A maré baixa da pesca brasileira

Cortes no orçamento do setor acabam com o seguro-defeso para pescadores, ameaçando preservação de espécies; no Sul da Bahia, há denúncias de atividade predatória

Por Itala Maduell | ODS 15Vida Sustentável • Publicada em 5 de janeiro de 2016 - 08:00 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:51

Pescadores puxam a rede para a as areias de Santo André, na Bahia
Pescador na praia de Santo André, no Sul da Bahia
Pescador na praia de Santo André, no Sul da Bahia

“É a maré”, lamentou um dos 12 homens que, depois de horas no mar, puxavam a rede para a Praia de Santo André, Sul da Bahia (aquela em que ficou a seleção alemã dos 7 a 1), na manhã da última terça-feira de 2015.
A maré baixa a que se referia era o fato de que, apesar de tantos homens empenhados e do mar imenso, o produto da pesca foi uma tainha, uma caratinga e meia-dúzia de peixes-galo e sardinhas, nada de valor comercial. No dia anterior, no mesmo barco – tão pequeno e lotado que lembra um bote de refugiados –, tinham conseguido vender algum peixe e um punhado de camarões para turistas na praia.
De acordo com o 1º Anuário de Pesca e Aquicultura, de 2014, a atividade pesqueira brasileira gera um PIB nacional de R$ 5 bilhões, envolve 800 mil profissionais e gera 3,5 milhões de empregos diretos e indiretos. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) aponta o Brasil como um dos potenciais maiores produtores de pescado do mundo, projetando uma estimativa de 20 milhões de toneladas para 2030.
Com uma costa de 8,4 mil quilômetros, e cerca de 12% da água doce do planeta, as condições naturais são propícias. Hoje o país é o 17º do mundo na produção de pescados em cativeiro e a 19º na produção total de pescados. Porém, pescadores e aquicultores artesanais continuam excluídos desse processo, como já alertou o Subcomitê de Comércio Pesqueiro da FAO.
A agência da ONU recomenda a todos os países o estímulo à inclusão local, global e, especialmente, regional dos pescadores e aquicultores artesanais, que enfrentam a falta de poder de negociação e de acesso ao crédito e ao mercado, e de infraestrutura de comercialização adequada – caso dos brasileiros. Na prática, isso se obteria dando aos pequenos produtores acesso a financiamento, seguros e informações sobre mercados; investindo em infraestrutura; fortalecendo as organizações de produtores e de comerciantes de pequena escala; e garantindo que as políticas nacionais não negligenciem ou enfraqueçam o setor.
Esta era a razão de existir o Ministério da Pesca e Aquicultura, criado pelo presidente Lula em 2003. Sua principal bandeira era alcançar a meta indicada pela ONU, de 20 milhões de toneladas para 2030. Mas, com custo mensal de cerca de meio milhão de reais, foi extinto em outubro de 2015, entre cortes na carne governamental para tentar estancar a sangria da crise política e econômica. Na outra ponta da corda, os pescadores tiveram suspenso o pagamento do seguro-defeso, que garantia seu sustento – e a reprodução das espécies.
O ano não foi mesmo bom para os pequenos produtores, que veem minguar o seu ganha-pão, cada vez mais disputado. Como no ditado “Farinha pouca, meu pirão primeiro”, a Associação Baiana de Pesca Esportiva (Abape) organizou um abaixo-assinado encaminhado aos governos local e federal denunciando a pesca predatória no extremo sul da Bahia:
“Presencia-se, diariamente, pescadores do Espírito Santo e Minas Gerais, das cidades de São Mateus, Nova Venécia, Boa Esperança, Jaguaré, Sooretama, São Gabriel da Palha, Guaraná, Linhares, Colatina, Aracruz, Vitória, Vila Velha, Guarapari, Cachoeiro de Itapemirim, Governador Valadares, Teófilo Otoni, Nanuque e Serra dos Aimorés saírem dos pontos de pesca em Alcobaça, Nova Viçosa, Caravelas e Mucuri com as embarcações abarrotadas de robalos peva/flecha, pescada amarela, filhotes de dentão, mero e outras espécies, em sua maioria capturados em tamanhos fora da medida mínima para abate” (previstas pelas leis federais 9.605, de 1998; e 11.959, de 2009).
A situação piorou depois do desastre em Mariana (MG) e a contaminação do Rio Doce, em novembro, que desembocou no litoral do Espírito Santo e da Bahia. “Acredita-se que o problema se agravará com o desastre ambiental no Rio Doce, pois ficou impraticável a pesca amadora naquele local, bem como em toda região estuarina capixaba atingida. Tem-se como certa a ida em massa desses pescadores para o extremo sul baiano, o que por si só terá uma influência drástica na redução dos estoques pesqueiros naquele local”, lamenta o presidente da associação, Luiz Mendes Ferreira Filho, que lembra a responsabilidade de fiscalização do poder público para o respeito ao defeso e aos limites de captura e transporte. A queixa era endereçada ao Ministério da Pesca e Aquicultura, que não receberá a mensagem porque não existe mais.

Pescadores puxam a rede para a as areias de Santo André, na Bahia
Pescadores puxam a rede para a as areias de Santo André, na Bahia

Representantes de pescadores de vários estados foram a Brasília em audiência pública na comissão mista que avalia a Medida Provisória da Reforma Ministerial. Eles lamentaram o fim do ministério e, principalmente, a suspensão do seguro-defeso. “O prejuízo para o meio ambiente é incalculável. Não vai ter defeso. O pescador não tem noção real do que está acontecendo”, lamentou na ocasião o presidente da Federação de Pescadores do Piauí, Raimundo de Souza.
O Ministério da Pesca era questionado desde sua criação, visto como balcão político. O primeiro titular da pasta, José Fritsch, ficou três anos (2003-2006) no cargo, sendo substituído por Altemir Gregolin (2006-2010). Na gestão de Dilma Rousseff, foram cinco os ministros. A ex-senadora petista Ideli Salvatti teve passagem meteórica, de 1º de janeiro a 10 de junho de 2011. O sucessor, o deputado federal petista Luiz Sérgio, ficou um ano (2011-12). O senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), de 2012 a 2014. Seu suplente no Senado, o político e radialista evangélico Eduardo Lopes, também ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, foi seu sucessor igualmente no ministério, até 1º de janeiro de 2015, quando tomou posse Helder Barbalho (PMDB-PA), ex-vereador e prefeito de Ananindeua e filho de Jader Barbalho, que com a extinção do cargo se tornou ministro-chefe da Secretaria Nacional dos Portos. Quanto às atribuições da pasta da Pesca, foram transferidas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, sob o comando da senadora Katia Abreu (PMDB-TO), da bancada ruralista do Congresso. Ou seja: tem boi na linha da pesca.

Itala Maduell

Jornalista, doutora em Comunicação e professora de jornalismo na PUC-Rio

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