Tem gentileza no meio do Caminho

A brasileira Nathália, de Presidente Prudente, foi acompanhada por um cachorro por dezenas de quilômetros até ele ser encontrado pela dona

As histórias de colaboração e desprendimento que marcam a jornada dos peregrinos

Por Giovanni Faria | ODS 15Vida Sustentável • Publicada em 29 de julho de 2016 - 09:55 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:45

A brasileira Nathália, de Presidente Prudente, foi acompanhada por um cachorro por dezenas de quilômetros até ele ser encontrado pela dona
Dominique, um jovem da República Tcheca, saiu da França com destino a Santiago, num percurso de mais de mil quilômetros, descalço
Dominique, um jovem da República Tcheca, saiu da França com destino a Santiago, num percurso de mais de mil quilômetros, descalço

As botas, os bastões, as mochilas, as setas amarelas…Todos são símbolos marcantes do Caminho de Santiago de Compostela e são vistos a cada passo do peregrino. Já falamos um pouco sobre isso nos textos anteriores. Mas nada marca mais profundamente essa travessia de cerca de 900 quilômetros do que um valor contido em cada gesto do Caminho – a gentileza.

Bem que se poderia chamar de Caminho de Santiago das Gentilezas. Gestos e ações minúsculos, mas bem escassos nos dias atuais, multiplicam-se aos milhares no dia a dia de longas e penosas caminhadas.

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Uma mulher torceu o pé e o marido alugou uma bicicleta especial, transportando-a num bagageiro na frente. Vale qualquer esforço para não abandonar o Caminho.

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A freira alemã Elisabeth estende a bandeja com limonada e um pedaço de torta salgada para o peregrino irlandês Jimmy, que praticamente desaba de exaustão no albergue de Carrión de los Condes – isso segundos antes de, ela mesma, retirar de suas costas a pesada mochila e a transportar até o segundo andar.

– Em cada parte encontramos um anjo – resume Jimmy, torrado pelo sol que arde todos os dias das 6h30m às 22h.

Em Hospital e Puente de Órbigos, a hospitaleira (voluntária de albergue) Katarina, da Hungria, faz o gesto impensável: ajoelha-se a seus pés e retira as botas, o primeiro e mais aguardado alívio de todo peregrino, mais desejado que o próprio banho.

– Sou uma peregrina e sei que esse pequeno gesto representa muito – diz Katarina, que ainda conta com a ajuda da filha Rebeca, de 10 anos, responsável por dar àquele que chega um copo de água e um coração em papel com a inscrição “bem-vindo”.

Basta que um peregrino sente à beira da estrada para que os que passam perguntem se está tudo bem e se necessita de algo, especialmente água.

– Levei um tombo, depois de escorregar numa pedra, e, em minutos me vi cercado de pessoas cuidando de mim – diz Yole, americana de Boston.

Em Astorga, última cidade grande antes de Santiago, alunos do curso de fisioterapia e podologia da Universidade San Miguel, dão “plantão” gratuito nas férias no albergue paroquial.

– Atendemos a mais de 40 pessoas por dia, a maioria com bolhas nos pés e dores nas costas. Ao serem bem cuidados, alguns pacientes chegam a chorar de alegria – conta o aluno Alberto.

A francesa Anne explica que viu um grupo de italianos levar, nos ombros, um colega que torcera o pé próximo a León.

– Foram uns seis ou sete quilômetros de um esforço fora do comum.

A brasileira Nathália, de Presidente Prudente, foi acompanhada por um cachorro por dezenas de quilômetros até ele ser encontrado pela dona

A brasileira Gene diz que se emocionou com um casal de ingleses. A mulher torceu o pé e o marido alugou uma bicicleta especial, transportando-a num bagageiro na frente.

– Vale qualquer esforço para não abandonar o Caminho – diz Gene.

Por falar em esforço, que tal a empreitada de Dominique, um jovem da República Tcheca, ao sair da França com destino a Santiago, num percurso de mais de mil quilômetros, simplesmente… descalço. Por que isso?

– Faço com prazer. Sinto-me bem sem botas.
Mas, e o calor?
– A gente aprende a conviver com ele e a superá-lo sem dor – responde Dominique, com naturalidade, à pergunta feita por todos que passam por ele.

A brasileira Nathália, de Presidente Prudente, viveu uma experiência única: passou a ser acompanhada por um cachorro perdido. Dezenas de quilômetros à frente, e dois dias depois, a dona o reencontrou. Nathália e o cachorro se despediram num gesto de aperto de mãos e patas.

– Chorei muito quando nos despedimos.

Duas cenas fecham o rol das gentilezas. Em Boadilla, peregrinos montam uma escada humana de dois degraus para retirar um gato que não conseguia descer de uma árvore.

Cem quilômetros depois, um ciclista quase cai da bicicleta ao se desviar de algo na pista de terra. Era uma espécie de caracol. Desceu, apanhou o bicho nas mãos, pôs na beira da estrada para que corresse o risco de ser atropelado e seguiu viagem.

Até terça-feira. E Buen Camino!

Giovanni Faria

É jornalista e trabalhou por 33 anos no jornal O Globo e nas rádios CBN e Globo. É professor da PUC-Rio e da Facha. Também é formado em Direito. Desde que levou um "susto" no coração há quatro anos, adotou a caminhada como atividade diária. Nasceu em Friburgo, mora em Niterói, vive em Búzios, mas desde 2014 não tira o Caminho de Santiago de Compostela da cabeça nem dos pés. A mulher, Christiane, e o filho Thomás já cruzaram a Espanha a pé também - agora só faltam as filhas Victória e Catarina.

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3 comentários “Tem gentileza no meio do Caminho

  1. Vera Maria Neumann disse:

    Fiz o Caminho duas vezes, em 2000 com 60 anos fiz o caminho francês, foi uma experiência única e inesquecível, logo no primeiro dia ao atravessar os Pirineus me perdi no meio de uma tempestade e tive que passar a noite próxima ao março de fronteira, sosinha e só com o poncho de chuva pra me proteger. Jamais vou esquecer. Alguns anos depois fiz o Caminho Português sem maiores emoções, até porque não fui sosinha .Acredito que sosinha a gente sorve cada momento como se fosse o último.

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