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A sociedade que vai – de carro – em direção ao precipício

Censo afere aumento do uso de automóveis para o ir e vir do trabalho no país da COP30, consumação da tragédia cheia de atravessamentos

ODS 11ODS 13 • Publicada em 16 de outubro de 2025 - 20:56

Quase um século atrás, uma sociedade escolheu errar. Aceitou que seus governantes apostassem no equívoco insustentável e, de lá para cá (faz tempo), dobrou a aposta teimosamente, até mergulhar num abismo aparentemente sem saída. Deu numa tragédia, ainda por cima, vaidosa, que se exibe vigorosa, barulhenta, extensa, dia sim dia também, de manhã e no fim da tarde – ou a qualquer momento, a depender do imprevisto mais prosaico. A ponto de comandar o funcionamento de cidades inteiras.

Leu essa? A rota da incompetência

Deu no Censo: 32% dos brasileiros que precisam se deslocar pelo menos três vezes por semana para o local de trabalho utilizam o automóvel. O número (praticamente um vivente em cada três, para facilitar a vida do pessoal de Humanas) superou com folga os usuários de ônibus, 21,4%. Metrô e trem, verdadeiros transportes de massa, jazem no patamar da piada: carregam invisíveis 1,6% dos trabalhadores.

O flagelo, transversal, se espraia em gargalos e dificuldades, carências e estresse, além de materializar poluição sonora e ambiental em doses industriais. Basta ver os telejornais ou ouvir as rádios de manhã cedo. O trânsito domina o noticiário e só sai de cena diante de ocorrências explosivas na segurança (outro martírio incurável). Tempo e energia se esvaem nos engarrafamentos que serpenteiam até onde a vista alcança, a vida chega, e além.

Há, ainda por cima, um congestionamento de mazelas. O levantamento do IBGE aferiu que o tempo no deslocamento cotidiano dialoga com as desigualdades ultrabrasileiras, num potente sinal verde para o privilégio. Entre quem usa automóvel para ir ao trabalho, 42,9% são brancos, mais do que o dobro das pessoas pretas. Nos ônibus, predominam os afro-descendentes – 29%. Além disso, 57,8% dos trabalhadores com ensino superior completo viajam de carro, enquanto as pessoas com ensino médio completo são menos da metade, 28,6%. Sem instrução ou com ensino fundamental completo? A maioria (25,6%) vai a pé.

Quanto maior o aglomerado urbano, mais dramático fica. A maior parte dos trabalhadores brasileiros – 57% ou 40 milhões de pessoas – leva entre seis minutos e meia hora para chegar ao endereço profissional. No Sudeste, a proporção cai a 53%, e desaba para 36% nas duas maiores metrópoles do país, Rio de Janeiro e São Paulo (em verdade, regiões metropolitanas com, respectivamente, 11,8 milhões de habitantes em 22 cidades, e 20,8 milhões em 39 municípios). Na outra ponta, enquanto a média nacional de quem leva mais de uma hora no trajeto para em 12,6%, o número vai a 27,9% em São Paulo e a 29,8% na terra carioca.

(Aliás, real oficial: a desalentadora disputa das ruas mais congestionadas da nação, historicamente vencida pelos paulistanos, tem novo campeão: o Rio de Janeiro.)

Trem no Rio de Janeiro: sucateamento, serviço péssimo e falta de investimento, para transportar número minúsculo de passageiros. Foto reprodução

Em defesa dos 1,6% de trens e metrôs, eles, como bons cidadãos, tentam. Falta, criminosamente, oferta dos modais nas cidades brasileiras, de novo por escolha resoluta de nossos governantes. Nas capitais do país, ferrovias e composições sofrem sucateamento impiedoso; metrôs são mirrados, trenzinhos de brinquedo que ligam distâncias mínimas ou irrelevantes (o exemplo carioca, com duas linhas retas e sobrepostas, constrange). Em São Paulo ainda é um pouco maior, mas também ineficiente.

Resultado: quem pode vai de carro, no seu próprio ou no transporte por aplicativo, escravidão contemporânea que se alastra por ruas, avenidas e estradas. Não presta para ninguém: sofrem os motoristas, em jornadas desumanas de trabalho; os passageiros, que espremem o orçamento para dar conta do ir e vir; o planeta, com fumaça e barulho embrulhando as vias sobrecarregadas; e a sociedade que, além disso tudo, ainda testemunha o crescimento da violência do negacionismo e da intolerância na solidão carrancuda dos engarrafamentos.

Apesar de todas as evidências, inexistem sinais de mudança no caminho. Na mesma semana da divulgação do Censo, a Câmara de Belo Horizonte sepultou o projeto que faria da capital mineira a primeira do país com Tarifa Zero no transporte público. A história da derrubada oferece o que há de mais repulsivo na política brasileira. Quando surgiu, a proposta recebeu a assinatura de 22 dos 41 vereadores, número suficiente para a aprovação. Ganhou as redes e, previsivelmente, mobilizou a população. Tudo muito bom, tudo muito bem.

Mas aí, entrou em campo o lobby dos interessados em manter o serviço porco – e caro – que martiriza a população. As empresas de ônibus atuaram fortemente, com meios nada republicanos, para fulminar a iniciativa, e tiveram o apoio da Fiemg, a Federação das Indústrias do estado. Informa o colunista Bernardo Mello Franco, d’O Globo, que o prefeito Álvaro Damião (União Brasil) engajou-se no time dos vilões e, no dia seguinte à votação, demitiu diversos funcionários ligados a defensores da Tarifa Zero.

No fim, o projeto foi sepultado por 30 votos a 10 – e Belo Horizonte seguirá pagando subsídios que chegam a R$ 750 milhões anuais. Mesmo assim, a passagem, por lá, está R$ 5,75, a terceira mais cara do país. O arrecadado pelos bilhetes cobre somente 25% da conta.

A proposta, da vereadora Iza Lourença (PSOL), a progressista mais votada na cidade, inspirou-se em estudo da UFMG, que previa a substituição do vale-transporte pelo pagamento por empresas com mais de nove funcionários. Os benefícios seriam inúmeros, a começar pela óbvia diminuição de carros nas ruas e a consequente redução do trânsito, da poluição etc. A circulação e o consumo seriam incentivados, aumentando a demanda por outros serviços, o que aqueceria a economia. Um processo virtuoso se iniciaria – mas poderosos perderiam seu dinheirinho fácil.

Logo, não rolou – apesar das centenas de exemplos concretos das vantagens embutidas na Tarifa Zero, em vigor Brasil afora. Ao todo, 127 cidades adotaram a ex-utopia, de Maricá, enclave petista fluminense, a Balneário Camboriú, possessão bolsonarista de Santa Catarina. Políticos mais espertos, de todos os matizes ideológicos, enxergaram o potencial eleitoral dos ônibus sem cobrança de tarifa aos passageiros.

O governo federal, afinal, começa a priorizar causas populares mais originais e promete estudar formas de incentivo à Tarifa Zero. Precisa, com urgência, porque o atraso atual lembra a cena final (só que sem poesia) de “Telma & Louise”, icônico filme dos anos 1990: uma viagem sem volta na direção do precipício. De carro.

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