ODS 1
‘Sou uma cobaia muito chique’
Vítima de erro médico que a deixou quase cega, adolescente brasileira é a primeira paciente a testar celular que cria realidade virtual
Num dia qualquer de setembro de 2015, Maria Stockler Carvalhosa foi parar num dos melhores hospitais do Rio de Janeiro com um problema de visão: acabara de cair no meio da sala de aula na frente de todo mundo porque não percebera uma mochila no chão. Não estava enxergando bem. O diagnóstico errado de hidrocefalia congênita levou a quatro cirurgias no cérebro (uma bem-sucedida bastaria). Um mês e meio e duas hemorragias depois, saiu das operações com um cateter, duas válvulas, um sifão no cérebro e sem o problema resolvido. Sua visão piorara muito: já não enxergava quase nada. Correu para o Sírio Libanês, em São Paulo, foi operada uma vez para resolver a obstrução provocada por um glioma, um tecido que cresceu no cérebro e impedia a drenagem de um ventrículo. Depois, passou por mais duas cirurgias para retirar todo o aparato que havia sido colocado erroneamente na sua cabeça no Rio de Janeiro. Nessa altura do campeonato, o dano estava feito: o nervo óptico, com a demora na solução do problema, já ficara muito mais lesionado. Maria ficou quase cega. Baixa visão, como dizem os especialistas.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Minha mãe não gosta quando afirmo que, se pudesse, não voltaria no tempo. Todos nós sofremos muito. É muito difícil, tenho milhares de dificuldades, não sou uma bobinha de achar que, uhu, fiquei cega, mas tudo está lindo. Não é disso que estou falando. Gostaria de poder enxergar de novo. Mas voltar no tempo significaria abrir mão da Maria que sou hoje. E disso eu tenho orgulho
[/g1_quote]A adolescente de recém-feitos 17 anos, que representou a América Latina no último TED ED, em novembro, em Nova York, esforça-se arduamente para recuperar a visão. Mas voltar a ser aquela menina de antes da tragédia, nem pensar: “Acho que agora, vejo mais. Ver e escutar são sentidos que vão sendo apurados. Têm relação com sensibilidade e empatia. E nisso eu sou melhor agora. Caí num buraco e saí dele uma gigante”.
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Veja o que já enviamosO texto de Maria para integrar o TED ED, evento dos jovens ligado ao TED Talks, palestras de menos de dez minutos com pessoas incríveis do mundo inteiro para espalhar ideias interessantes e revolucionárias, concorreu com mais de um milhão de discursos dos quatro cantos do planeta. Foi o único selecionado entre os países que falam espanhol e português. “Minha mãe não gosta quando afirmo que, se pudesse, não voltaria no tempo. Todos nós sofremos muito. É muito difícil, tenho milhares de dificuldades, não sou uma bobinha de achar que, uhu, fiquei cega, mas tudo está lindo. Não é disso que estou falando. Gostaria de poder enxergar de novo. Mas voltar no tempo significaria abrir mão da Maria que sou hoje. E disso eu tenho orgulho”.
Maria hoje enxerga uma mancha branca na visão central: “Se eu ponho as mãos na frente, a mancha fica da cor delas. Se olho pro chão, fica da cor do chão. Mas é uma mancha e não dá pra ver nada através dela. Além disso, a minha visão periférica é bem restrita e há bolas piscando o tempo todo como se eu estivesse dentro de uma árvore de Natal. Sabe quando você vê as nuvens e cria padrões? Então, é assim comigo o tempo todo.”
A rotina para recuperar aos poucos a visão – sim, já houve progressos – é intensa. Todos os dias ela faz exercícios de Self Healing, com a terapeuta Katia Amaral, e se consulta também com a especialista Fernanda Leite Ribeiro, em São Paulo. O método foi criado por Meir Schneider, que foi considerado cego sua vida toda, até criar a técnica de exercícios combinados com massagens pro paciente ser o agente de sua própria cura (curiosidade: Meir tem carteira de motorista sem restrições nos Estados Unidos). Além da “musculação” diária para os olhos, Maria está há 26 semanas encabeçando um teste com realidade virtual para recuperar danos graves à visão no Byers Eye Institute da Universidade de Standford.
“Sou uma cobaia muito chique”, gargalha. “Já funcionou com um rato, mas eu fui a primeira pessoa a começar os testes em humanos. Agora, mais duas pessoas além de mim foram incorporadas à pesquisa”.
Os cientistas de Standford enviaram para Maria um aparelho de realidade virtual, que é, na verdade, um celular da Google. Nele, há um app instalado que vira realidade virtual quando a jovem o acopla dentro de um óculos. “Entro numa galeria de arte, num quadro, e começam a acontecer padrões de estimulação que passam energia para as células. Todo dia, durante meia hora, fico nesse passeio virtual. A médica que me selecionou para este teste ficou positivamente impressionada com minha visão. Fiquei feliz, porque é prova de que todo o trabalho ao qual venho me dedicando tem funcionado”.
Para dar conta de se apresentar sozinha num palco, ao vivo, para milhares de pessoas e ainda em inglês, Maria contou com o treinamento de uma amiga da família, a atriz, diretora, dramaturga e poeta Dani Fortes. Apesar de a jovem ter elaborado o discurso sozinha, Dani a ajudou a pensar num eixo condutor para o texto:
“Se Maria quisesse, ela nem precisaria ter falado no TED ED de erro médico ou de sua baixa visão. O fio que conduziu seu discurso foi a imaginação, sua parceira mais presente, desde pequena, protagonista de sua história. Sua grande companheira, que preenche, mas que é também uma inimiga perigosa que precisa ser regulada. Ela tem se equilibrado tão bem nessa corda bamba. Maria é linda”.
O trabalho para aprontar o discurso do TED durou todo o ano de 2018. Começou dedicando boa parte dos seis minutos de fala a narrar o erro do qual foi vítima. A família achou que não valia a pena: “Meus pais falaram que eu era muito mais do que o que aquele médico fez de errado e eu concordei. Ter escolhido a imaginação como o eixo do discurso foi muito importante. Se antes eu tinha uma mente inventiva, hoje a imaginação é parte do meu dia a dia. As pessoas muitas vezes me descrevem uma situação e eu crio a cena, o roteiro, as imagens na minha mente. Até 2015, eu via o que eu imaginava, mas só na minha cabeça. Agora eu imagino e vejo mesmo”.
O novo discurso foi aplaudido por todos os amigos e familiares aqui no Brasil e pela calorosa família de Maria, que viajou em peso para Nova York para assisti-la: o pai, o artista plástico Carlito Carvalhosa; a mãe, a diretora de arte e fotógrafa Mari Stockler, a irmã, Cecília; as duas avós; e Dani Fortes: “Acho que exageramos um pouquinho. Tinha palestrante, da mesma idade que eu, completamente sozinho ali”, diverte-se. O humor, aliás, é uma das maiores virtudes de Maria. É rindo que ela conta que o nome de sua irmã Cecília, que enxerga perfeitamente bem, quer dizer “ceguinha”. E que o nome Maria significa “aquela que enxerga”.
“Descobri essa ironia pesquisando nomes de pessoas cegas. Adoro fazer minhas buscas, mas não quero ser o tipo de pessoa que só vai falar sobre cegueira. Não quero que as pessoas pensem que eu só tenho isso na vida para contar”.
Contar, narrar, pesquisar e ouvir — é a ouvinte mais atenta e interessada que se pode desejar ter — é com ela mesma. Comer também. A menina, que sempre foi gulosa, vem se deliciando: “Comecei a comer muito mais agora, porque essa é uma das poucas experiências de que desfruto 100 por cento. Não perdi nada. Pelo contrário, fiquei ainda mais apurada”.
[g1_quote author_name=”Maria Stockler Carvalhosa” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Quem ao meu redor, da minha idade, teve um problema parecido com o meu?
[/g1_quote]Maria também deu um jeito de preservar um hábito que cultiva desde criança: a leitura. Agora conta com o auxílio de uma máquina que escaneia o livro e o transforma em voz. Sua mãe também muitas vezes lê pra ela em voz alta, mas só enquanto o fio que liga a máquina à tomada está sumido (provavelmente no próprio quarto da adolescente). Maria quer estudar Letras na Universidade. Quer voltar a andar de ônibus sozinha, uma das coisas que mais ama na vida. E fazer mais amigos.
“Um dos primeiros livros que li logo depois de perder a visão foi “Feliz ano velho”, do Marcelo Rubens Paiva. Acho que todo mundo que passa por uma experiência como a minha, ou a do autor, acaba renovando seu ciclo de amizades. Fico pensando, quem ao meu redor, da minha idade, teve um problema parecido com o meu? Posso falar de um ou dois amigos. Não mais do que isso. Não tive como manter todas as amizades da escola passada. Mas fiz novas na escola atual. Vou passar o Ano Novo em Teresópolis com parte da turma. Fui ao passeio do segundo ano do Ensino Médio sem mamãe nem papai para a Amazônia. Vou à praia de Uber e uma amiga me pega no calçadão e me conduz até a areia. Dou um certo trabalho, mas se a pessoa não estiver disposta a isso, nem deve valer a pena, né?”
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É jornalista e por 17 anos trabalhou nos jornais O Globo e Extra, no Rio, nas editorias de saúde, turismo e cidade. Também foi autora de uma coluna sobre sobre literatura no suplemento infantil Globinho e, em 2014, lançou o livro Parque e Jardins: refúgios cariocas, da editora Papelera Cultural. Mãe da Marina, de 15 anos, e do Rodrigo, de 11, Simone há três anos estuda psicopedagogia para se dedicar às suas duas maiores paixões: educação e crianças.