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Veja o que já enviamosA sociedade que vai – de carro – em direção ao precipício
Censo afere aumento do uso de automóveis para o ir e vir do trabalho no país da COP30, consumação da tragédia cheia de atravessamentos
Quase um século atrás, uma sociedade escolheu errar. Aceitou que seus governantes apostassem no equívoco insustentável e, de lá para cá (faz tempo), dobrou a aposta teimosamente, até mergulhar num abismo aparentemente sem saída. Deu numa tragédia, ainda por cima, vaidosa, que se exibe vigorosa, barulhenta, extensa, dia sim dia também, de manhã e no fim da tarde – ou a qualquer momento, a depender do imprevisto mais prosaico. A ponto de comandar o funcionamento de cidades inteiras.
Leu essa? A rota da incompetência
Deu no Censo: 32% dos brasileiros que precisam se deslocar pelo menos três vezes por semana para o local de trabalho utilizam o automóvel. O número (praticamente um vivente em cada três, para facilitar a vida do pessoal de Humanas) superou com folga os usuários de ônibus, 21,4%. Metrô e trem, verdadeiros transportes de massa, jazem no patamar da piada: carregam invisíveis 1,6% dos trabalhadores.
O flagelo, transversal, se espraia em gargalos e dificuldades, carências e estresse, além de materializar poluição sonora e ambiental em doses industriais. Basta ver os telejornais ou ouvir as rádios de manhã cedo. O trânsito domina o noticiário e só sai de cena diante de ocorrências explosivas na segurança (outro martírio incurável). Tempo e energia se esvaem nos engarrafamentos que serpenteiam até onde a vista alcança, a vida chega, e além.
Há, ainda por cima, um congestionamento de mazelas. O levantamento do IBGE aferiu que o tempo no deslocamento cotidiano dialoga com as desigualdades ultrabrasileiras, num potente sinal verde para o privilégio. Entre quem usa automóvel para ir ao trabalho, 42,9% são brancos, mais do que o dobro das pessoas pretas. Nos ônibus, predominam os afro-descendentes – 29%. Além disso, 57,8% dos trabalhadores com ensino superior completo viajam de carro, enquanto as pessoas com ensino médio completo são menos da metade, 28,6%. Sem instrução ou com ensino fundamental completo? A maioria (25,6%) vai a pé.
Quanto maior o aglomerado urbano, mais dramático fica. A maior parte dos trabalhadores brasileiros – 57% ou 40 milhões de pessoas – leva entre seis minutos e meia hora para chegar ao endereço profissional. No Sudeste, a proporção cai a 53%, e desaba para 36% nas duas maiores metrópoles do país, Rio de Janeiro e São Paulo (em verdade, regiões metropolitanas com, respectivamente, 11,8 milhões de habitantes em 22 cidades, e 20,8 milhões em 39 municípios). Na outra ponta, enquanto a média nacional de quem leva mais de uma hora no trajeto para em 12,6%, o número vai a 27,9% em São Paulo e a 29,8% na terra carioca.
(Aliás, real oficial: a desalentadora disputa das ruas mais congestionadas da nação, historicamente vencida pelos paulistanos, tem novo campeão: o Rio de Janeiro.)


Em defesa dos 1,6% de trens e metrôs, eles, como bons cidadãos, tentam. Falta, criminosamente, oferta dos modais nas cidades brasileiras, de novo por escolha resoluta de nossos governantes. Nas capitais do país, ferrovias e composições sofrem sucateamento impiedoso; metrôs são mirrados, trenzinhos de brinquedo que ligam distâncias mínimas ou irrelevantes (o exemplo carioca, com duas linhas retas e sobrepostas, constrange). Em São Paulo ainda é um pouco maior, mas também ineficiente.
Resultado: quem pode vai de carro, no seu próprio ou no transporte por aplicativo, escravidão contemporânea que se alastra por ruas, avenidas e estradas. Não presta para ninguém: sofrem os motoristas, em jornadas desumanas de trabalho; os passageiros, que espremem o orçamento para dar conta do ir e vir; o planeta, com fumaça e barulho embrulhando as vias sobrecarregadas; e a sociedade que, além disso tudo, ainda testemunha o crescimento da violência do negacionismo e da intolerância na solidão carrancuda dos engarrafamentos.
Apesar de todas as evidências, inexistem sinais de mudança no caminho. Na mesma semana da divulgação do Censo, a Câmara de Belo Horizonte sepultou o projeto que faria da capital mineira a primeira do país com Tarifa Zero no transporte público. A história da derrubada oferece o que há de mais repulsivo na política brasileira. Quando surgiu, a proposta recebeu a assinatura de 22 dos 41 vereadores, número suficiente para a aprovação. Ganhou as redes e, previsivelmente, mobilizou a população. Tudo muito bom, tudo muito bem.
Mas aí, entrou em campo o lobby dos interessados em manter o serviço porco – e caro – que martiriza a população. As empresas de ônibus atuaram fortemente, com meios nada republicanos, para fulminar a iniciativa, e tiveram o apoio da Fiemg, a Federação das Indústrias do estado. Informa o colunista Bernardo Mello Franco, d’O Globo, que o prefeito Álvaro Damião (União Brasil) engajou-se no time dos vilões e, no dia seguinte à votação, demitiu diversos funcionários ligados a defensores da Tarifa Zero.
No fim, o projeto foi sepultado por 30 votos a 10 – e Belo Horizonte seguirá pagando subsídios que chegam a R$ 750 milhões anuais. Mesmo assim, a passagem, por lá, está R$ 5,75, a terceira mais cara do país. O arrecadado pelos bilhetes cobre somente 25% da conta.
A proposta, da vereadora Iza Lourença (PSOL), a progressista mais votada na cidade, inspirou-se em estudo da UFMG, que previa a substituição do vale-transporte pelo pagamento por empresas com mais de nove funcionários. Os benefícios seriam inúmeros, a começar pela óbvia diminuição de carros nas ruas e a consequente redução do trânsito, da poluição etc. A circulação e o consumo seriam incentivados, aumentando a demanda por outros serviços, o que aqueceria a economia. Um processo virtuoso se iniciaria – mas poderosos perderiam seu dinheirinho fácil.
Logo, não rolou – apesar das centenas de exemplos concretos das vantagens embutidas na Tarifa Zero, em vigor Brasil afora. Ao todo, 127 cidades adotaram a ex-utopia, de Maricá, enclave petista fluminense, a Balneário Camboriú, possessão bolsonarista de Santa Catarina. Políticos mais espertos, de todos os matizes ideológicos, enxergaram o potencial eleitoral dos ônibus sem cobrança de tarifa aos passageiros.
O governo federal, afinal, começa a priorizar causas populares mais originais e promete estudar formas de incentivo à Tarifa Zero. Precisa, com urgência, porque o atraso atual lembra a cena final (só que sem poesia) de “Telma & Louise”, icônico filme dos anos 1990: uma viagem sem volta na direção do precipício. De carro.
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