Dança dos gêneros no mundo árabe

Artista multimídia, Fatima Al Qadiri discute o tema no EP “Shaneera”, gravado no Kuwait

Por Carlos Albuquerque | ODS 5ODS 9 • Publicada em 24 de novembro de 2017 - 17:24 • Atualizada em 26 de novembro de 2017 - 13:07

Fatima Al Qadiri: desafio de discutir gênero no mundo árabe (Foto divulgação/Dom Smith)
Fatima Al Qadiri: desafio de discutir gênero no mundo árabe (Foto divulgação/Dom Smith)

Apenas um dos quatro vocalistas convidados de “Shaneera”, novo EP da produtora, compositora e artista visual Fatima Al Qadiri, aparece nos créditos com seu nome real. É Khalid al Gharaballi, também conhecido como Chaltham. Os demais – Bobo Secret, Lama3an e Naygow, todos do Kuwait, assim como Chaltham – preferiram usar o véu do anonimato ao emprestar suas vozes para o trabalho. Lançado pela avançada gravadora inglesa Hyperdub, “Shaneera” toca em temas pouco comuns no mundo árabe, como identidade de gênero e drags, nem sempre com tradução automática. E essa complexidade é um dos seus maiores trunfos.

No Kuwait e em outras regiões do Golfo Pérsico, shanee’a ganhou um sentido mais leve e virou gíria para pessoas não-binárias, que desafiam as limitações de gênero.

“Shaneera é a pronúncia errada de shanee’a, como costumava ouvir de um galerista amigo meu, que mora em Nova York. Trata-se de uma expressão árabe que significa algo ou alguém ultrajante, horrendo, nefasto”, conta Fatima, por Skype. “No Kuwait e em outras regiões do Golfo Pérsico, shanee’a ganhou um sentido, digamos, mais leve e virou uma gíria para pessoas não-binárias, que desafiam as limitações de gênero. Seria algo como uma rainha maldosa, mas não creio que a tradução faça sentido para ouvidos ocidentais”.

Sempre questionei a ideia binária de gênero, principalmente no mundo árabe, onde ela é marcada por masculinidade e feminilidade exacerbadas

Nascida no Senegal, criada no Kuwait e radicada em Berlim (depois de viver em Londres e Nova York), Fatima é, ela própria, uma artista que transpõe diversas fronteiras, sejam elas geográficas, biológicas ou culturais. De difícil categorização, seu som tem texturas eletrônicas e influências do grime inglês e do khaeeji árabe, e ecoa também a paixão da autora por videogames e ficção científica. Foi assim que ela embalou trabalhos como “Desert strike” (de 2012, influenciado pela invasão do Kuwait pelos EUA nos anos 90), “Asiatisch” (de 2014, sobre uma China imaginária, sombria como o chuvoso cenário de “Blade runner”) e “Brute” (de 2016, esquentado pelo racismo e pela brutalidade policial em tempos de Black Lives Matter). Todos eles eram, essencialmente, instrumentais, salvo uma ou outra aparição vocal, como a assombrosa “Shanzai”, versão em mandarim de “Nothing compares to you”, de Prince, incluída em “Asiatisch”.

Nas cinco faixas do EP, o que se ouve são adaptações de conversas no Grindr (sim, a rede social de encontros LGBT) e de esquetes de teatro.

Decidida a aprofundar seus questionamentos de gênero no mundo árabe – já presentes na vídeo-instalação “Mendeel Um A7mad “, de 2012, remontada recentemente no  Museu de Arte Moderna (MoMa) de Nova York -, Fatima viajou para o Kuwait para gravar o EP. Sua inspiração para o trabalho trazia uma interrogação: existiria um sentido local para a expressão queer, tão popular no universo LGBT ocidental?

“Sempre questionei a ideia binária de gênero, principalmente no mundo árabe, onde ela é marcada por masculinidade e feminilidade exacerbadas”, conta ela, que trocou o seu visual sóbrio, quase andrógino, por um “extreme makeup” na capa do disco. “Queria também provocar uma reflexão, já prevendo que não encontraria um sentido para a palavra queer nos países do Golfo Pérsico. Existe um enorme vácuo cultural, um vazio semântico. As coisas não são tão preto no branco, como se imagina no Ocidente”.

Capa de Shaneera: Fatima trocou o visual sóbrio para discutir gênero (Reprodução)
Capa de Shaneera: Fatima trocou o visual sóbrio para discutir gênero (Reprodução)

Por sorte, na sua primeira noite de volta ao Kuwait, Fatima foi a uma festa onde encontrou todos os futuros colaboradores do EP. Mas como o tema ainda é delicado na região, nem todos os que se entusiasmaram em gravar com ela se dispuseram a abordar tais questões fora do armário (Lama3an é arquiteto, Bobo Secret trabalha no mercado financeiro e Naygow canta por hobby). Não que as letras de “Shaneera” – que flutuam entre eletrizantes beats híbridos e sinuosas melodias árabes – sejam incisivas ou diretas. Nas cinco faixas do EP, o que se ouve são adaptações de conversas no Grindr (sim, a rede social de encontros LGBT) e de esquetes de teatro (principalmente do veterano comediante kuwaitiano  Abdul-Aziz Al-Nimish, conhecido por se apresentar vestido de mulher). Em “Spiral”, que ganhou o único clipe do EP, a letra vem do filme egípcio “Ayazon”, com uma frase (“Estou com roupas de dança, numa casa de má reputação”) que se tornou um desafiador bordão entre os não-binários daquela região.

“Não pretendo explicar nada, nem falar em nome de ninguém, por isso, optei por usar esses artifícios e jogos de palavras nas letras. Além do mais, perderia muita coisa na tradução”, explica ela. “Na verdade, esse EP pode servir para as pessoas dançarem e até se sentirem shanee’a em Londres, Nova York, Berlim ou mesmo no Rio e em São Paulo. Mas ele é direcionado para o mundo árabe. Suas provocações têm endereço certo”.

Carlos Albuquerque

Carlos Albuquerque (ou Calbuque) é jornalista de cultura, biólogo, DJ (daqueles que ainda usam vinil) e ocasional surfista de ondas ridiculamente pequenas. Escreve com a mão esquerda e Darwin é seu pastor.

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