Streaming: artistas e organizações do audiovisual cobram regulamentação

Estrelas do cinema brasileiro como Mateus Solano, Júlia Lemmertz e Paulo Betti se unem a associações do cinema na Campanha VOD12

Por Ana Carolina Ferreira | ODS 9 • Publicada em 29 de maio de 2025 - 10:06 • Atualizada em 29 de maio de 2025 - 15:29

Plataformas de streaming como Netflix não contribuem com Condecine, diferente de redes de TV aberta e por assinatura (Foto: Pexels / Cottonbro studio)

“Por que o Brasil está nas estatísticas de lucro e não está nas telas?”. Essa é a pergunta repetida pelas diversas vozes que se mobilizam numa campanha pela regulamentação das plataformas de streaming, como Max, Netflix, Prime Video e Disney+. Empresas como essas têm no país o segundo maior consumidor de serviços de streaming no mundo, como afirma o relatório Streaming Global, da plataforma Finder, de 2021. “Não queremos ser uma colônia consumidora de produtos estrangeiros, só consumir cultura de fora. A gente quer produzir, protagonizar, investir nos nossos talentos e contar ainda mais nossas próprias histórias”, afirma o texto de uma série de vídeos publicados nas últimas semanas nas redes sociais, com atores, diretores, produtores e cineastas brasileiros – como Mateus Solano, Júlia Lemmertz e Paulo Betti. 

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Os vídeos fazem parte da chamada Campanha VOD12 (Video On Demand, “vídeo por demanda”, na tradução do inglês), iniciativa para defender que as plataformas de streaming invistam, no mínimo, 12% do seu faturamento no Brasil na produção audiovisual nacional — com a garantia de que 70% desses recursos sejam destinados ao Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).

Acho que essa é uma das inúmeras lutas que a gente precisa abraçar nesse momento em que vemos nosso trabalho e o nosso cinema sendo rifado para as big techs. A gente vem sendo atropelado por uma terra de ninguém que é a internet, e essas grandes empresas acabam se aproveitando da falta de legislação

Mateus Solano
Ator

A campanha começou em abril deste ano e foi idealizada, roteirizada e dirigida por Luciana Sérvulo da Cunha. Ela teve a ideia da campanha ao acompanhar de perto a mobilização pela regulamentação, que não é recente. “A discussão dessa pauta existe há muitos anos; pelo menos há dois anos com muita intensidade no setor audiovisual e nas entidades representativas. Agora ela tomou corpo porque existe a possibilidade dela ser pautada no Congresso Nacional em breve”, conta a produtora e documentarista.

Dentre as reivindicações, estão os 12% de Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine); investimento direto em produção, licenciamento e preservação do conteúdo brasileiro independente; cotas regionais obrigatórias; destaque para produções nacionais no catálogo e incentivo a pequenas e médias empresas do setor. Para transmitir a importância dessas reivindicações, Luciana conseguiu reunir mais de 60 grandes nomes do cinema nacional, como Júlia Lemmertz, Paulo Betti, Osmar Prado, Maeve Jinkings, Marcos Palmeira e Mateus Solano.

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“Acho que essa é uma das inúmeras lutas que a gente precisa abraçar nesse momento em que vemos nosso trabalho e o nosso cinema sendo rifado para as big techs. A gente vem sendo atropelado por uma terra de ninguém que é a internet, e essas grandes empresas acabam se aproveitando da falta de legislação”, afirma Mateus Solano, ator com mais de 20 anos de carreira no cinema e na TV, onde fez grande sucesso ao interpretar o personagem Félix na novela Amor à Vida, da TV Globo, em 2013.

Mateus Solano é um dos participantes da Campanha VOD12, que reúne outros 60 grandes nomes do cinema nacional (Foto: Divulgação)

O ator também destaca a importância do engajamento do público, embora reconheça a dificuldade de torná-lo consciente da gravidade da situação. “As pessoas não têm muita noção da importância da cultura, porque de alguma forma parece que tudo é cultura. Com isso, se confunde o que faz o artista e o que faz a pessoa comum que também se expõe nas redes sociais. É um desafio mostrar ao público brasileiro a gravidade da gente passar anos só consumindo o que vem de fora”, aponta. Mas também convida quem entende do risco a se juntar à luta e “buscar entender os mecanismos que sempre apoiaram o cinema nacional e que estão sendo ameaçados pela avalanche de novas formas de explorar o mercado”.

A Campanha VOD12 se espelha em iniciativas internacionais bem-sucedidas ao defender a regulação das plataformas de streaming e a obrigatoriedade de contribuições para a indústria audiovisual nacional. Países como França, Coreia do Sul e Espanha já adotam medidas para o fortalecimento do cinema local. Na França, por exemplo, o governo determinou em 2021 que essas empresas devem investir entre 20% e 25% de suas receitas francesas em projetos locais.

“É importante dizer que essa não é uma luta dos artistas ou do setor para encher os bolsos”, lembra Mateus Solano. A cineasta Luciana também complementa que não se trata apenas do dinheiro. “Estamos falando da nossa soberania cultural e nacional. O que constrói o imaginário de um país é a cultura e a arte. Se o brasileiro não se enxerga nas telas, essas produções estrangeiras começam a moldar a nossa cultura”.

Sem regulamentação, o Brasil permanecerá como uma “colônia digital”, como defende a campanha. “Se os streamings são povoados somente pelos produtos estrangeiros, nos tornamos dependentes. E um povo sem cultura é como se fosse um corpo vazio, sem espírito, sem alma. Perdemos a nossa força, nossa cara, nossa voz. Por isso essa demanda por uma regulamentação justa é tão importante”, afirma Luciana.

Além disso, a manifestação do audiovisual se insere em um histórico de mobilizações. Um exemplo é a carta aberta do cinema e do audiovisual brasileiro ao presidente Lula, de novembro de 2024. “É injustificável que continuemos sangrando os cofres da nação e enfraquecendo nossas empresas por estarmos praticando uma lógica subalterna e extrativista em relação a esses players. As plataformas de streaming seguem atuando sem regulação ou transparência, em um negócio de dezenas de bilhões de reais, sem pagar os impostos e a taxa da Condecine”, afirma trecho do documento, destacando que a regulação e as taxas valem para as redes nacionais de TV e pelas TVs por assinatura.

Campanha VOD12 une mais de 60 grandes nomes do audiovisual brasileiro pela regulamentação dos streamings. Crédito: Reprodução/ Luciana Sérvulo via Instagram.
Campanha VOD12 une mais de 60 grandes nomes do audiovisual brasileiro pela regulamentação dos streamings. Crédito: Reprodução/ Luciana Sérvulo via Instagram.

Regulamentação dos streamings em debate na Câmara

A discussão sobre a regulamentação das plataformas de streaming já está em curso; tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 2331/2022. A relatora do projeto, deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), propõe uma alíquota de 6% de todo o faturamento das empresas à Condecine, metade do  percentual defendido pela campanha VOD12 e pelas associações do setor.

Além do percentual da contribuição, há um debate sobre a destinação desses recursos. O projeto em tramitação – também chamado de “PL dos streamings” e “Lei Toni Venturi” (cineasta paulista falecido no ano passado) – propõe que 60% do valor arrecadado seja destinado a investimento direto, por escolha das próprias plataformas, e 40% para o Fundo Setorial do Audiovisual. Mas o VOD12 e as associações defendem o oposto: que 70% dos recursos da Condecine sejam destinados ao FSA, um fundo público, gerenciado pelo governo, que utiliza os recursos para financiar projetos e políticas públicas do audiovisual. Os 30% restantes seriam investidos diretamente pelas plataformas.

Minom Pinho, produtora audiovisual e diretora federal da APACI, explica o posicionamento das associações para a destinação arrecadada. “Se tudo sair como está nesse documento [o PL], 60% da Condecine seria para investimento direto em licenciamentos e pré-licenciamentos, à escolha das plataformas de streaming — o que seria uma derrota. Isso entregaria a maior parte dos recursos para livre curadoria das plataformas e uma redução do montante  que vai para o principal fundo de investimento da indústria nacional que sustenta as políticas audiovisuais brasileiras”, argumenta a produtora. “O investimento direto não deixa de movimentar a indústria brasileira, o que é benéfico, mas é como se abríssemos mão da condução das políticas públicas do audiovisual brasileiro ao ceder às plataformas a decisão sobre o maior percentual de investimento”, acrescenta.

Ou seja, a preocupação com o modelo proposto no relatório é que, ao deixar a maior parte do investimento sob escolha das plataformas, a produção independente poderia ser prejudicada, porque não tem o mesmo poder de negociação que grandes produtores. Portanto, a luta não é por qualquer regulamentação, mas por uma que “fortaleça toda a cadeia do audiovisual brasileiro, incluindo o cinema independente”, como diz Luciana Sérvulo. “Da forma que está na proposta, há um grande risco de alimentar desigualdades. Porque a Netflix, por exemplo, poderia decidir onde aplicar esse dinheiro: num filme do Walter Salles ou da Luciana Sérvulo? A Netflix escolheria o Walter Salles”, complementa.

Além disso, a regulamentação também é crucial para que a Agência Nacional do Cinema (Ancine) possa obter dados sobre o mercado de streaming. “A partir da primeira regulação, vamos saber quais são esses números e como estão os catálogos, porque estas empresas passam a ser reguladas pela Ancine. Eu não atribuo essa responsabilidade aos streamings, mas ao próprio Brasil; a gente tem a obrigação de estabelecer as regras de soberania dentro do nosso próprio país”, explica Minom.

Alunos não reconhecem a história do Brasil em vídeo da campanha VOD12

Em primeira mão, a cineasta Luciana contou à reportagem um trecho de pílula que ainda será divulgada nas redes sociais. A produção vai ilustrar como a falta de representatividade e o consumo massivo de conteúdos estrangeiros podem influenciar a percepção que as crianças (e o público em geral) têm da própria história e cultura nacional. Confira:

Cena: sala de aula. Uma professora está em frente a turma. 

Professora: Hoje vamos estudar sobre a Independência do Brasil. Alguém sabe em que dia comemoramos o Dia da Independência?

Aluno 1: 4 de julho! Eu vi no filme “Independence Day”!

Professora: Temos uma figura muito importante na nossa independência. Quem é?

Aluno 2: Ah, essa é fácil! O Patriota, Mel Gibson!

A professora desiste e muda de assunto. Ela diz: “Bom… vamos falar sobre escravidão. Quantos anos durou a escravidão no Brasil?”

Aluno 3: Durou 12 anos de escravidão! Filmaço.

“A conclusão é: quem conta as histórias de um país, molda o que ele sonha a ser. Sem o audiovisual brasileiro, o país sonha com a cara dos outros”, finaliza Luciana.

Assista aos vídeos já publicados da Campanha VOD12:

Clipe 1: O espelho do Brasil
Clipe 2: Você paga, elas não!
Clipe 3: O direito do Brasil contar suas próprias histórias
Clipe 4: Estamos nas estatísticas, mas não nas telas
Clipe 5: É o justo!

Ana Carolina Ferreira

Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.

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