popular em São Paulo voltado para a comunidade. Após a morte do filho, Ivoni se tornou ativista na luta antirracista e defensora das causas LGBTQIAP+.

Assim como Amanda, estes corpos devem ser respeitados e lembrados por quem eram. Como conta seu melhor amigo Tiago Souza, “o que Amanda gostaria que fosse lembrado dela, com certeza seriam as partes positivas, alegria, generosidade, humildade e amor que ela transmitia. Independente de cor, raça, gênero, abraçava qualquer pessoa”.

Passos para requalificação civil pós-morte 

A requalificação civil após a morte pode ser feita a partir da iniciativa de algum parente, e o primeiro passo é reunir os registros necessários. A documentação é a mesma exigida em vida, porém, deve ser apresentada com alguma prova de que a pessoa utilizava o nome social e se autodeclarava com o gênero, como publicações em rede sociais e documentos com uso de nome social. 

Os documentos são: 

  • Registro Geral (RG);
  • Cadastro de Pessoa Física (CPF);
  • Comprovante de residência;
  • Certidão de casamento (se for o caso); 
  • Certidão de nascimento; 
  • Certidão de óbito;
  • Registros que comprovam autodeclaração de nome e gênero.

Uma vez com a documentação necessária, é preciso apresentá-las à Defensoria Pública do Estado, instituição que promove assistência integral e gratuita, para iniciar o processo. Vale lembrar que, caso a pessoa trans falecida tenha sofrido rejeição familiar, a legitimidade para propositura da ação pode ser estendida a alguém que não seja um parente, como parceiro, amigo ou conhecido. No Rio de Janeiro, assim como Amanda, Samantha e Demétrio, o atendimento é realizado pelo Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis) da DPRJ, que atua no acesso à justiça das pessoas LGBT+. 

Contato do Nudversis – DPRJ:

Endereço: Avenida Rio Branco, 147, 12° Andar, Centro, Rio de Janeiro

Telefone: (21) 38124156

Email: nudiversis@defensoria.rj.def.br

 

Ana Carolina Ferreira

Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.

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