Hugo Lima fabricara seu primeiro rig, objeto usado para estabilizar imagens em filmagens. Refletia sobre cobrir o PVC usado na construção da traquitana com tinta preta, quando lembrou de uma notícia que havia lido pouco tempo antes: dois jovens negros foram assassinados por policiais, que alegaram ter confundido o escapamento de moto que os dois carregavam com um fuzil. O medo de acabar se tornando alvo levou Hugo a forrar o apetrecho de tecidos com padrões africanos. Nascia ali uma linha desenhada especialmente para cineastas negros e negras.
[g1_quote author_name=”Hugo Lima” author_description=”Cineasta” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O cinema é uma arma. A história já mostrou que o audiovisual tem força política enorme
[/g1_quote]A ideia de que a invenção pudesse ser confundida com um instrumento bélico acabou subvertida. “O cinema é uma arma. A história já mostrou que o audiovisual tem força política enorme”, raciocina ele, estudante de engenharia da computação de 29 anos, que atua também como diretor, editor e produtor. “O meu objetivo é, com custo baixo, proporcionar ao cinema negro a oportunidade de produzir audiovisual de qualidade. Isso dá poder para as pessoas se auto-representarem”.
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Veja o que já enviamosA trajetória que levou Hugo a fabricar os próprios equipamentos de audiovisual começou ainda na infância. A escolha dos presentes de Natal do carioca de Vila Valqueire, fronteira entre a Zona Oeste e a Zona Norte do Rio, era pautada pelo potencial que os brinquedos tinham de ser desmontados e remontados. O sonho, então, era ser cientista. A engenharia foi apresentada a ele como uma alternativa por um tio. Aos 16 anos, Hugo ingressou na Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec) de Marechal Hermes, bairro vizinho ao onde morava, para estudar eletrônica.
“Dos oito filhos dos meus avós maternos, metade fez faculdade. Um deles era esse meu tio, negro retinto que se formou em engenharia elétrica”, relembra ele, explicando que a história mexeu muito com seu imaginário. “A gente se espelha em quem tá mais perto, como diz uma letra do Racionais MC’s”, constata, citando o grupo de rap fundado por Mano Brown.
Os efeitos de integrar um grupo populacional sub-representado em sua área de estudos não passaram despercebidos para Hugo. Ele tinha dificuldade de inspirar confiança em seus colegas de curso, embora fosse capaz de criar projetos mirabolantes, como um robô de reconhecimento facial. Nos primeiros anos após a formatura no ensino técnico, precisou dar um intervalo nos estudos para trabalhar.
Em 2010, no entanto, retomou a trajetória acadêmica, ingressando no curso de engenharia da computação em uma universidade particular do Rio. Atualmente no 5º período, Hugo conta que a dificuldade de recursos para pagar a mensalidade acarretou em idas e vindas à faculdade. A última retomada ocorreu há ano e meio, quando o interesse por eletrônica dividia espaço com outra paixão: o audiovisual.
O primeiro contato com o cinema foi em junho de 2013, filmando, com amigas e amigos, as manifestações que marcaram aquele ano. Depois de cursar introdução à linguagem audiovisual, sua irmã, a antropóloga Nathali de Deus, de 27 anos, o apresentou ao coletivo negro Azoilda Loretto, do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet-RJ).
Ali surgiu, em 2015, o primeiro filme produzido, dirigido e editado por Hugo. Com 42 minutos, “Negros Dizeres” reúne depoimentos sobre diversos temas relacionados ao racismo, como violência, acesso à educação e padrões de beleza. “O filme deixa evidente que nós pretos temos experiências não positivas comuns. Ser unido pela dor é ruim, mas é um fato”, atesta. “Do ponto de vista técnico, o filme é quase rústico, mas as pessoas negras que assistem passam por cima disso justamente por verem na tela sentimentos que têm dentro de si”, avalia.
[g1_quote author_name=”Nathali LIma” author_description=”Irmã e sócia do cineasta” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]É importante que pessoas negras se apropriem e apresentem suas narrativas
[/g1_quote]No ano passado, “Siyanda”, curta de pouco mais de sete minutos escrito e dirigido por Hugo, ao lado da irmã e de Lumena Aleluia, ganhou o prêmio de melhor roteiro do Festival 72Horas e ficou em terceiro lugar na disputa de melhor filme. A protagonista da história é uma mulher negra que, num mau momento, se conecta com a sua ancestralidade ao perambular por ruas do Centro do Rio. O trabalho deu origem a um selo cultural de mesmo nome, para realizar documentários, curtas e podcasts produzidos por negros para negros.
“É importante que pessoas negras se apropriem e apresentem suas narrativas”, convoca Nathali, a irmã de Hugo. “Acredito que a produção de equipamentos mais acessíveis possibilite que pessoas negras ligadas ao audiovisual adquiram esses produtos e se profissionalizem dentro de um setor tão excludente e elitizado como esse”.
Além do rig, sliders (equipamento usado para filmagens panorâmicas), jogos de iluminação e estojos para cartão de memória, entre outros produtos, fazem parte da linha que Hugo criou, batizada de Afro Engenharia. Os materiais utilizados por ele para fabricar os equipamentos vão de suporte de cortina de banheiro até peças fabricadas com uma impressora 3D comprada recentemente, com o dinheiro do FGTS. Além dos tecidos africanos, o jovem usa tintas coloridas para cobrir os equipamentos. Segundo seus cálculos, eles chegam a custar 70% menos do que os produzidos por grandes fabricantes.
Na tentativa de sintetizar seus projetos, Hugo cita frase da comunicadora Sil Bahia: “Nós que somos pretos e pretas enxergamos nas necessidades soluções”. Diretora do Olabi, organização social que busca democratizar a produção de tecnologia, e coordenadora da Pretalab, iniciativa focada no protagonismo de mulheres negras e indígenas na inovação, Sil é uma entusiasta do trabalho do jovem, que define como um dos projetos “mais de ponta” que viu este ano. “Hugo está barateando produtos caros de uma maneira muito singular, algo que só poderia partir do olhar de alguém que pertence a um grupo com acesso restrito a esse tipo de ferramenta”, elogia. “Muitas vezes a Academia cria soluções que parecem bacanas, mas que não dão match com necessidades reais. No caso dele, não se trata de tecnologia pela tecnologia, mas de algo pensado para incidir em problemas sociais”.