Marcas que não são de fuzil: 25 anos depois da chacina de Vigário Geral

Até mesmo jovens que não eram nascidos quando o massacre aconteceu contam como vêm superando os traumas deixados pela violência

Por Leonne Gabriel | ODS 11ODS 8 • Publicada em 28 de agosto de 2018 - 13:21 • Atualizada em 1 de setembro de 2018 - 14:55

Moradores falam sobre a comunidade e relembram a chacina que tornou a região conhecida internacionalmente (Fotos: Juliana Nascimento / Arte: Fernando Alvarus)
Moradores falam sobre a comunidade e relembram a chacina que tornou a região conhecida internacionalmente (Fotos: Juliana Nascimento / Arte: Fernando Alvarus)
Moradores falam sobre a comunidade e relembram a chacina que tornou a região conhecida internacionalmente (Fotos: Juliana Nascimento / Arte: Fernando Alvarus)

“Foi uma covardia com quem mora aqui. Todos somos testemunhas. Hoje somos os sobreviventes dessa vida”, relata a moradora de Vigário Geral e faxineira Maria Fátima da Silva, de 54 anos, sobre a chacina que deixou 21 mortos e chocou o país no dia 29 de agosto, há 25 anos. Vigário Geral é um bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro marcado pela desigualdade, violência e superação. A tragédia deixou muitas marcas em quem mora na região (confira abaixo, os relatos de dez moradores sobre a chacina e a vida em Vigário Geral). Até mesmo nas gerações que vieram depois como demonstra a atriz Dayane Cunha, de 27 anos: “Quando o baile funk era na esquina da minha casa, eu participava, mas não conseguia me divertir porque imaginava que a polícia poderia chegar, que ia ter um tiroteio e eu teria que me jogar embaixo do carro e me fingir de morta”. Durante muitos anos, quando saía à noite, seja em Vigário Geral ou na Lapa, ela lutava contra o que ela chama de paranóia: o medo de um novo massacre.

[g1_quote author_name=”Wanderson da Silva” author_description=”Morador e estudante de Psicologia” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Isso criou em Vigário uma lenda, se ninguém morreu hoje é porque demos sorte mas amanhã vai acontecer

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Essa estratégia de se fazer de morta vem de uma história real, como ela mesma conta:

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“Tinha um grupo num bar, bebendo, jogando baralho e os policiais chegaram e começaram a atirar. O Bira foi baleado e ficou entre os mortos se fingindo de morto”.

A merendeira aposentada Petronilha Santos, de 76 anos, lembra bem dessa história. Irmã de Bira, ela estava dentro de casa quando começou o tiroteio:

“Quando acalmava, a gente voltava para a rua e foi aí que vi nosso ente querido morto. O Bira, meu irmão, se fingiu de morto junto com o Jadir para viver. Eles são sobreviventes. Demoramos muito a superar isso, mas não tínhamos para onde ir. Vou ficar aqui até Deus me levar, mas ainda quero sambar muito. Faço parte da velha guarda da Unidos de Lucas”, contou Petronilha que é muito querida pelos moradores e, apesar da vida sofrida, tem orgulho de ter colocado cada tijolo de sua casa: “Eu construí minha casa do zero, tijolo por tijolo a vida inteira. O que nós temos hoje é um lugar bem melhor”.

A Chacina de Vigário Geral ganhou as páginas dos principais jornais do Brasil e, se depender dos moradores, nunca será esquecida. Na ocasião, o grupo de extermínio Cavalos Corredores arrombou casas e executou vinte e um moradores da favela para vingar a morte de quatro PMs que aconteceu na praça Catolé da Rocha no dia anterior à chacina. Até as gerações que nasceram depois de 1993 ficaram marcadas. “Isso criou em Vigário uma lenda, se ninguém morreu hoje é porque demos sorte mas amanhã vai acontecer”, disse o estudante de psicologia Wanderson da Silva, de 21 anos.

O retrato da chacina: 21 pessoas foram mortas em Vigário Geral pelo grupo extermínio Cavalos Corredores (Foto: MARIO LEITE / AFP)

Apesar de não ter vivido a chacina, Wanderson presenciou diversas guerras do tráfico onde mora. Ao longo dos anos, duas facções disputavam o controle da região: o Comando Vermelho (CV) e o Terceiro Comando Puro (TCP). A rivalidade entre Vigário Geral e Parada de Lucas era tamanha que a rua que fazia limite entre as duas comunidades era considerada uma espécie de “Faixa de Gaza”: moradores de um lado não podiam cruzar para o outro. Até que, em 2007, traficantes de Parada de Lucas dominaram Vigário Geral. De lá para cá, no entanto, não dá para dizer que a paz reinou na área.

De acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), na CISP 38, que abrange além de Vigário Geral, Brás de Pina (parte), Cordovil, Jardim América, Parada de Lucas e Penha Circular (parte), aconteceram, em 2017,  76 mortes por letalidade violenta, como homicídio doloso, homicídio decorrente de intervenção policial, latrocínio e lesão corporal seguida de morte. Este ano, o número de mortes já chega a 40.

[g1_quote author_name=”Janice Alves” author_description=”Moradora e cozinheira” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Eu procuro não me prender a isso porque a vida continua

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O capítulo mais recente dessa história de violência foi a morte de Maria da Luz Silva e de um homem não identificado, em agosto. A comerciante, de 59 anos, que tinha um bar na favela de Furquim Mendes, que fica dentro de Vigário Geral, foi baleada dentro de casa, atingida na cabeça por uma bala perdida durante um confronto entre policiais militares do 16º BPM (Olaria) e criminosos.

Wanderson lembra dos conflitos chamados por ele de “a grande guerra”, período de disputa de facções por Vigário Geral:

“Eu tenho a história da grande guerra, mas quem estava aqui há 25 anos lembra como sobreviveu à chacina. Eu desenvolvi um quadro de ansiedade. Uma vez, quando estava na passarela que dá acesso à comunidade, começou um tiroteio. Saí correndo para dentro da casa de um vizinho. Isso foi perto do meu aniversário, e eu queria muito convidar meus amigos para minha festa, mas fiquei pensando no risco de chamar alguém e começar um tiroteio”.

Por mais que a história insista em retratar a região como palco de guerras e disputas de poder, em Vigário Geral existem sonhos, resistência e esperança, como mostram os relatos dos moradores a seguir.

“Depois que entrei na faculdade, tive mais credibilidade da comunidade, os moradores me chamavam para dar aula para os filhos deles, eu abri uma escolinha, quis colocar um preço bem acessível só para ensiná-los. Foi um movimento bem legal. A comunidade nos cobra isso, é um vínculo muito fraternal”, contou Wanderson, que será o primeiro da família a concluir uma graduação, em Psicologia.

A cozinheira Janice Alves, de 45 anos, ao longo do tempo buscou superar o massacre adotando um olhar positivo sobre a vida:

“Se a gente ficar preso naquilo, a gente não vive. Aconteceu sim e foi triste sim. Eu procuro não me prender a isso porque a vida continua”.

Assim como Janice e Wanderson, Dayane procura superar o medo e olhar para frente, lembrando que hoje muitos jovens de Vigário Geral querem estudar e sonham em entrar na faculdade, algo impensável há alguns anos. Ela, que é diretora artística do AfroReggae e fez os primeiros anos da faculdade de Direito, ressalta ainda a importância do grupo para criar caminhos de superação para os moradores da região:

“O AfroReggae trouxe artistas conhecidos como Caetano Veloso, Regina Casé, e outros, e fez com que Vigário também aparecesse nas páginas culturais dos jornais e não apenas nas policiais”.

Vigário Geral e a chacina na visão de dez moradores (Clique nas imagens para ler os depoimentos completos)

 

1-) Kelly dos Santos, 30 anos, do Lar: Foram 21 trabalhadores na marmita (caixa de remoção de corpos), dentre eles, meu tio

Kelly dos Santos: “A chacina me marcou muito. Não tem como esquecer” (Foto: Juliana Nascimento)

2-) Maria Carolina Amarantes, 24 anos, cabeleireira: “Se eu tiver condição, quero ter uma casa fora, mas vou continuar com a minha aqui”.

Maria Carolina Amarantes, 24 anos, cabeleireira (Foto: Juliana Nascimento)

3-) Maria Fátima da Silva, 54 anos, faxineira: “Isso aqui era brejo, pinguela e barraco, mais nada. A gente pisava na lama e era muita dificuldade”.

Maria Fátima da Silva, 54 anos, faxineira (Foto: Juliana Nascimento)

4-) Wanderson da Silva, 21 anos, estudante de psicologia: “Tinha medo de andar na rua e morrer. Superei isso com a ajuda da psicologia”.

Wanderson da Silva, 21 anos, estudante de psicologia (Foto: Juliana Nascimento)

5-) João Ricardo, 54 anos, presidente da Associação de Moradores Amigos de Vigário Geral: “A única coisa que avançou em Vigário foi a densidade demográfica”

João Ricardo, 54 anos, presidente da Associação de Moradores Amigos de Vigário Geral (Foto: Juliana Nascimento)

6-) Dayane Cunha, 27 anos, diretora artística do AfroReggae: “Todo mundo em Vigário, mesmo que não tenha vivido, carrega um pouco dessa história da chacina”. 

Dayane Cunha, 27 anos, diretora artística do AfroReggae (Foto: Juliana Nascimento)

7-) Petronilha Santos, 76 anos, merendeira aposentada: “O Bira, meu irmão, se fingiu de morto junto com o Jadir para viver. Eles são sobreviventes da chacina”

Petronilha Santos, 76 anos, merendeira aposentada (Foto: Juliana Nascimento)

8) Márcio Costa, 47 anos, músico: A gente é acostumado desde criança a achar que aquilo é normal”

Márcio Costa, 47 anos, músico (Foto: Juliana Nascimento)

9-) Janice Alves, 45 anos, cozinheira: “Tem coisas que não valem a pena lembrar, quem dirá comentar

Janice Alves, 45 anos, cozinheira (Foto: Juliana Nascimento)

10-) Claudio Vladimir, 29 anos, auxiliar de serviços gerais: A única coisa que evoluiu foi o polo comercial da Praça Dois”

Claudio Vladimir, 29 anos, auxiliar de serviços gerais (Foto: Juliana Nascimento)
Leonne Gabriel

Leonne Gabriel é graduado em Comunicação Social jornalismo e publicidade e propaganda com ênfase em Tecnologias e Mídias Digitais na PUC-Rio. Atualmente integra o time de jornalismo do Canal Futura como apresentador. É ganhador do Prêmio ANF de Jornalismo 2019 na categoria melhor reportagem de educação e do Prêmio Ubuntu de Cultura 2019 na categoria jornalista revelação.

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