Escalpelamento, um drama amazônico

Mulheres e meninas de comunidades ribeirinhas sofrem com as dores da mutilação e do preconceito

Por Fernanda Portugal | ODS 3 • Publicada em 5 de setembro de 2017 - 09:20 • Atualizada em 6 de setembro de 2017 - 13:57

Em 2016, foram registrados seis acidentes por escalpelamento nos rios do Pará. Foto Thiago Gomes/Agência Pará
Em 2016, foram registrados seis acidentes por escalpelamento nos rios do Pará. Foto Thiago Gomes/Agência Pará
Em 2016, foram registrados seis acidentes por escalpelamento nos rios do Pará. Foto Thiago Gomes/Agência Pará

A brutalidade é tanta, que o desmaio é inevitável. O despertar, no hospital, revela uma mudança dramática e definitiva de vida. Além das dores crônicas impostas pela mutilação, as vítimas de escalpelamento também sofrem com o preconceito e a falta de políticas públicas. Segundo a Defensoria Pública da União, 90% são mulheres e meninas de comunidades ribeirinhas da região amazônica do Brasil. Entre as adultas, somente 8% conseguem reinserção no mercado de trabalho.

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No mercado de trabalho, a gente não é vista com bons olhos por causa da estética. Além disso, as vítimas têm muitas dores de cabeça. E o empresário não quer que a gente falte ao trabalho. Temos que produzir e ter uma boa aparência. Isso dificulta muito arranjar emprego

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Pará e Amapá são os estados que mais apresentam o acidente: a vítima, ao se aproximar do motor da embarcação, tem os cabelos fisgados pelo eixo da máquina, e o couro cabeludo é bruscamente arrancado. Em alguns casos, sobrancelhas, pálpebras e orelhas também são amputadas. O tratamento é para o resto da vida, com internações frequentes para consultas e enxertos nas áreas afetadas.

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Todo ano, no dia 28 de agosto, campanhas e manifestações na região amazônica marcam o Dia Nacional de Combate e Prevenção ao Escalpelamento. A data foi criada pelo Ministério da Saúde em 2008, após pressão de organizações locais, como a Associação de Mulheres Ribeirinhas Vítimas de Escalpelamento, com sede em Macapá, que reúne 140 vítimas.

“No mercado de trabalho, a gente não é vista com bons olhos por causa da estética. Além disso, as vítimas têm muitas dores de cabeça. E o empresário não quer que a gente falte ao trabalho. Temos que produzir e ter uma boa aparência. Isso dificulta muito arranjar emprego”, conta a presidente da associação, Rosinete Serrão, 39 anos, que sofreu o acidente há 20 anos. Muitas vítimas, segundo ela, perdem parte da visão ou da audição.

No Espaço Acolher, que existe desde 2006, elas são acompanhadas por psicólogos e assistentes sociais. Foto Rodolfo Oliveira/Agência Pará

Vítimas do “progresso”

 Os escalpos ocorrem desde o fim da década de 60, quando o progresso levou aos ribeirinhos os barcos a motor. A praticidade das viagens rápidas, porém, fez surgir o drama dos escalpelamentos – pouco conhecido no restante do Brasil e ignorado durante décadas pelo poder público. Somente em julho de 2017, após seis anos de pressão sobre o INSS pela associação e pelo Ministério Público Federal, as vítimas passaram a ser reconhecidas como deficientes físicas, com direito a benefício mensal de um salário mínimo.

A implementação de outras políticas públicas também só ocorreu recentemente. Em 2009, por exemplo, foi aprovada lei que tornou obrigatório o uso de coberturas nos motores de barcos, e a Marinha do Brasil passou a oferecer e instalar gratuitamente a proteção. A legislação é apontada como responsável por reduzir os escalpelamentos na Amazônia, mas as estatísticas são vagas. Estima-se que, nos últimos 40 anos, tenha havido em torno de 500 casos: uma vítima por mês.

A falta de informação para a população e de fiscalização nos barcos, porém, ainda expõe os passageiros. O caso mais recente de que se tem notícia foi há apenas um mês, em Itaubal, Amapá. Uma menina de 11 anos, identificada como Ingrid Cristina, viajava num pequeno barco de transporte escolar quando se abaixou para pegar uma moeda de 50 centavos que tinha perdido. O escalpo foi total.

Palestra para as vítimas de escalpelamento na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará. Foto Carlos Sodré/Agência Pará

A história de Ingrid se parece com a de Iwandala Negrão, que tinha 13 anos em junho de 2016, quando se acidentou no barco que o pai acabara de comprar, no município de Breves, no Marajó. A criança acompanhava a família na colheita de açaí. Em entrevistas à imprensa, seu pai, o agricultor Otoniel de Souza, disse que desconhecia o perigo.

Medidas reparadoras, como cirurgias plásticas, ainda têm sido negligenciadas pelo poder público. Uma esperança é a aprovação de projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados desde 2012. Nele, a deputada Janete Capiberibe (PSB/AP) propõe que o SUS garanta as reconstruções cirúrgicas, às quais nem sempre as vítimas têm acesso, e ofereça assistência social e psicológica gratuita.

Na falta de políticas públicas que aliviem seu sofrimento, as vítimas seguem contando com a solidariedade da sociedade civil. Uma das entidades que as apoiam é o Espaço Acolher, em Belém do Pará, mantido há dez anos pela Santa Casa de Misericórdia e que realiza cerca de 600 atendimentos por ano em pacientes sob tratamento no hospital da instituição. Lá, mulheres e meninas são acompanhadas por psicólogos e assistentes sociais, ganham perucas para disfarçar os ferimentos e recebem aulas extracurriculares, como de informática e artes.

Segundo Socorro Silva, coordenadora do Programa de Prevenção ao Escalpelamento da Secretaria Estadual de Saúde do Pará, os parentes também sofrem sequelas. “Alguns acidentes desfazem famílias. Já vi o caso de uma jovem cujo pai se tornou alcoólatra e se afastou da mulher e da filha. Há ainda aqueles que desfazem o casamento porque a esposa passa muito tempo na capital acompanhando a vítima”, conta.

As campanhas em comunidades ribeirinhas, explica Socorro, buscam sensibilizar donos e passageiros de barcos. Estes são orientados a manter o cabelo totalmente preso e coberto, e aqueles, a buscar a proteção para os motores. Os folhetos distribuídos nas campanhas mostram a história de Sirlene Nascimento, 27 anos. Aos 11, ela perdeu o couro cabeludo e as duas orelhas. Ao longo dos anos, precisou de mais de 20 cirurgias e sofreu preconceito, inclusive no mercado de trabalho.

Donos de barcos recebem panfletos durante a companha de conscientização. Foto José Pantoja/Ascom Sespa
Fernanda Portugal

Fernanda Portugal é carioca, formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Já foi editora de Saúde, Mundo, Meio Ambiente e Cidade do jornal 'O Dia'. Como repórter, no mesmo jornal, fazia matérias com temas ligados aos Direitos Humanos e ganhou o Prêmio SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa) três vezes.

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