O assédio que mata a poesia

Nas calçadas da vida, o abismo entre a cantada cafajeste e a arte que vem do deslumbramento

Por Joaquim Ferreira dos Santos | ODS 4ODS 9 • Publicada em 2 de outubro de 2017 - 09:16 • Atualizada em 2 de outubro de 2017 - 12:55

Helô Pinheiro, a eterna musa de Ipanema, ao lado do maestro Tom Jobim. Foto Divulgação
Helô Pinheiro, a eterna musa de Ipanema, ao lado do maestro Tom Jobim. Foto Divulgação

A música brasileira talvez não existisse tão bonita se não fossem os seus compositores passeando pelas calçadas e estas provocando espantos poéticos como o que aconteceu a Benjor: “Oba, lá vem ela, estou de olho nela”. Dorival Caymmi: “A vizinha quando passa com seu vestido grená, todo mundo diz é boa e como a vizinha não há”. “Garota de Ipanema”, um dos hinos não oficiais do país, é mais ou menos a mesma coisa, aquela que, no doce balanço a caminho do mar, deixa o mundo cheio de graça.

É um dos mais notáveis espetáculos urbanos, uma das maravilhas da natureza pedestre, o da beleza que cruza ao lado – mas é preciso que diante desse ato estupefaciente dos sentidos o espectador reaja com a mesma delicadeza e poesia de Tom e Vinícius.

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Os olhares dos cronistas e compositores eram de lirismo. Não se confundiam com qualquer promoção do olhar do constrangimento cafajeste. O primeiro é poesia; o segundo, assédio. Homens e mulheres educados percebem esses limites.

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A crônica brasileira também não existiria se não fossem os seus cronistas procurando assunto pelas calçadas – e nelas sempre havia uma mulher que fazia com que a pena do escritor começasse a se mexer. As primeiras linhas de “Coração dos homens”, de Antonio Maria, dizem: “Vi-a passar. Comecei a vê-la de longe, quando despontou na rua”.

“Visão”, que Rubem Braga escreveu em novembro de 1952, também é sobre isso:

“Eu vinha sem raiva nem desejo, eu vinha como um homem que faz parte da sua vida e é menos um homem que um transeunte e me sentia como aquele que se vê nos cartões postais, de longe, dobrando uma esquina…”, ia dizendo Rubem, até chegar no clímax de sua crônica ambulante. “Foi apenas um instante antes de se abrir um sinal numa esquina, dentro de um grande carro negro, uma figura de mulher que nesse instante me fitou e sorriu com seus grandes olhos de azul límpido e a boca fresca e viva…”

A crônica inteira é sobre o impacto desta visão.

Em todas essas obras de arte, na música ou na literatura, não está acontecendo nada além da cena cotidiana de uma bela mulher que passa e aciona no artista as veias da criação – e assim será até o fim dos tempos, se os tempos não se radicalizarem como insinuam. O espaço público, por mais agressivo que ele se apresente, por menos poesia que ele evoque, ainda é um ambiente de convivência de estranhos, um território de confraternização. A calçada promove a aproximação civilizada das diferenças, sejam elas sociais ou de sexo. Os olhares dos cronistas e compositores eram de lirismo. Não se confundiam com qualquer promoção do olhar do constrangimento cafajeste. O primeiro é poesia; o segundo, assédio. Homens e mulheres educados percebem esses limites.

Cartaz da campanha “Chega de Fiu Fiu”, contra o assédio sexual, lançada pelo site Think Olga. Foto Divulação

Era muito engraçado ver no cinema dos anos 1950 o cômico Zé Trindade quebrando o pescoço para observar melhor a musa que passava, pisando nos astros, distraída, na calçada de alguma obra em que ele estivesse trabalhando. Saudava-a com o bordão “O que é a natureza!”. Hoje, o maravilhoso humorista baiano seria processado por atitude indecorosa ou algum outro artigo que regula a necessidade de se proteger a mulher de tanto machismo. Empoderada pela própria natureza, e pela coragem com que tem denunciado todo tipo de opressão, ela dispensa essas falsas homenagens. São esquetes que também faziam sucesso nos programas de TV, inspirados nos galanteios das ruas (“a nora que mamãe pediu a Deus”).  Hoje soam apenas grosseiros.

As calçadas continuam disponíveis para que homens e mulheres se olhem, mas chega de fiu-fiu. Dispensa-se “bom dia, gatinha” ou qualquer outra intromissão no ouvido de quem quer que seja, por mais bonita que ela seja e por mais que o antigo senhor das calçadas ainda se sinta na obrigação e na autoridade de declarar tamanho júbilo visual. Essas falsas cantadas de calçada nunca cantaram ninguém, e também não tinham essa intenção. Era só uma manifestação pedestre de poder macho. Nada a ver com o deslumbramento de Caetano Veloso: “Beleza esperta/ Você me deixa a rua deserta/ Quando atravessa/ E não olha pra trás”.

Todas essas novas regras de convivência entre homens e mulheres no espaço público estão sendo bem divulgadas e aceitas. Se os encoxadores de metrô e os ejaculadores de ônibus continuam insistindo no desconhecimento delas, têm tido agora a surpresa de serem denunciados pelas vítimas e imediatamente presos pela multidão ao redor.  Os tempos mudaram. O que era lido como uma gracinha elogiosa, soa inconveniente. Nem as comédias italianas fazem mais aquela cena do grupo de amigos que para acintosamente no meio da calçada e observa uma dona mais desenhada. Olhar com agressividade sexual uma mulher na rua, escaneá-la com os olhos de um raio-x de aeroporto para que ela se perceba estar sendo vista nua, é outro item a ser deletado das práticas.

Nem todos os bons acordos de comportamento evitarão que homens e mulheres se olhem pelas calçadas da vida, o que acabaria com cronistas, compositores e também o fundamental espanto, comum até ao cidadão mais burocrático, de se deslumbrar com a beleza do sexo oposto. Uma vez Carlos Drummond de Andrade estava numa das calçadas de Copacabana quando foi tocado por esse alumbramento. O mundo soube no dia seguinte, numa página de jornal, que ele julgara ter visto, caminhando sobre as pedrinhas portuguesas da urbanidade carioca, o estrondo inesquecível da aurora boreal em forma de mulher.

As calçadas estão muito tristes, atravancadas de obstáculos e sofrimentos sociais. Com delicadeza e dentro das novas métricas, a poesia continua passando a caminho do mar, do escritório, do guichê do banco ou sabe-se lá a rumo de quê caminha a mulher contemporânea. Impossível não perceber. Olhe. Drummond, Vinicius ou Tom, se estivessem aqui fariam o mesmo e com a mesma elegância.

Joaquim Ferreira dos Santos

Jornalista e autor de vários livros, entre eles "Feliz 1958 - O ano que não devia acabar" e as biografias de Leila Diniz, Antonio Maria e Zózimo Barrozo do Amaral. Organizou a coletânea "As cem melhores crônicas brasileiras" e também publicou livros como cronista. Define-se principalmente como um repórter de Cidade. No #Colabora, Joaquim escreve sobre o que vai pelas calçadas e espaços públicos do Rio.

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4 comentários “O assédio que mata a poesia

  1. José Augusto disse:

    “No Brasil, o assédio está assim definido na lei número 10 224, de 15 de maio de 2001: “Constranger alguém com intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.”[3]

    Só. O resto é delírio do Corinthians 2014

  2. Claudia Lessa disse:

    Excelente matéria, nos leva a refletir sobre essa mudança nos costumes e que poderá afetar o poética.
    Nós mulheres já percebemos as mudanças. A ausência do fiu fiu passa a exigir determinação e auto-confiança para certificar que continuamos sendo vistas com admiração quando equilibramos nossos saltos a caminhar nas calçadas. Salve o empoderamento, mas que permaneça a poesia!
    Claudia Lessa, mulher

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