No Alemão, as angústias da intervenção

Moradores da favela se dividem em relação à presença das Forças Armadas no enfrentamento da violência no Rio

Por Daiene Mendes | ODS 11ODS 8 • Publicada em 18 de fevereiro de 2018 - 10:54 • Atualizada em 18 de fevereiro de 2018 - 14:47

Moradora do Compelxo do Alemão carrega o filho durante a marcha pela paz no Rio de Janeiro. Foto de Christophe Simon/AFP
Moradora do Compelxo do Alemão carrega o filho durante a marcha pela paz no Rio de Janeiro. Foto de Christophe Simon/AFP
Moradora do Compelxo do Alemão carrega o filho durante a marcha pela paz no Rio de Janeiro. Foto de Christophe Simon/AFP

Ainda faltava luz, quando amanheceu a sexta-feira no Complexo do Alemão. A chuva forte da Quarta-Feira de Cinzas deixara marcas difíceis de apagar na favela, em especial a lama que mais uma vez transbordou do rio Faria Timbó, problema ancestral nas partes mais baixas do morro. Foi na lama e na falta de luz que o Alemão soube da intervenção militar no Rio.

Mas a vida mudou mesmo no depósito de gelo que vejo da janela de casa – o telefone não parava de tocar, com as pessoas querendo salvar os alimentos que, com mais de 30 horas sem energia, iam se estragando. No meio do corre-corre, veio o convite do vizinho: “Daiene! Tem café!”

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Ainda faltava luz, quando amanheceu a sexta-feira no Complexo do Alemão. A chuva forte da Quarta-Feira de Cinzas deixara marcas difíceis de apagar na favela, em especial a lama que mais uma vez transbordou do rio Faria Timbó, problema ancestral nas partes mais baixas do morro. Foi na lama e na falta de luz que o Alemão soube da intervenção militar no Rio.

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Na Nova Brasília, tudo passa pelo depósito de gelo, localizado na rua principal da favela. O vaivém das motos, a correria das crianças, as tias entregando folhetos com o anúncio da volta de Jesus, muita risada – e os momentos de silêncio e respiração suspensa, na ronda dos homens armados em suas motocicletas.

Ricardo, 27 anos, é o “menino do gelo”, há pouco mais de um ano, quando ele adquiriu o depósito. Entre uma conversa e outra, pergunto sobre a intervenção militar. Ele contou que enquanto fumava um cigarro pela manhã olhava as notícias no UOL, ritual de todas as manhãs. “Eu rolava a tela do celular, olhando os títulos do dia, quando li a matéria que contava sobre o repasse do poder de controlar as polícias do Rio para as Forças Armadas. Entendi que agora é o chefe do CML (Comando Militar do Leste) que manda em tudo”, explicou.

Ricardo é ex-militar, e ainda lembra a alegria que teve quando recebeu a notícia do serviço obrigatório, e a decepção, depois de quase oito anos servindo em um quartel da Aeronáutica. Sem muitas perspectivas de crescimento na carreira militar, desistiu de tentar uma vaga como sargento e com a indenização assumiu o ponto do comércio de gelo.

Entre uma e outra entrega, ele confessou ter tido esperança ao saber da notícia. Diz que sabe como as Forças Armadas trabalham e que o Estado chegou a um ponto que precisa de algo novo. “Acredito que vai mudar. Não sei exatamente como, mas é uma tentativa, uma coisa nova. Acredito que vão fazer um bom trabalho, senão, serão desmoralizados de vez. Tomara que não botem os soldados para fazer as rondas, senão, vai dar errado de cara”, opinou, sorrindo ao recordar seus 18 anos, quando virava a noite em serviço no quartel.

Enquanto os sacos de gelo continuavam saindo freneticamente, Denilson, 26 anos, se aproximou da conversa. Evangélico, durante algum tempo, hoje ele é rapper. “Tenho um grupo de WhatsApp com os amigos de infância. Só tem homem lá e a maioria permanece na Assembléia de Deus. Um deles colou o link de uma reportagem que contava sobre a intervenção; quando pensei em falar algo, foi uma enxurrada de mensagens como ‘agora vai’, ‘quero ver a bandidagem bater de frente agora’, ‘demoraram muito ainda’”, descreveu. “Fiquei triste porque a galera teve a mesma criação que eu, no mesmo ambiente, mas eles estavam com um pensamento de quem vive na Zona Sul, sei lá”, lamentou, decepcionado.

Cabelo raspado, sempre de bermuda, chinelo e sem camisa, Denilson lembra-se bem de quando o Exército ocupou o Alemão em 2010. Recordação que semeia desânimo. “Olha, sinceramente não vejo diferença entre tirar o poder do esculacho que está nas mãos da polícia e passar para o Exército. A favela sempre esteve militarizada. Não sei se vai melhorar ou piorar. É que precisamos de uma solução, sabe?! E não de uma intervenção.”

Questionado sobre o grupo dos amigos que comemorava o anúncio da intervenção, Denilson lembrou seus tempos de cristão e de militar. As experiências formaram nele um caráter mais questionador, o que causou problemas na sua vida religiosa. “Na Bíblia podemos ler muitas vezes a palavra lei, sempre relacionada ao correto, àquilo que deve ser feito. Questionar as leis em nossa formação religiosa já é um sinal de delito”, relatou. Assim mesmo, ele formou consciência racial. “Acho que nesse momento percebi que as oportunidades não são iguais, a desigualdade é grande demais, o racismo também”.

Enquanto isso, as ruas do Alemão fervem no vaivém de motos e pedestres. A preocupação existe, agora acompanhada por angustiantes interrogações sobre o que pode acontecer, no cotidiano da favela, com a intervenção. Enquanto isso, outro Rio – o de Janeiro – transborda, como o Faria Timbó. É a cidade da mancha vermelha de violência que o porta-voz da Polícia Militar, major Ivan Blaz, entende como “dano colateral”.

Ainda tem muita lama na rua. E falta luz.

Daiene Mendes

É estudante de Jornalismo na UNISUAM e mora na Nova Brasília, no Complexo do Alemão. Desde 2016 é correspondente comunitária do jornal inglês "The Guardian", e fundadora do projeto Favela em Pauta.

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