ODS 1
Múltiplos estupros coletivos
Caso de violação da jovem carioca não é atípico e pode vitimar milhares, aponta estudo do Ipea
Uma jovem de menos de 17 anos estuprada por dois homens ou mais, que eram seus amigos ou conhecidos, em um dia qualquer do mês de maio. A descrição poderia ser do caso da adolescente carioca que choca o país desde a semana passada, depois que um vídeo a revelou ferida, nua e desacordada em meio a seus agressores – seriam 30 ou mais deles. Mas não é. Trata-se do retrato de uma típica vítima de violência sexual no país, a partir da pesquisa “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo dados da saúde“, lançada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2014.
“A caracterização do estudo se encaixa perfeitamente no caso da moça no Rio de Janeiro por mostrar que 70% das vítimas têm até 17 anos quando acontecem os crimes, que 15% das violações são cometidas por dois ou mais homens, que em 32% das ocorrências o estuprador é amigo ou conhecido da vítima, e que o período de maio até o inverno é o de maior número de ocorrências”, descreve o economista Daniel Cerqueira, um dos autores da pesquisa, que está à espera de novos dados do Ministério da Saúde para atualizar o trabalho, diante da repercussão do crime ocorrido no Rio.
A violência escancarada pelo meio virtual e exacerbada pelo grande número de agressores lembrou a nós, brasileiros, que um estupro é registrado a cada 11 minutos no país, num total de 47,6 mil casos ao ano, segundo o Fórum de Segurança Pública/2014. Diante desse número, a informação da pesquisa do Ipea de que 15% das vítimas, ou 7.140, são atacadas por dois ou mais homens – o que configura estupro coletivo – já seria bastante alarmante.
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Veja o que já enviamosMas é sabido que esse número, assim como o total de estupros, é muito maior. Baseados no Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS), um levantamento feito em 2013 que continha questões sobre violência sexual, os pesquisadores chegaram 527 mil casos de estupro ao ano, dos quais apenas 10% seriam reportados à polícia. O número é consistente com os dados do Fórum de Segurança Pública/2012, que registrou naquele ano 50.617 violações. Nesta opção, o número de estupros coletivos pularia para 79 mil casos – o equivalente a mais de 216 por dia. Cerqueira admite que a informação deve ser vista com reservas e muita cautela, mas lembra que, mesmo usando as informações do FSP de que apenas 35% dos casos de estupro são levados à polícia, a estatística impressiona. Seriam mais de 140 mil casos de violações ao ano – sendo 21 mil coletivas, o que equivale a 1.750 por mês e 57 por dia.
[g1_quote author_name=”Daniel Cerqueira” author_description=”Pesquisador Ipea” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O estupro da jovem carioca veio para nos lembrar dos tempos bárbaros que nunca nos abandonaram. Não é um fato atípico, acontece recorrentemente na sociedade
[/g1_quote]“Quando houve o caso do estupro coletivo na Índia, em 2012, parecia algo muito distante da nossa realidade”, comenta Cerqueira, denunciando a subnotificação dos estupros de uma forma geral.”Muitas mulheres não falam nada, pois o tabu é muito grande. Nos Estados Unidos, por exemplo, que têm uma polícia melhor do que a nossa, apenas 19,1% dos casos de estupro são denunciados e vão, portanto, para as estatísticas. Imagine então aqui. Pela lei atual, de 2009, não é preciso ter penetração vaginal ou anal para se configurar estupro”.
A radiografia do estupro feita pelo Ipea é baseada nos dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), gerido pelo Departamento de Análise de Situação de Saúde , da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde. “O estupro é um tema bárbaro, tem prevalência e não tinhamos encontrado dados que cobrissem o território nacional, então descobrimos a base de dados do Sinan, que contém registros administrativos de quem sofreu estupro e foi ao SUS”, explica o pesquisador, destacando que, no entanto, muitos municípios, cerca de 25%, não possuem centros de saúde que fazem notificações e que muitas mulheres adultas agredidas podem ter recorrido ao SUS sem que tenha sido registrado que sofreram estupro.”O profissional de saúde é obrigado a notificar às autoridades quando um menor de idade apresenta sinais de violação, mas isso não se repete com os adultos e muitas mulheres optam por se calar, sentem vergonha do próprio marido”.
Apesar das limitações de dados, a pesquisa revela que 88,5% das vítimas de estupro são do sexo feminino, 70% são crianças ou adolescentes (mais da metade com menos de 13 anos de idade), 46% não possuem o ensino fundamental completo (entre as vítimas com escolaridade conhecida, esse índice sobe para 67%). Os dados mostram ainda que 51% dos agredidos são de cor preta ou parda, e que um quarto dos agressores são pais ou padastros.
[g1_quote author_name=”Daniel Cerqueira” author_description=”Pesquisador do Ipea” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O patriarcado demarca a relação de poder entre homem e mulher. Por essa cultura machista, a mulher é coisificada, pode ser modificada ou não, pode ser utilizada ou não, dependendo do que o homem acha que é conveniente. Quando se percebe a questão dessa maneira, o estupro, na verdade, é o homem exercendo essa superioridade social, dada pelo machismo. É medieval.
[/g1_quote]Para Cerqueira, as estatísticas de estupro são “invisíveis porque temos muito arraigada essa cultura patriarcal, do machismo”. “O estupro da jovem carioca veio para nos lembrar dos tempos bárbaros que nunca nos abandonaram. Não é um fato atípico, acontece recorrentemente na sociedade”, opina, destacando que o próprio sistema de Justiça criminal culpabiliza a vítima. “Se olharmos em perspectiva, o combate à violência contra a mulher é novo na agenda brasileira. Até a década de 1970, havia casos como o de Doca Street em que ainda se aceitava a legítima defesa da honra. Além disso, uma mulher não podia acusar, por exemplo, o marido de estuprá-la”. Os avanços vieram na Constituição de 1988, mas, mesmo assim, até meados dos anos 1995, por exemplo, valia o artigo 35 do Código de Processo Penal em que a mulher casada não podia prestar queixa sem consentimento do marido, a não ser que fosse contra ele ou que ela fosse separada. Só em 2006 foi criada a Lei Maria da Penha, e, em 2009, o estupro deixou de ser um crime contra os costumes. “Antes disso, o ponto de vista era moralista, não enfocava a vítima, não era um crime contra a pessoa”, ressalta Cerqueira.
O caso do estupro da adolescente carioca é um símbolo deste atraso. O tratamento empregado à jovem pela policia foi tão criticado por culpar a vítima que o titular da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática, Alessandro Thiers, precisou ser afastado. Demonstrações de preconceito e tentativas de desacreditar a vítima também foram frequentes nas redes sociais, na mesma medida que os protestos contra a cultura do estupro. A notícia de que o exame de corpo de delito da jovem – realizado quatro dias após a agressão – não resultou em indícios de violência provocou uma nova leva de acusações à jovem, por mais que a nova responsável pela investigação – Cristiana Bento, delegada da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima – afirme que o estupro está provado.
Desmoralizar a jovem e tentar fingir que nada aconteceu naquela casa no complexo de favelas São José Operário, no entanto, não apaga as estatísticas nacionais sobre estupro, que revelam uma das piores faces de nossa sociedade. “O patriarcado demarca a relação de poder entre homem e mulher. Por essa cultura machista, a mulher é coisificada, pode ser modificada ou não, pode ser utilizada ou não, dependendo do que o homem acha que é conveniente. Quando se percebe a questão dessa maneira, o estupro, na verdade, é o homem exercendo essa superioridade social, dada pelo machismo. É medieval”, critica Cerqueira.
Formada em Jornalismo pela UFF, nasceu em São Paulo, mas cresceu na cidade do Rio de Janeiro. Foi repórter do jornal “O Dia”, ocupou várias funções no “Jornal do Brasil” e foi secretária de redação da revista de divulgação científica “Ciência Hoje”, da SBPC. Passou os últimos anos no jornal “O Globo”, onde se dedicou ao tema da Educação. Editou a Revista “Megazine”, voltada para o público jovem, e a “Revista da TV”. Hoje é Editora do Projeto #Colabora e responsável pela Agência #Colabora Marcas.
O ser humano, de uma maneira geral, evoluiu muito pouco em termos de comportamento em sociedade.Os costumes são os mesmos desde a idade média. A evolução tecnológica trouxe muita coisa boa para nós, mas aqueles instintos animais permanecem escondidos, até que a oportunidade surge e aí afloram. O caso da menina no Rio só foi percebido pela divulgação das imagens da “diversão” que aqueles “trogloditas” estavam usufruindo. Mata-se por inveja, criam-se guerras por poder econômico, estupra-se por “direito” conquistado. Leis tão antigas que ainda estão em vigor no subconsciente. A pesquisa é alarmante e como demonstrado, tem pouco a ver com o grau de evolução do país. Países desenvolvidos também tem o mesmo problema. Uma lástima. Há que se mudar a forma como a educação e a cultura são apresentadas às crianças. Basta ver as letras dos funks cariocas e os sucessos “pops” americanos, onde invariavelmente a mulher se comporta como objeto de desejo, dança de forma sensual e provocativa, com músicas cuja letra incita a possessão ou o estupro. Parece censura, e é mesmo. Deveria haver censura para certas manifestações, já que a educação em casa e nas escolas tem fracassado continuamente. Dei o exemplo da mulher, pela evidencia da pesquisa, mas isso ocorre em ambos os gêneros. Há estupros em ambos os lados da moeda.
Pingback: O corpo das mulheres como campo de batalha
Digo sempre repito qdo vejo comentários sobre estupros: pq não fazem uma campanha para liberarem o porte de armas para as mulheres? Só em terem dúvida se estão armadas ou não reduziria bastante as agressões.