No guichê das habilidades

A poeira das horas: numa repartição pública o tempo corre diferente (Foto: Jens Schierenbeck/AFP)

Guia prático para lidar com funcionários públicos de má vontade e burocracia

Por Leo Aversa | ODS 15Vida Sustentável • Publicada em 26 de julho de 2017 - 08:35 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:37

A poeira das horas: numa repartição pública o tempo corre diferente (Foto: Jens Schierenbeck/AFP)
A poeira das horas: numa repartição pública o tempo corre diferente (Foto: Jens Schierenbeck/AFP)
A poeira das horas: numa repartição pública o tempo corre diferente (Foto: Jens Schierenbeck/AFP)

Tenho poucas habilidades e quase todas inúteis, coisas como decorar jingles publicitários, prever fracassos políticos e criar constrangimentos sociais. Talvez, um dia, esses talentos ganhem algum tipo de reconhecimento, afinal a esperança leviana também faz parte do grupo. Há, no entanto, uma habilidade que cultivo com todo cuidado e, essa sim, se mostrou muito útil.

Sou mestre em lidar com repartições burocráticas e funcionários públicos de má vontade.

Apesar do talento nato, foi preciso tempo e prática. Quando você é novo, acha que uma repartição pública é como um lugar normal, onde você pede o que precisa, e o funcionário atende da melhor maneira possível. Coisa de ingênuo, não é à toa que os jovens são os que mais sofrem nesses lugares. Brigam quando são mal atendidos, se exasperam com a demora, exigem seus direitos em altos brados. Só o tempo cura as ilusões juvenis.

Já eu, desde cedo, soube que o guichê era mais embaixo.

Com o tempo, fui aprimorando minha habilidade. Minha formação básica foi no saudoso Detran da Francisco Bicalho. Depois, fui procurar os melhores cursos no exterior: mestrado nas repartições públicas da antiga União Soviética, doutorado no Ministério da Informação no Irã, e pós doc no Olimpo da categoria, a Coreia do Norte.

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É claro que não discutir é sensato; quando você estiver tirando um documento, e o funcionário lhe pedir a certidão de nascimento do seu bisavô paterno assinada pelo seu pai, não pergunte o porquê ou diga que a exigência é absurda. Apenas balance a cabeça pensativo e diga que você é muito confuso

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Basta não discutir com o funcionário, dirão os principiantes. Não, inocentes, não é só isso. Com três vias e firma reconhecida, tem muito mais. A primeira medida é se fingir de bobo. Não tanto a ponto de babar na camisa, o que poderia ser tomado como sarcasmo, mas mostrar-se um pouco limitado, como se a sua mente não alcançasse todo o valor sublime daquela burocracia aparentemente inútil. Dessa maneira, o servidor vai se sentir um ser superior, um sacerdote guiando o selvagem nos sofisticados labirintos dos processos, recursos e expedientes. Esse sentimento de superioridade vai facilitar muito a rapidez do seu trâmite. É claro que não discutir é sensato; quando você estiver tirando um documento, e o funcionário lhe pedir a certidão de nascimento do seu bisavô paterno assinada pelo seu pai, não pergunte o porquê ou diga que a exigência é absurda. Apenas balance a cabeça pensativo e diga que você é muito confuso e não lembra onde guardou tal documento, mas que vai se esforçar ao máximo para corrigir a falha. O olhar condescendente do funcionário é seu salvo conduto.

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Se ao chegar a sua vez, o atendente do guichê começar a contar as férias para o colega, apenas fique quieto, recite o mantra om baixinho e espere. Se perturbar a ordem do espaço-tempo ali estabelecida, o seu trâmite vai para o buraco negro e nem Stephen Hawking o tira de lá.

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O importante é nunca esquecer que o instante de glória de um burocrata, o seu nirvana, é flagrar uma ausência de carimbo, a falta de uma assinatura qualquer detalhe que inviabilize todo o processo. Ele vive pra esse momento, é a sua mega-sena pessoal. Enquanto não o conseguir, não o deixará em paz. Um bom truque é esconder um documento essencial no seu processo e deixar o seu algoz exultar pelo tempo necessário, desfrutar do seu sofrimento e, só após esse alívio na sua alma, entregá-lo, não se esquecendo de dizer que você mais uma vez se confundiu, que é muito desorganizado etc.

A noção de tempo também é muito importante. Numa repartição pública, o tempo corre diferente, os ponteiros dos minutos viram os de horas e os de horas se tornam calendários. O tempo é relativo, já ensinava Albert Einstein. Quanto mais cedo você se acostumar com essa verdade, melhor, pois qualquer sinal de impaciência pode ser interpretado como provocação pelos zelosos funcionários. Encare a demora como uma espécie de meditação zen e nunca, em hipótese alguma, perturbe o andamento da repartição. Se ao chegar a sua vez, o atendente do guichê começar a contar as férias para o colega, apenas fique quieto, recite o mantra om baixinho e espere. Se perturbar a ordem do espaço-tempo ali estabelecida, o seu trâmite vai para o buraco negro e nem Stephen Hawking o tira de lá.

Poderia continuar eternamente, mas faltaria espaço na web para todo o meu conhecimento no assunto.

Bom mesmo será o dia em que esse talento para a burocracia ser tornar mais uma das habilidades inúteis.

Como a esperança leviana.

 

Leo Aversa

Leo Aversa fotografa profissionalmente desde 1988, tendo ganho alguns prêmios e perdido vários outros. É formado em jornalismo pela ECO/UFRJ mas não faz ideia de onde guardou o diploma. Sua especialidade em fotografia é o retrato, onde pode exercer seu particular talento como domador de leões e encantador de serpentes, mas também gosta de fotografar viagens, especialmente lugares exóticos e perigosos como Somália, Coreia do Norte e Beto Carrero World. É tricolor, hipocondríaco e pai do Martín.

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Um comentário em “No guichê das habilidades

  1. Ana Paula disse:

    Estou desde dezembro sofrendo com burocratas do Santander e da Tim, seja atendimento presencial, seja telefônico. Demandas que envolvem dinheiro mas o tratamento é tão absurdo e incoerente, só me dão respostas padronizadas. Resultado: ingressar eu com ações na justiça pq diretamente eles não resolvem nada!!!

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